A auto-reflexão lógica das ciências do espírito, que acompanha o seu efetivo desenvolvimento no século XIX, é inteiramente dominada pelo modelo das ciências da natureza. Mostra-o um simples olhar lançado à expressão “ciências do espírito”, desde que essa expressão receba o significado que nos é familiar, unicamente através de sua forma plural. As ciências do espírito se entendem tão clarividentes, graças à sua analogia com as ciência da natureza, tanto que o eco idealístico, que se situa no conceito do espírito e da ciência do espírito, retrocede. A expressão “ciências do espírito” se popularizou principalmente através do tradutor da lógica de John St. Mill. Na sua obra, Mill procura, suplementarmente, esboçar as possibilidades que o emprego da lógica da indução possui sobre as moral scienses. O tradutor diz, para isso, “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften). Já do contexto da Lógica de Mill, percebe-se que não se trata de reconhecer uma lógica própria das ciências do espírito, mas, ao contrário, de demonstrar que é o método indutivo, que está à base de toda a ciência experimental, que vale exclusivamente também nesse âmbito. Mill encontra-se assim em meio a uma tradição inglesa, cuja formulação mais eficaz foi dada por Hume na introdução de sua obra Treatise. Mesmo nas ciências morais o que importa é reconhecer a uniformidade, a regularidade, a legalidade, que tornam previsíveis os fenômenos e processos individuais. Mesmo no terreno dos fenômenos da natureza não chega a ser alcançável da mesma maneira por toda parte. No entanto, o motivo disso se encontra exclusivamente no fato de que, os dados em que se poderiam reconhecer as uniformidades não são obtidos suficientemente em todos os lugares. Embora a meteorologia trabalhe tão metodicamente quanto a física, acontece apenas que seus dados são mais incompletos e, por isso, mais inseguras suas previsões. A mesma coisa vigora nos campos dos fenômenos morais e sociais. A utilização do método indutivo terá de também ficar isenta de todas as hipóteses metafísicas, mantendo-se inteiramente independente de como se imagina o estabelecimento dos fenômenos que se está observando. Não se está, por exemplo, averiguando as causas de determinados efeitos, mas simplesmente constatando regularidades. Assim, torna-se completamente indiferente se, por exemplo, acreditamos ou não no livre-arbítrio — no terreno da vida social pode-se, em todo caso, chegar a fazer previsões. Tirar consequências da regularidade com relação a fenômenos esperados não inclui nenhuma acepção sobre a espécie de conexão, cuja regularidade possibilita a previsão. O surgimento de decisões livres — caso tais decisões existam — não interrompe o processo regular, porém pertence, ela mesma, à generalidade e à regularidade que são obtidas através da indução. Representa o ideal de uma ciência da natureza da sociedade, que aqui se desenvolve programáticamente, do qual em alguns campos surgiram pesquisas plenas de êxito. Basta pensar na psicologia de massa. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Mas o que representa o verdadeiro problema que as ciências filosóficas colocam ao pensamento é que não se consegue compreender corretamente a natureza das ciências do espírito, caso a meçamos com o padrão de conhecimento progressivo da legalidade (Gesetzmässigkeit). A experiência do mundo social-histórico não se eleva a uma ciência com o processo indutivo das ciências da natureza. Seja o que for que aqui venha a significar ciência, e mesmo que em todo conhecimento histórico esteja incluído o emprego da experiência genérica no respectivo objeto de pesquisa — o conhecimento histórico não aspira, no entanto,, a abranger o fenômeno concreto como no caso de uma regra geral. O caso individual não serve simplesmente para confirmar uma legalidade, a partir da qual seja possível, numa reversão prática, fazer previsões. Mais do que isso, seu ideal é compreender o próprio fenômeno na sua concreção singular e histórica. Nesse particular, pode influir ainda quanta experiência genérica se quiser: o objetivo não é confirmar nem ampliar essas experiências genéricas, para se chegar ao conhecimento de uma lei, ou seja, como é que, afinal, se desenvolvem os homens, os povos, este povo, este estado é o que ele se tornou — dito genericamente: como pode ter acontecido que agora é assim. