Gadamer (VM): conhecimento da natureza

Uma coisa é certa: para Kant, o conceito de gênio significa realmente apenas uma complementação daquilo que o faz interessar-se pelo juízo estético, “na intenção transcendental”. Não se deve esquecer, que a crítica do juízo, na sua segunda parte, tem a ver absolutamente só com a natureza (e seu julgamento segundo conceitos de finalidade), não tendo nada a ver com a arte. Para a intenção sistemática do todo, a aplicação do juízo estético com relação ao belo e ao sublime na natureza é mais importante do que a fundamentação transcendental da arte. A “adequação da natureza à nossa capacidade de conhecimento”, que, como vimos, só pode ocorrer no belo natural (e não nas belas artes), tem, como princípio transcendental do juízo estético, a importância de preparar igualmente o entendimento para aplicar o conceito de uma finalidade à natureza. Desse ponto de vista, a crítica do gosto, isto é, a estética, é uma preparação para a teleologia. Esta, cuja reivindicação constitutiva para o conhecimento da natureza foi destruída pela crítica da razão pura, no sentido de legitimar um princípio da capacidade de julgamento, é a intenção filosófica de Kant, que só a partir daí conduz a uma conclusão sistemática o todo de sua filosofia. O juízo lança a ponte entre entendimento e razão. O inteligível, a que faz alusão o gosto, o substrato supra-sensorial da humanidade, contém ao mesmo tempo a intermediação entre os conceitos de natureza e os conceitos de liberdade. Essa é a importância sistemática que tem para Kant o problema da beleza natural: Ela fundamenta a posição central da teleologia. Só ela, não a arte, pode ser de proveito na legitimação do conceito de finalidade com relação para o julgamento da natureza. Já a partir desse fundamento sistemático o juízo de gosto “puro” torna-se a base imprescindível da terceira crítica. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Será que não deve haver nenhum conhecimento na arte? Não há na experiência da arte, uma reivindicação à verdade, que sendo certamente diversa da ciência, certamente também não lhe será inferior? E será que não reside a tarefa da estética, justamente em fundamentar que a experiência da arte é uma forma de conhecimento dos sentidos, que transmite à ciência os últimos dados, a partir dos quais põe-se a construir o conhecimento da natureza, certamente também diferente de todo conhecimento ético da razão e, aliás, de todo o conhecimento conceitual, mas que é, contudo, conhecimento, ou seja, transmissão da verdade? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A relação mímica originária, que já examinamos, inclui não somente o fato de que o representado está aí, mas também, mais propriamente, que tenha chegado no aí (ins Da). A imitação e a representação não são apenas uma repetição figurativa, mas conhecimento da natureza. Como não são mera repetição (Wiederholung), mas extração (Hervorholung), o espectador também está nelas subentendido. Contêm em si a vinculação essencial com cada pessoa, para qual a representação se faz. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Assim, se retrocedermos à pré-história da hermenêutica histórica, teremos de destacar, em primeiro lugar, que entre a filologia e a ciência da natureza, em sua primeira auto-reflexão, se estabelece uma correlação muito estreita, que se reveste de um duplo sentido. Em primeiro lugar, a “naturalidade” do procedimento científico-natural deve valer também para o posicionamento frente à tradição bíblica — e para isso serve o método histórico. Mas, ao inverso, também a naturalidade da arte filológica, exercida na exegese bíblica, a arte de compreender pelo texto, coloca ao conhecimento da natureza a tarefa de decifrar o “livro da natureza”. Nessa medida o modelo da filologia pode orientar o método da ciência da natureza. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Ao final de suas preleções de 1882 encontra-se a expressão de que “não temos, como as ciências da natureza, o instrumento da experimentação, não podemos mais que investigar e continuar investigando”. Portanto, para Droysen, tem de haver no conceito da investigação outro momento importante, não somente a infinitude da tarefa que, enquanto marca de um progresso infinito, a investigação da história tem em comum com a da natureza, e que no século XIX ajudou na ascensão do conceito da investigação face à “ciência” do século XVIII e à “doutrina dos séculos anteriores. Esse novo conceito de investigação, que toma pé no conceito do investigador itinerante que se arrisca em zonas desconhecidas, abrange tanto o conhecimento da natureza como o mundo histórico. Quanto mais empalidece o pano de fundo teológico e filosófico do conhecimento do mundo, tanto mais a ideia da ciência é pensada como avanço rumo ao desconhecido, e, por isso, chamada de investigação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

