O empenho filosófico de nosso tempo se diferencia da clássica tradição da filosofia pelo fato de não representar nenhuma continuação imediata e ininterrupta dessa última. Por maior que seja a comunhão com sua origem histórica, a filosofia está hoje consciente de seu distanciamento com relação aos seus modelos clássicos. Isso caracteriza-se sobretudo na sua relação, alterada, com o conceito. Por mais graves que tenham sido as consequências e por mais profundas que tenham sido as transformações do pensamento filosófico ocidental, as quais surgiram nas línguas modernas com a latinização dos conceitos gregos e a uniformização da linguagem conceitual latina, o surgimento da consciência histórica nos últimos séculos significa uma censura de uma forma ainda mais profunda. Desde então a continuidade da tradição de pensamento do Ocidente vigora apenas e ainda de uma forma fragmentada. Pois perdeu-se a inocência ingênua, com a qual a gente tornava os conceitos da tradição úteis para os próprios pensamentos. Desde então, para a ciência, suas relações para com tais conceitos tornaram-se um estranho descomprometimento, quer suas relações com esses conceitos sejam da espécie de uma concepção erudita, para não dizer arcaizante, ou da espécie de uma manipulação técnica, que faz dos conceitos algo como ferramentas. Ambos não conseguem, na verdade, satisfazer à experiência hermenêutica. A conceptualidade em que se desdobra o filosofar, antes, já sempre nos tomou da mesma forma pela qual a linguagem em que vivemos nos convoca. Assim, dessa conscienciosidade do pensamento, faz parte o ato de se conscientizar desse preconceito. É uma consciência nova e crítica, que desde então vem acompanhando todo o filosofar responsável e que os costumes linguísticos e de pensamento, que se formam para o indivíduo, na comunicação com o seu mundo circundante, colocam diante do fórum da tradição histórica, da qual todos nós fazemos parte. VERDADE E MÉTODO Introdução
Seja como for, já vimos que o problema hermenêutico recebe um significado sistemático, no momento em que o romantismo reconhece a unidade interna de intelligere e explicare. A interpretação não é um ato posterior e oportunamente complementar à compreensão, porém, compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão. Relacionado com isso, está também o fato de que a linguagem e a conceptualidade da interpretação foram reconhecidos como um momento estrutural interno da compreensão, com o que até mesmo o problema da linguagem passa de uma posição ocasional e marginal, para o centro da (313) filosofia. Mas a isso voltaremos mais tarde. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Em todo caso, na formulação do tema, encontra-se um enunciado explícito sobre o que é filosofia, a saber, que a conceptualidade constitui sua essência — o que é bem distinto da função dos conceitos nos enunciados das ciências ditas “positivas”. Enquanto essas medem cada vez a validade de seus conceitos no resultado cognitivo controlável pela experimentação, a filosofia não tem, nesse sentido, nenhum objeto. Aqui começa a problematicidade da filosofia. Será possível apresentar seu objeto sem com isso já estar enredado na pergunta pela adequação dos conceitos que se usa para tal? Quando nem mesmo se sabe o que se deve medir, o que pode significar “adequado”? VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
O mesmo ocorre, porém, com o conceito. Um sistema de conceitos, uma multiplicidade de ideias, que se tivesse de definir, delimitar e determinar cada uma por si, não atingiria a questão radical da conceptualidade da filosofia e da filosofia como conceptualidade. Isto porque na filosofia está em questão a unidade “do” conceito. Quando Platão fala de sua teoria das ideias e busca impor filosoficamente essa “tão comentada” teoria das ideias, ele fala do uno e da pergunta sobre como esse uno é ao mesmo tempo múltiplo. Ao procurar em sua Lógica refletir sobre os pensamentos de Deus, que estão em seu espírito, como totalidade das possibilidades do ser, antes do início da criação, Hegel encerra o livro com “o conceito”, enquanto o autodesenvolvimento pleno dessas possibilidades. A unidade do objeto da filosofia dá-se de tal modo que, assim como a unidade da palavra acontece em torno do que é digno de ser dito, também a unidade do pensar filosófico ocorre em torno do que é digno de ser pensado. Não são as definições singulares dos conceitos que possuem uma legitimação filosófica autônoma. É sempre (81) apenas um princípio unitário do pensar que determina a função do conceito singular em sua significação legítima. Vale a pena guardar isso na memória, para quando se quer colocar a pergunta pela tarefa de uma história dos conceitos, que não se presta simplesmente a um trabalho auxiliar da investigação filosófico-histórica, mas deve inserir-se na locupletação da filosofia e realizar-se como “filosofia”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