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Mas que conhecimento é este que compreende que algo seja assim, por compreender que veio a ser assim? O que significa aqui ciência? Ainda que se reconheça que o ideal desse conhecimento é fundamentalmente diverso do gênero e da intenção de as ciências da natureza, estaremos sendo tentados, no entanto, a caracterizá-las, apenas privativamente, como as “ciências inexatas”. Mesmo a ponderação, tão significativa quanto justa, que Hermann Helmholtz fez no seu famoso discurso de 1862, diferenciando as ciências da natureza das ciências do espírito, por mais que tivesse ressaltado a suprema e humana significação das ciências do espírito — sua característica lógica continuou sendo negativa, a qual tinha o seu ponto de partida no ideal de método das ciências da natureza. Helmholtz diferenciou duas espécies de indução: a indução lógica e a instintiva-artística. Isso significa, porém, que, no fundo, não estava diferenciando logicamente, mas sim psicologicamente, ambos os gêneros de procedimento. Ambos se servem da conclusão indutiva, mas o procedimento conclusivo das ciências do espírito é um concluir inconsciente. A prática da indução das ciências do espírito está vinculada, por essa razão, a condições psicológicas especiais. Ela exige uma espécie de senso do tato, e para isso, necessita de aptidões espirituais de outra espécie, por exemplo, riqueza de memória e prevalência de autoridades; contra o que, concluir autoconsciente do cientista da natureza repousa totalmente na utilização da própria compreensão. Mesmo quando se reconhece que o grande pesquisador da natureza resistiu à tentação de transformar sua própria forma de trabalhar cientificamente numa norma de validade geral, mesmo assim ele não disporia de nenhuma outra possibilidade lógica para caracterizar o procedimento das ciências do espírito, do que através do conceito da indução, com o qual estava familiarizado graças à Lógica de Mill. A efetiva exemplaridade que teve a nova mecânica e seu triunfo para as ciências do século XVIII, assinalado pela mecânica celeste de Newton, continuava sendo para Helmholtz tão evidente, que bem longe dele estava indagar sobre quais as pré-condições filosóficas haviam possibilitado o surgimento dessa nova ciência no século XVII. Hoje sabemos qual o significado que teve, nesse caso, a Escola Occamista de Paris. Para Helmholtz o ideal de método das ciências da natureza não estava necessitando de nenhuma derivação histórica nem de uma restrição cognitiva e teórica, e é por isso que ele, logicamente, não podia entender de outra forma a maneira de trabalhar das ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O modelo das ciências da natureza, que Droysen conclama aqui, nada tem, portanto, a ver com o conteúdo, no sentido de uma adaptação teorético-científica, mas, ao contrário, no sentido de que as ciências do espírito deveriam deixar-se fundamentar, da mesma forma, como um grupo independente de ciências. O “historicismo” de Droysen é a tentativa de solucionar essa tarefa. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Também Dilthey, em quem a influência do método científico-natural e o empirismo da lógica de Mill se faz sentir bem mais fortemente, mantém firme, no entanto, a herança romântico-idealista no conceito de espírito. Sempre se sentiu superior ao empirismo inglês, porque mantinha-se apegado à viva concepção do que caracterizava a escola histórica em face de todo e qualquer pensamento concernente às ciências da natureza e ao direito natural. “Só da Alemanha pode vir o verdadeiro procedimento empírico no lugar do empirismo preconceituoso e dogmático. “Mill é dogmático por lhe faltar formação histórica” — esta é uma anotação que Dilthey escreveu no seu exemplar da Lógica de Mill. Na realidade, todo o trabalho cansativo, de várias décadas, que Dilthey dedicou à fundamentação das ciências filosóficas, é um permanente confronto com a exigência lógica, que Mill apresentou no seu famoso capítulo final das ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Mesmo assim, Dilthey se deixou influenciar profundamente pelo modelo das ciências da natureza, embora quisesse justificar justamente a independência metódica das ciências do espírito. Duas testemunhas podem elucidar isso, e ao mesmo tempo indicar o caminho das considerações que se seguem. No seu necrológio sobre W. Scherer, Dilthey destaca que o espírito das ciências da natureza guiou o procedimento de Scherer, e pretende fundamentar por que Scherer se colocou tão diretamente sob a influência do empirismo inglês: “Ele era um homem moderno, e o mundo de nossos antepassados não era mais a pátria de seu espírito e de seu coração, mas seu objeto histórico”. Nessa formulação observa-se o seguinte: Para Dilthey, ao conhecimento científico pertence a dissolução dos vínculos vitais, a conquista de uma distância em relação à própria história, pois somente isso possibilita torná-la objeto. Pode-se até reconhecer que o manuseio dos métodos indutivo e comparativo, tanto da parte de Scherer como de Dilthey, era guiado por um genuino tato individual, e que esse tato pressupõe uma cultura anímica, que comprova nesses homens, na verdade, a continuidade do mundo de formação clássica e da crença da individualidade romântica. Não obstante, continua sendo o modelo das ciências da natureza que orienta a autoconcepção científica de ambos. