Gadamer (VM): compreensão dos textos

Daí procede a muito marcante consciência que possui a filosofia dos nossos dias. Mas há uma outra pergunta, bem diferente: até que ponto a reivindicação da verdade de tais formas de conhecimento, situadas fora do âmbito da ciência, podem ser filosoficamente legitimadas? A atualidade do fenômeno hermenêutico repousa, ao meu ver, no fato de que apenas um aprofundamento no fenômeno da compreensão pode trazer uma tal legitimação. Não foi apenas em última instância que essa convicção veio a se fortalecer em mim, devido à importância que a história da filosofia possui no trabalho filosófico da atualidade. Diante da tradição histórica da filosofia, a compreensão se nos depara como uma experiência meditada, que nos deixa distinguir facilmente o que há de aparente no método histórico que paira sobre a pesquisa filosófica e a histórica. Faz parte da elementar experiência do filosofar, que os clássicos do pensamento filosófico, sempre que procuramos entendê-los, façam valer, de si mesmos, uma reivindicação de verdade que não pode ser rejeitada nem sobrepujada pela consciência contemporânea. A ingênua consciência da dignidade própria da atualidade até pode se rebelar contra o fato de que a consciência filosófica admite que seu próprio ponto de vista filosófico seja o de um Platão ou Aristóteles, de um Leibniz, Kant ou Hegel, em contraposição a de outros de menor categoria. Pode-se considerar uma fraqueza do filosofar atual, que se dedique à interpretação e à compilação de sua tradição clássica, confessando sua própria fraqueza. No entanto, há uma fraqueza bem maior do pensamento filosófico, quando alguém não se submete a uma tal prova e prefere fazer o papel de tolo por conta própria. E preciso que a gente admita que na compreensão dos textos desses grandes pensadores se reconhece a verdade, que não seria acessível por outros meios, ainda que isso contradiga o padrão de pesquisa e de progresso com que a ciência mensura a si própria. VERDADE E MÉTODO Introdução

Por isso, a despeito de todas as delimitações de fronteiras estéticas, no nosso contexto, o conceito mais amplo da literatura torna-se válido. Assim como nos foi dado mostrar que o ser da obra de arte é um jogo, que só se cumpre na sua recepção pelo espectador, pode-se dizer, dos textos em geral, que somente na sua compreensão se produz a retransformação do rastro de sentido morto, em sentido vivo. É necessário, portanto, que se pergunte se o que já demonstramos com relação à experiência da arte pode ser afirmado também para a compreensão dos textos em conjunto, portanto, também os que não são obras de arte. Já tínhamos visto que a obra de arte só alcança seu preenchimento na representação que ela encontra, e isto nos tinha obrigado a concluir que toda obra de arte literária só pode se realizar inteiramente pela leitura. Sendo assim, será que isso vale também para a compreensão de todo texto? Será que o sentido de todo texto se realiza somente em sua recepção por quem o compreende? Dito de outra forma, será que o compreender faz parte do acontecer de sentido de um texto — tal qual faz parte da música o fazer-com-que-se-torne-audível? Pode-se chamar ainda de compreensão, quando nos comportamos com relação ao sentido de um texto com tanta liberdade como o artista re-produtivo, com respeito ao seu modelo? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Isso representa uma provocação para a hermenêutica tradicional. É verdade que na língua alemã a compreensão (Verstehen) designa também um saber fazer prático (“er versteht nicht zu lesen” “ele não entende ler”, o que significa tanto como: “ele fica perdido na leitura”, ou seja, não sabe ler). Mas isso parece muito diferente do compreender orientado cognitivãmente no exercício da ciência. Obviamente, se se olha mais detidamente, surgem traços comuns: nos dois significados aparece a ideia de conhecer, entender do assunto. E mesmo aquele que “compreende” um texto (ou mesmo uma lei) não somente projetou-se a si mesmo a um sentido, comprendendo — no (265) esforço do compreender — mas que a compreensão alcançada representa o estado de uma nova liberdade espiritual. Implica a possibilidade de interpretar, detectar relações, extrair conclusões em todas as direções, que é o que constitui o entender do assunto dentro do terreno da compreensão dos textos. E isso vale também para aquele que entende de uma máquina, isto é, aquele que entende de como se deve tratar com ela, ou aquele que entende de um ofício, ferramenta: admitindo-se que a compreensão racional-finalista está sujeita a normas diferentes do que, p. ex., a compreensão de externalizações da vida ou textos, o que é verdade é que todo compreender acaba sendo um compreender-se. Enfim, também a compreensão de expressões se refere não somente à captação imediata do que contém a expressão, mas também ao descobrimento do que há para além da interioridade oculta, de maneira que se chega a conhecer esse oculto. Mas isso significa que a gente tem de se haver com isso. Nesse sentido vale para todos os casos que aquele que compreende se compreende, projeta-se a si mesmo rumo à possibilidades de si mesmo. A hermenêutica tradicional havia estreitado, de uma maneira inadequada, o horizonte de problemas a que pertence a compreensão. A ampliação que Heidegger empreende, para além de Dilthey, será, por essa mesma razão, fecunda também para o problema da hermenêutica. E verdade que já Dilthey havia rechaçado, para as ciências do espírito, os métodos das ciências da natureza, e que Husserl havia qualificado de “absurda” a aplicação do conceito natural-científico de objetividade às ciências do espírito, estabelecendo a relatividade essencial de todo mundo histórico e de todo conhecimento histórico. Porém agora torna-se visível pela primeira vez a estrutura da compreensão histórica em toda sua fundamentação ontológica, sobre a base da futuridade existencial da pre-sença humana. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Seguindo a teoria dos preconceitos desenvolvida no Aufklärung, pode-se encontrar a seguinte divisão básica dos mesmos: é preciso distinguir os preconceitos gerados pelo respeito humano, dos preconceitos por precipitação. Essa divisão tem seu fundamento na origem dos preconceitos, na perspectiva das pessoas que os cultivam. O que nos induz a erros é o respeito pelos outros, por sua autoridade, ou a precipitação que existe em nós mesmos. O fato de que a autoridade seja uma fonte de preconceitos coincide com o conhecido princípio fundamental do Aufklärung, tal como o formula Kant: tenha coragem de te servir de teu próprio entendimento. Embora a decisão, citada acima, não se restrinja somente ao papel que os preconceitos desempenham na compreensão dos textos, ela encontra seu campo de aplicação preferencial também no âmbito hermenêutico. Pois a crítica do Aufklärung se dirige, em primeiro lugar, contra a tradição religiosa do cristianismo, portanto, a Sagrada Escritura. Enquanto que esta é compreendida como um documento histórico, a crítica bíblica põe em perigo sua pretensão dogmática. Nisso se apoia a radicalidade peculiar do Aufklärung moderno, face a todos os outros movimentos do Aufklärung: que ele tem de se impor frente à Sagrada Escritura e sua interpretação dogmática. Por isso lhe é particularmente central o problema hermenêutico. Procura compreender a tradição corretamente, isto é, isenta de todo preconceito e racionalmente. Mas isso traz uma dificuldade muito especial, pelo mero fato de que a fixação por escrito contém em si própria um momento de autoridade de peso (277) determinante. Não é fácil consumar a possibilidade de que o escrito não seja verdade. O escrito tem a palpabilidade do que é demonstrável, é como uma peça comprobatória. Torna-se necessário um esforço crítico especial para que nos liberemos do preconceito cultivado a favor do escrito e distinguir, tanto aqui, como em qualquer afirmação oral, entre opinião e verdade . Seja como for, a tendência geral do Aufklärung é não deixar valer autoridade alguma e decidir tudo diante do tribunal da razão. Assim, a tradição escrita, a Sagrada Escritura, como qualquer outra informação histórica, não podem valer por si mesmas. Antes, a possibilidade de que a tradição seja verdade depende da credibilidade que a razão lhe concede. A fonte última de toda autoridade já não é a tradição mas a razão. O que está escrito não precisa ser verdade. Nós podemos sabê-lo melhor. Essa é a máxima geral com a qual o Aufklärung moderno enfrenta a tradição, e em virtude da qual acaba ele mesmo convertendo-se em investigação histórica. Torna a tradição objeto da crítica, tal qual o faz a ciência da natureza com os testemunhos da aparência dos sentidos. Isso não significa que o “preconceito contra os preconceitos” deva ser levado em tudo às consequências do espiritualismo livre e do ateísmo, como na Inglaterra e na França. O Aufklärung alemão reconheceu de modo absoluto “os preconceitos verdadeiros” da religião cristã. Dado que a razão humana seria demasiado débil para passar sem preconceitos, teria sido uma sorte se tivesse sido educada nos preconceitos verdadeiros. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Convém recordar que na origem, e primordialmente, a hermenêutica tem como tarefa a compreensão dos textos. Foi somente Schleiermacher que minimizou o caráter essencial da fixação por escrito com respeito ao problema hermenêutico, quando considerou que o problema da compreensão estava dado também face ao discurso oral, e quiçá na sua plena realização. Já demonstramos até que ponto a versão psicológica, que ele introduziu na hermenêutica, abafou a autêntica dimensão histórica do fenômeno hermenêutico. Na realidade a escrita possui, para o fenômeno hermenêutico, uma significação central, na medida em que nela a ruptura com o escritor ou autor, assim como com o endereço concreto de um destinatário (396) é trazida, por assim dizer, a uma existência própria. O que se fíxa por escrito se eleva de um certo modo, à vista de todos, a uma esfera de sentido na qual pode participar todo aquele que esteja em condições de ler. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Também com relação ao fenômeno hermenêutico, mostrou-se como uma restrição ilegítima entender a compreensão somente como esforço imanente de uma consciência filológica, indiferente à “verdade” de seus textos. De outra parte, também era claro que a compreensão dos textos não poderia ter pré-julgado a questão da verdade, a partir do ponto de vista de um conhecimento superior da coisa, e na compreensão somente seja experimentada a satisfação desse conhecimento superior e próprio da coisa. Ao contrário, para nós a dignidade da experiência hermenêutica — e também o significado da história para o conhecimento humano em geral — consistia em que nela não se produz a subordinação sob algo já conhecido, mas que o que sai ao nosso encontro a partir da tradição é algo que nos fala. A compreensão não se satisfaz então no virtuosismo técnico de um “compreender” tudo o que é escrito. É, pelo contrário, uma experiência autêntica, isto é, encontro com algo que vale como verdade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.