“Cada eu fechado em si mesmo, cada qual abrindo-se ao outro em suas exteriorizações” (§ 91). Aquilo que é reconhecido é correspondentemente em ambos os casos fundamentalmente diferente: o que as leis são para o conhecimento da natureza, os poderes morais são para o historiador (16). Neles encontra ele sua verdade. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Todavia, aos olhos da escola histórica, a filosofia especulativa da história representava um dogmatismo tão crasso como havia sido a metafísica racional. A dita escola tinha que exigir de uma fundamentação filosófica do conhecimento histórico o mesmo que havia feito Kant para o conhecimento da natureza. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

As ciências históricas conferem agora ao problema da teoria do conhecimento uma nova atualidade. Isso já se pode comprovar na história da palavra, na medida em que a expressão “teoria do conhecimento” aparece somente na época pós-hegeliana. Começou a ser usada quando a investigação empírica havia desacreditado o sistema hegeliano. O século XIX se converteu no século da teoria do conhecimento, pois somente com a dissolução da filosofia hegeliana ficou definitivamente destruída (225) a correspondência óbvia de logos e ser. Na medida em que Hegel mostrava a razão em tudo, inclusive na história, foi ele o último e mais universal representante da filosofia antiga do logos. Agora, frente à crítica da filosofia apriorista da história, viram-se jogados novamente para o campo de forças da crítica kantiana, cuja problemática se colocava agora também para o mundo histórico, uma vez rechaçada a pretensão de uma construção racional pura da história do mundo e uma vez que também o conhecimento histórico estava limitado à experiência. Se tanto a natureza, como a história não são pensadas como uma forma de manifestação do espírito, então se torna problema para o espírito humano o modo como deve conhecer a história, da mesma forma que o conhecimento da natureza se lhe tornara problemático em virtude das construções do método matemático. Assim, junto à resposta kantiana sobre o modo como é possível uma ciência pura da natureza, Dilthey tinha de procurar uma resposta à sua questão, qual seja: como a experiência histórica pode se converter em ciência? Em clara analogia com o questionamento kantiano, também irá perguntar pelas categorias do mundo histórico que possam sustentar a construção do mundo histórico nas ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Nisto há algo que perfaz seu status e que o distingue face ao neokantismo, que, por seu turno, procurava incluir as ciências do espírito na renovação da filosofia crítica. Ele não esquece que a experiência é, nesse terreno, algo fundamentalmente diferente que no âmbito do conhecimento da natureza. No âmbito do conhecimento da natureza trata-se somente de comprovações verificáveis, que têm lugar através da experiência; isto significa, porém, tratar-se do que se desvincula da experiência do indivíduo e constitui um acervo permanente e confiável do conhecimento empírico. Aos olhos do neokantismo, o resultado positivo da filosofia transcendental tinha sido justamente a análise categorial desse “objeto do conhecimento”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Esses conceitos, diferentemente das categorias do conhecimento da natureza, são conceitos vitais. Pois a última pressuposição para o conhecimento do mundo histórico, no qual a identidade de consciência e objeto — esse postulado especulativo do idealismo — ainda representa uma realidade demonstravel (227) é, em Dilthey, a vivência. Aqui existe certeza imediata. Pois o que é vivência não é divisado num ato, por exemplo, o dar-se conta de algo, e num conteúdo, aquilo de que alguém se dá conta. Pelo contrário, trata-se de um ter presente já não dissociável. Mesmo a versão de que na vivência algo que é possuído, ainda distingue demais. Dilthey persegue agora como se configura um nexo, a partir desse elemento do mundo espiritual, que é imediatamente certo, e como é possível um conhecimento de tal nexo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Já nas suas ideias “para uma psicologia descritiva e analítica” Dilthey havia distinguido a tarefa de deduzir “o adquirido nexo da vida da alma”, das formas de explicação próprias do conhecimento da natureza. Havia empregado o conceito de estrutura para, com ele, destacar o caráter vivencial dos nexos da alma com relação aos nexos causais dos acontecimentos da natureza. O que caracterizava logicamente essa “estrutura” era que aqui intentava-se a um todo de relações, que não repousava sobre a sucessão temporal do ser efetivado, mas sobre relações internas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Dessas inversões de valores do romantismo se origina a atitude da ciência histórica do século XIX. Esta não mede mais o passado com os padrões do presente, como se estes fossem absolutos, pois outorga aos tempos passados seu próprio valor e é capaz, inclusive, de reconhecer sua superioridade em certos aspectos. As grandes