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Isso virá a ser bastante palpável num segundo testemunho, em que Dilthey se refere à independência dos métodos das ciências do espírito e fundamenta-os levando em consideração o seu objeto. Uma tal referência soa, de início, bem aristotélica e poderia gerar uma genuína substituição do modelo das ciências da natureza. No entanto, no que diz respeito a essa independência dos métodos das ciências do espírito, Dilthey continua vinculando-a ao antigo “Natura parendo vincitur” de Bacon — um postulado que faz saltar aos olhos a herança clássico-romântica, que Dilthey queria administrar. Pode-se assim dizer que, mesmo Dilthey, cuja formação histórica forma sua superioridade em face do neokantianismo de sua época, apesar de seus esforços lógicos, no fundo não conseguiu ir além das simples constatações que Helmholtz fez. Pode até ser que Dilthey tenha batalhado muito a favor da independência teorético-cognitiva das ciências do espírito — o que se denomina método na ciência moderna é algo único e o mesmo por toda parte e só especialmente nas ciências da natureza cunha-se como modelar. Não existe nenhum método específico para as ciências do espírito. Mas certamente pode-se indagar, como Helmholtz, quanto significa aqui o método, e se as outras condições, sob as quais se encontram as ciências do espírito, não serão, para sua forma de trabalhar, quem sabe muito mais importantes do que a lógica indutiva. Helmholtz o havia indicado corretamente, quando ele, para satisfazer as exigências das ciências do espírito, salientou a memória e a autoridade e falou do tato psicológico, que aqui entraria no lugar do concluir (Schliessen) consiste esse tato? Como podemos adquiri-lo? Será que, ao cabo, o que há de científico nas ciências do espírito depende mais do tato do que de sua metodologia? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Pelo fato de as ciências do espírito darem motivo a essa indagação e, com isso, contraporem-se à sua inclusão no conceito de ciência da modernidade, elas são e continuam sendo um problema da própria filosofia. A resposta que Helmholtz e seu século deram a essa questão não é suficiente. Acompanham Kant, por se orientarem pelo conceito da ciência e do conhecimento segundo o modelo das ciências da natureza e procurarem a marcante singularidade das ciências do espírito no momento artístico (sentimento artístico, indução artística). Desse ponto de vista, pode ser bastante parcial a imagem que Helmholtz faz do trabalho aplicado às ciências da natureza, já que aí ele não mantém nada das “repentinas fagulhas do espírito”(ou seja, o que denominamos vir uma ideia — Einfall), só preservando delas “o férreo trabalho do concluir autoconsciente”. Refere-se ao testemunho de John St. Mill, segundo o qual “as ciências indutivas dos tempos modernos teriam feito mais pelo progresso dos métodos lógicos” do que “todos os filósofos de ofício”. Elas são, para ele, o modelo do método científico por excelência. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Na verdade, as ciências do espírito estão muito longe de simplesmente se sentirem inferiores às ciências da natureza. Na sucessão espiritual do classicismo alemão elas desenvolveram, acima disso, o orgulhoso auto-sentimento de que eram o verdadeiro defensor do humanismo. A época do classicismo alemão não trouxe consigo apenas a renovação da literatura e da crítica estética, através das quais foi superado o gosto ideal, ainda sobrevivente do barroco e do racionalismo do Aufklärung: ao mesmo tempo, tinha dado ao conceito da humanidade, esse ideal da razão esclarecida, um conteúdo fundamentalmente novo. Foi Herder, principalmente, que sobrepujou o perfeccionismo do Aufklärung através do novo ideal de uma “formação para o humano”, preparando assim o terreno sobre o qual puderam se desenvolver, no século XIX, as ciências do espírito históricas. O conceito de formação, que naqueles tempos elevou-se a um valor dominante, foi, sem dúvida, o mais alto pensamento do século XVIII, e justamente esse conceito caracteriza o elemento em que vivem as ciências do espírito do século XIX, mesmo que elas não saibam justificar isso de forma teorético-cognitiva. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Seria louvável sair ao encalço do que tenha sido alguma vez segregado, como desde os dias do humanismo a crítica à ciência da “escola” começou a ouvir e como é que essa crítica se transformava de acordo com as mudanças de seus rivais. Originariamente, os motivos eram os antigos, que eram então reavivados. O entusiasmo com que os humanistas proclamavam a língua grega e o caminho da eruditio significava mais do que uma paixão antiquada. A ressurreição das línguas clássicas trouxe de volta, ao mesmo tempo, uma nova avaliação da retórica. Possuía seu “front” contra a “escola”, ou seja, contra a piência escolástica, e estava a serviço de um ideal de sabedoria humana, que não tinha sido alcançado na “escola” — uma contradição que, na verdade, já se encontra no início da filosofia. A crítica de Platão à sofística, mais ainda, sua atitude singular e ambivalente com relação a Isócrates, assinala o problema filosófico que aqui existe. Em face da nova consciência de método das ciências da natureza do século XVII, esse velho problema teria ainda maior agudeza crítica. Em vista da reivindicação de exclusividade dessa nova ciência, a questão se apresentou com uma urgência reforçada, querendo-se saber se no conceito de formação humanístico não havia uma fonte própria de verdade. De fato, veremos que é da sobrevivência do pensamento da formação humanística que as ciências filosóficas do século XIX extraem sua vida peculiar, sem confessá-lo a si mesmas. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Não é fácil de supervalorizar a importância dessa questão. Pois o que se perdeu com isso é justamente aquilo de que viviam os estudos filológico-históricos e donde, exclusivamente, poderiam ter alcançado sua total auto-evidência quando, sob a denominação de “ciências do espírito”, queriam fundamentar-se metodicamente ao lado das ciências da natureza. Agora — graças às indagações transcendentais de Kant — o caminho estava obstruído, no sentido de reconhecer a tradição, a cujo cultivo e estudo elas se dedicavam, em sua reivindicação específica da verdade. Com isso, porém, a originalidade metódica das ciências do espírito perdeu sua legitimação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O que Kant de sua parte, através de sua crítica do juízo estético, legitimou e queria legitimar era a universalidade subjetiva do gosto estético, na qual não se encontra mais nenhum conhecimento do objeto, e, no âmbito das “belas artes”, a superioridade do gênio sobre toda estética da regra. É assim que a hermenêutica romântica e a historiografia, com relação à sua auto-evidência, encontram um ponto de vinculação somente no conceito de gênio, o qual alcança validade através da estética de Kant. Esse foi justamente o outro lado da atuação de Kant. A justificação transcendental do juízo estético alicerça a autonomia da consciência estética, da qual viria a derivar-se também a legitimação da consciência histórica. A subjetivação radical, que incluiu a refundamentação da estética de Kant, marcou verdadeiramente uma época. Ao desacreditar qualquer outro conhecimento teórico que não fosse o da ciência da natureza, forçou a auto-determinação das ciências do espírito a apoiar-se na doutrina de método das ciências da natureza. Mas ao mesmo tempo facilitou-lhes esse apoio, ao colocar à sua disposição, como um dispositivo secundário, o “momento artístico”, o “sentimento” e a “empatia”. A característica das ciências do espírito de Helmholtz, de que nos ocupamos acima, é, nos dois sentidos, um bom exemplo da atuação de Kant. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Se agora pesquisarmos, em prosseguimento à história da palavra, a história do conceito de “vivência”, podemos concluir do que precedeu que o conceito de vivência de Dilthey contém claramente dois momentos, o panteístico e mais ainda o positivista, a vivência e mais ainda seu resultado. Isso não é, certamente, nenhum acaso, mas uma consequência de sua posição intermediária entre a especulação e o empirismo, do qual ainda voltaremos a nos ocupar em pormenores. Como o que importa a ele é justificar o trabalho das ciências do espírito, do ponto de vista cognitivo-teórico, domina-o por toda parte o motivo do verdadeiramente dado. E pois um motivo cognitivo-teórico ou, melhor, o motivo da própria teoria do conhecimento que motiva sua formação do conceito e que corresponde ao processo linguístico, em cujo encalço nos encontrávamos acima. Como o distanciamento da vivência e a fome de vivência, que atingem a partir do sofrimento causado pela complicada aparelhagem da civilização, alterada