Basta darmos apenas alguns passos na análise dessa suposta identidade para percebermos em que tipo de dogmatismos se sustenta. Um problema assim é como uma pergunta não colocada. Toda pergunta realmente colocada tem uma motivação. Sabe-se por que se pergunta algo e deve-se saber por que se é perguntado sobre algo, quando se quer realmente entender — e se for o caso — responder à pergunta. No exemplo do problema da liberdade, então, parece-me convincente que a colocação da pergunta não se torna compreensível pela suposição de que se trata de um problema idêntico da liberdade. Antes, o que realmente importa é considerar as perguntas reais, da maneira como elas se colocam — e não as possibilidades de perguntas formalizadas de maneira abstrata — , como o que vale a pena compreender. Toda pergunta tem uma motivação. Toda pergunta recebe seu sentido do modo de sua motivação. Sabe-se disso quando se formula uma “pergunta pedagógica”, quando o outro nos pergunta algo sem querer saber realmente a resposta. Nesses casos, sabemos perfeitamente que o interrogador já sabe aquilo sobre o que pergunta. Se já sei a resposta, que tipo de pergunta é esta? Do ponto de vista hermenêutico, a pergunta pedagógica torna-se antipedagógica. Só se justifica pelo fato de a evolução do questionamento acabar superando a falta de naturalidade dessas perguntas, deixando-as culminar em perguntas “abertas”, pois só nessas perguntas abertas pode mostrar-se a real capacidade de alguém. O fato, porém, de que uma pergunta só se deixe responder quando se sabe por que é feita significa que, também nas (83) grandes perguntas, insolúveis para a filosofia, o sentido da pergunta só se determina pela sua motivação. Quando se fala de “problema da liberdade” trata-se portanto de uma esquematização dogmática, e com a qual se encobre o ponto de vista que dá sentido e compõe verdadeiramente a premência da pergunta, a sua colocação. Justo quanto percebemos que a filosofia pergunta pelo todo, cabe-nos perguntar pelo modo como suas perguntas são colocadas, e isto significa qual a conceptualidade que as move. É essa que cunha de antemão a colocação da pergunta. O que importa, portanto, e o que se deve fixar quando se busca apreender e elaborar a colocação de uma pergunta é como se coloca uma pergunta. Se pergunto, por exemplo, o que significa liberdade numa concepção de mundo regida pela ciência causal de natureza, a colocação da pergunta e, com isso, tudo que está implícito no conceito de causalidade, já estão incluídos no sentido da pergunta. Assim há que se perguntar: O que é causalidade? Ela perfaz todo o âmbito do que é digno de se perguntar na pergunta pela liberdade? Por não se perceber isso é que, nos anos vinte e trinta deste século, pôde surgir a estranha afirmação de que a física moderna teria invalidado a causalidade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
Essas constatações podem ser formuladas positivamente: Se a cunhagem própria do sentido da pergunta reside nas formulações da pergunta e com isso na conceptualidade, possibilitada pela formulação de uma pergunta, então a relação do conceito para com a linguagem não é somente a relação da crítica da linguagem, mas igualmente um problema de encontrar a linguagem certa. Eis o que me parece o grande drama que tira o fôlego da filosofia; a filosofia consiste num esforço constante de busca de linguagem. Para dizê-lo de modo mais patético: a filosofia está sempre sofrendo de uma indigência de linguagem. E isso não é uma novidade de Heidegger. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
Impõe-se assim a tarefa de uma destruição do conceptualidade da metafísica. Esse é o único sentido aceitável da expressão “linguagem da metafísica”: a conceptualidade formada em sua história. A tarefa de uma destruição da conceptualidade alienada da metafísica, que continua no pensamento atual, foi o lema de Heidegger em seus primeiros anos de docência. A tarefa de reconduzir pelo pensamento os termos conceituais da tradição à língua grega, ao sentido natural das palavras e à sabedoria oculta da linguagem que nelas se deve buscar, deu nova vida ao pensamento grego e a sua capacidade para interpelar-nos. Impressiona ver com que vigor Heidegger levou a efeito essa tarefa, e é isso na verdade que constitui sua genialidade. Ele tentou inclusive religar as palavras a seu sentido literal já desaparecido, não vigente. Desse sentido etimológico buscou tirar consequências para o pensamento. É interessante notar que a esse respeito o Heidegger tardio fala de “palavras originárias”. Essas palavras expressariam a experiência grega de mundo muito melhor que as teorias e princípios dos primeiros textos gregos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Os diálogos platônicos marcaram-me, portanto, mais que os grandes pensadores do idealismo alemão, porque sempre me acompanharam. Meu relacionamento com eles foi singular. Se o caráter antecipador da conceptualidade grega, desde Aristóteles até Hegel e a lógica moderna, se nos apresenta, a nós, instruídos por Nietzsche e Heidegger, como limite além do qual encontram-se nossas (501) próprias perguntas sem reposta e nossas intenções sem serem satisfeitas, então o certo é que a arte do diálogo platônico se antecipou a essa aparente superioridade que cremos possuir como herdeiros da tradição judeu-cristã. Com a doutrina das ideias, com a dialética das ideias, com a matematização da física e com a intelectualização do que chamaríamos de “ética”, Platão plantou as bases para os conceitos metafísicos de nossa tradição. Mas ao mesmo tempo limitou todos seus enunciados pela via mimética e, como Sócrates, soube desarmar seus interlocutores com sua costumeira ironia. Desse modo, também neutralizou a presumida superioridade do leitor com a arte de sua poesia dialogal. A tarefa é filosofar com Platão, e não criticar Platão. Criticar Platão talvez se torne tão simplório como acusar a Sófocles de não ser Shekespeare. Isso poderá parecer paradoxal, mas só para aquele que está cego frente à relevância filosófica da imaginação poética de Platão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.