produções do romantismo, o redespertar dos tempos primitivos, o acolher a voz dos povos em suas canções, a coleção de contos e sagas, o cultivo dos usos mais antigos, a descoberta das línguas como concepções do mundo, o (280) estudo da “religião e da sabedoria dos índios”, tudo isso desencadeou uma investigação histórica que foi convertendo, pouco a pouco, passo a passo, esse redespertar intuitivo num conhecimento histórico distanciado. O engate da escola histórica no romantismo confirma, assim, que a própria repetição romântica do originário se assenta sobre o solo do Aufklärung. A ciência histórica do século XIX é o seu mais soberbo fruto, e se entende a si mesma como a consumação do Aufklärung, como o último passo na liberação do espírito dos grilhões dogmáticos, como o passo rumo ao conhecimento objetivo do mundo histórico, capaz de igualar em dignidade o conhecimento da natureza da ciência moderna. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Achar-se imerso em tradições significará realmente em primeiro plano estar submetido a preconceitos e limitado na própria liberdade? Não é certo, antes, que toda existência humana, mesmo a mais livre, está limitada e condicionada de muitas maneiras? E se isso é assim, então a ideia de uma razão absoluta não é uma possibilidade da humanidade histórica. Para nós a razão somente existe como real e histórica, isto significa simplesmente: a razão não é dona de si mesma, pois está sempre referida ao dado no qual se exerce. Isso vale não somente (281) no sentido em que Kant limitou as pretensões do racionalismo, sob a influência da crítica cética de Hume, ao momento apriórico no conhecimento da natureza. Vale ainda mais decisivamente para a consciência histórica e para a possibilidade de conhecimento histórico. Pois que o homem, aqui, tenha a ver consigo próprio e com suas próprias criações (Vico), representa uma solução apenas aparente do problema que o conhecimento histórico nos coloca. O homem é estranho a si mesmo e ao seu destino histórico de uma maneira muito diferente a como lhe é estranha a natureza, a qual não sabe nada dele. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Já tínhamos destacado antes esse entrelaçamento peculiar entre conhecimento da natureza e da filologia, que acompanha os primórdios da ciência moderna. Agora chegamos, por fim, ao seu próprio fundamento. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A partir do centro da linguagem, o procedimento objetivador do conhecimento da natureza e o conceito do ser em si, que corresponde à intenção de todo conhecimento, se nos mostraram como o resultado de uma abstração. Esta, arrancada reflexivamente da relação original com o mundo, relação que está dada na constituição linguística de nossa experiência de mundo, procura certificar-se do ente, organizando seu (480) conhecimento metodologicamente. Anatemiza, consequentemente, toda forma de saber que não garante essa certeza e que, por conseguinte, não seja capaz de servir à crescente dominação da natureza. Face a isso, procuramos libertar do preconceito ontológico o modo de ser próprio da arte e da história, assim como a experiência correspondente a ambas, preconceito que está implicado no ideal de objetividade que a ciência coloca; e frente à experiência da arte e da história vimo-nos conduzidos a uma hermenêutica universal que atinge a relação geral do homem com o mundo. E se já formulamos essa hermenêutica universal, a partir do conceito da linguagem, o fizemos não somente para evitar o falso metodologismo que é responsável pela estranheza do conceito da objetividade nas ciências do espírito — devia-se evitar também o espiritualismo idealista de uma metafísica da infinitude, ao modo de Hegel. A experiência hermenêutica fundamental não se articulava somente na tensão entre estranheza e familiaridade, compreensão e mal-entendido, que era o que dominava o projeto de Schleiermacher. Ao contrário, ao final vimos que, com sua teoria da perfeição adivinhatória da compreensão, Schleiermacher se apresenta em imediata proximidade a Hegel. Se nós partimos da linguisticidade da compreensão, sublinhamos, pelo contrário, a finitude do acontecer linguístico em que se concretiza em cada caso a compreensão. A linguagem que as coisas exercem, sejam elas quais e como forem, não é logos ousias e não alcança a sua plena realização na autocontemplação de um intelecto infinito — é a linguagem que toma nossa essência histórica finita, quando aprendemos a falar. Isso vale não menos para a linguagem dos textos da tradição, e por isso coloca a si mesma a tarefa de uma hermenêutica verdadeiramente histórica. Isso vale também para a experiência tanto da arte como da história, e mais ainda, os conceitos de “arte” e “história” são, por sua vez, formas de acepção, que somente se desdobram do modo de ser universal do ser hermenêutico, como formas da experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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