pela revolução industrial, fazem a palavra “vivência” alcançar o uso comum da linguagem, da mesma forma o novo distanciamento que a consciência histórica toma com relação à tradição, designa o conceito da vivência em sua função cognitivo-teórica. Isso caracteriza pois o desenvolvimento das ciências do espírito no século XIX, mostrando que não somente externamente reconhecem as ciências da natureza como modelo mas que partindo do mesmo fundamento que vive moderna na natureza, desenvolvem, com ela, o mesmo patos de experiência e pesquisa. Se a estranheza que a era da mecânica tinha de experimentar face à natureza como mundo natural, encontrou sua expressão epistemológica no conceito da autoconsciência e na regra da certeza na “perception clara e distinta”, que foi transformada em método, as ciências do espírito do século XIX experimentaram uma estranheza semelhante face ao mundo histórico. As criações espirituais do passado, da arte e da história não pertencem mais ao conteúdo auto-evidente do presente, mas se tornaram objetos e situações dadas (Gegebenheiten) propostos como tarefa à pesquisa, a partir dos quais pode-se atualizar um passado. E assim como o conceito do dado, que guia também a cunhagem do conceito de vivência de Dilthey. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O deslocamento da determinação ontológica do estético para o conceito da aparência estética tem pois seu fundamento teórico no fato de que o predomínio do modelo de conhecimento das ciências da natureza conduz ao desacreditamento de todas as possibilidades do conhecimento, que se encontram fora dessa nova metodologia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Quero lembrar que em Helmholtz, no conhecido trecho de que partimos, aquele momento diferente, que distingue o trabalho das ciências do espírito em face das ciências da natureza, não soube caracterizar melhor do que através do adjetivo “artístico”. A essa relação teórica, corresponde positivamente o que podemos denominar de consciência estética. É-nos dado através do ponto de “vista da arte”, que Schiller foi o primeiro a fundamentar. Pois tal qual a arte da “bela aparência” se opõe à realidade — é uma figuração de “espírito alheado”, enquanto aquilo em que Hegel reconheceu a formação. Poder comportar-se esteticamente é um momento da consciência formada. Pois que na consciência estética encontramos as feições que caracterizam a consciência formada: elevação à universalidade, distanciamento da particularidade da aceitação ou rejeição imediata, deixar e fazer valer aquilo que não corresponde à própria expectativa ou à própria preferência. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Dessa maneira, a hermenêutica romântica e seu pano de fundo, a metafísica panteísta da individualidade foram determinantes para a reflexão teórica da investigação da história no século XIX. Isso foi decisivo para o destino das ciências do espírito e para a concepção do mundo da escola histórica. Ainda veremos que a filosofia hegeliana da história universal, contra a qual protesta a escola histórica, compreendeu o significado da história para o ser do espírito e para o conhecimento da verdade com uma profundidade incomparavelmente maior que aqueles grandes historiadores que não quiseram reconhecer sua dependência com respeito a ele. O conceito da individualidade de Schleiermacher, que caminhava lado a lado com os interesses da teologia, da estética e da filologia, não somente era uma instância crítica contra a construção apriorística da filosofia da história, como oferecia às ciências históricas, ao mesmo tempo, uma orientação metodológica que as remetia, num grau não inferior às ciências da natureza, à investigação, isto é, à única base que sustenta uma experiência progressiva. Dessa maneira, a resistência contra a filosofia da história universal acabou empurrando-a para o elemento da filologia. Seu orgulho estava em que tal metodologia não pensava o nexo da história universal teleologicamente, a partir de um estado final, como era o [203] estilo do Aufklärung pré-romântico ou pós-romântico, estado que seria igualmente o fim da história, o dia final da história universal. Pelo contrário, para ela não há nenhum final, e nenhum fora, além da história. A compreensão do decurso total da história universal só pode ser obtido a partir da própria tradição histórica. E esta é justamente a pretensão da hermenêutica filológica, ou seja, que o sentido de um texto pode ser compreendido por si próprio. Por consequência, o fundamento da historiografia é a hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A fórmula de Droysen para o conhecimento histórico é, pois, “compreender investigando” (§ 8). Nisso se oculta tanto uma mediação infinita como uma imediatez última. O conceito da investigação, que Droysen vincula, aqui numa cunhagem tão significativa, com o do compreender, deve marcar a infinitude da tarefa que separa o historiador tão profundamente das perfeições da criação artística, como da perfeita sintonia que instauram a simpatia e o amor entre o eu e o tu. Somente investigando a tradição até o fim e “sem descanso”, descobrindo sempre novas fontes e reinterpretando-as sem cessar, a investigação vai se aproximando pouco a pouco da “ideia”. Isso soa como um apoiar-se no procedimento das ciências da natureza e como uma antecipação da interpretação neokantiana da “coisa em si”, como “tarefa infinita”. Porém, observando-se mais de perto, descobrir-se-á que nisso há algo mais. A fórmula de Droysen não delimita o fazer do historiador somente face à idealidade total da arte e face à comunhão íntima das almas, mas também, ao que parece, face ao procedimento das ciências da natureza. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Ao final de suas preleções de 1882 encontra-se a expressão de que “não temos, como as ciências da natureza, o instrumento da experimentação, não podemos mais que investigar e continuar investigando”. Portanto, para Droysen, tem de haver no conceito da investigação outro momento importante, não somente a infinitude da tarefa que, enquanto marca de um progresso infinito, a investigação da história tem em comum com a da natureza, e que no século XIX ajudou na ascensão do conceito da investigação face à “ciência” do século XVIII e à “doutrina dos séculos anteriores. Esse novo conceito de investigação, que toma pé no conceito do investigador itinerante que se arrisca em zonas desconhecidas, abrange tanto o conhecimento da natureza como o mundo histórico. Quanto mais empalidece o pano de fundo teológico e filosófico do conhecimento do mundo, tanto mais a ideia da ciência é pensada como avanço rumo ao desconhecido, e, por isso, chamada de investigação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Todavia, essas reflexões não bastam para explicar como Droysen pôde separar o método histórico, na forma exposta, face ao método do experimento das ciências da natureza, quando diz que a historiografia é “investigar e nada mais que investigar”. O que aos olhos de Droysen caracteriza o conhecimento histórico como investigação tem de ser uma infinitude diferente da do mundo desconhecido. Sua ideia parece ser a seguinte: convém à investigação, uma infinitude diferente e igualmente qualitativa, quando o que está sendo investigado não poderá nunca tornar-se visível por si mesmo. Isso vale realmente para o passado histórico — em oposição ao caráter autônomo do dado, apresentado pelo experimento na investigação da natureza. Para poder conhecer, a investigação histórica sempre somente pode perguntar a outros, à tradição, a uma tradição sempre nova, e perguntar-lhe sempre de novo. Sua resposta não terá nunca, como o experimento, a univocidade do que é visto por si mesmo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Por isso, ainda que se faça abstração da enorme influência que, a princípio, o empirismo inglês e a teoria do conhecimento das ciências da natureza exercem sobre Dilthey como se eles deformassem suas verdadeiras intenções, não é fácil de apreender essas intenções em uníssono. Devemos a Georg Misch um passo importante nessa direção. Mas como o propósito de Misch era confrontar a posição de Dilthey com a orientação filosófica da Fenomenologia de Husserl e da ontologia fundamental de Heidegger, é a partir dessas contraposições contemporâneas que se descreve a discrepância interna da orientação de Dilthey, de uma “filosofia da vida”. E a mesma coisa pode-se dizer da meritória exposição de Dilthey, de O.F. Bollnow. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Isso é de essencial importância metódica para o modo próprio das ciências do espírito. O conceito do dado tem aqui uma estrutura completamente diferente. Caracteriza o caráter dos dados das ciências do espírito face aos das ciências da natureza, o fato de que, nesse terreno, “tem-se de separar do conceito do dado, tudo o que é fixo, tudo o que é estranho, como é próprio das imagens do mundo psíquico”. Todo o dado é produzido aqui. A velha vantagem atribuída já por Vico aos objetos históricos é o que fundamenta, segundo Dilthey, a universalidade com que a compreensão se apropria do mundo histórico. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Algo assim poderia também ser encontrado em Droysen, mas em Dilthey possui um matiz próprio. Tanto na direção da contemplação como na da reflexão prática surge, segundo Dilthey, a mesma tendência da vida: a “aspiração à estabilidade”. A partir disso compreende-se que Dilthey pudesse considerar a objetividade do conhecimento científico e da auto-reflexão filosófica como a realização suprema da tendência natural da vida. O que guia a reflexão de Dilthey não é uma adaptação externa da metodologia das ciências do espírito aos procedimentos das ciências da natureza, mas o fato de que detecta em ambas uma comunidade genuína. A essência do método experimental é a elevação acima da casualidade subjetiva da observação, e com ajuda disso dá-se o conhecimento da regularidade da natureza. Assim, as ciências do espírito também procuram elevar-se metodicamente acima da casualidade subjetiva do próprio ponto de partida e da tradição que lhes é acessível, alcançando assim a objetividade do conhecimento histórico. A própria auto-reflexão filosófica encaminha-se na mesma direção, na medida em que “se torna objetiva para si mesma como fato humano e histórico” e renuncia à pretensão de alcançar um conhecimento puro a partir de conceitos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A forma cartesiana de se alcançar a certeza através da dúvida é, para Dilthey, de uma evidência imediata, na medida em que ele é um filho do Aufklärung. Esse sacudir fora o que é autoritativo, de que fala, não corresponde somente à necessidade epistemológica de fundamentar as ciências da natureza, mas diz respeito também ao saber de valores e objetivos. Para ele, estes também não representam um todo indubitável, extraído da tradição, dos costumes, da religião, do direito, mas “também aqui o espírito tem de produzir por si mesmo um saber válido”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A partir disso pode-se entender o que Dilthey vincula à hermenêutica romântica. Com a sua ajuda consegue ele cobrir a diferença entre a essência histórica da experiência e a forma de conhecimento da ciência, ou melhor, pôr em consonância a forma de conhecimento das ciências do espírito com os padrões metodológicos das ciências da natureza. Já vimos acima que o que o levou a isso não foi uma adaptação externa. Reconhecemos agora que não o conseguiu sem descuidar a própria e essencial historicidade das ciências do espírito. Isso se torna claro no conceito de objetividade válida nas ciências da natureza. E por isso que Dilthey gosta de empregar a palavra “resultados” e de demonstrar pela descrição da metodologia das ciências do espírito sua igualdade de categoria com as ciências da natureza. Para isso a hermenêutica romântica veio-lhe ao encontro, na medida em que, como já vimos, esta própria não levava em conta a essência histórica da experiência. Pressupunha que o objeto da compreensão é o texto a ser decifrado e compreendido em seu sentido. Assim, todo encontro com um texto é, para ela, um auto-encontro do espírito. Todo texto é suficientemente estranho para representar uma tarefa, e, no entanto, suficientemente familiar para manter sua essencial possibilidade de resolução, mesmo quando não se saiba de um texto a não ser que é texto, escrito ou espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
É indubitável que, com isso, não se satisfaça ao objetivo da escola histórica. A hermenêutica romântica e o método filológico, sobre os quais ela se ergue, não são base suficiente para a história; da mesma forma, não é satisfatório para Dilthey o conceito dos procedimentos indutivos que se pede emprestado [246] às ciências da natureza. A experiência histórica, tal como ele fundamentalmente a entende, não é um procedimento e não possui a anonimidade de um método. Certamente que dela se podem deduzir regras de experiência gerais, mas o seu valor metodológico não é o do conhecimento de leis, sob as quais se possam subsumir univocamente os casos que apareçam. Antes, as regras da experiência exigem um uso já experimentado e são, no fundo, o que são apenas nesse uso particular. Frente a essa situação é preciso admitir que o conhecimento das ciências do espírito não é o mesmo das ciências indutivas, mas possui uma objetividade bem diferente e deve ser adquirido de uma maneira totalmente diversa. A fundamentação das ciências do espírito na filosofia da vida de Dilthey e a sua crítica a todo dogmatismo, bem como ao dos empiristas, procuram tornar válido exatamente isso. Mas o cartesianismo epistemológico, ao qual não consegue escapar, acabou sendo mais forte, de maneira que, para Dilthey, a historicidade da experiencia histórica não chegou a se tornar verdadeiramente determinante. É verdade que Dilthey não menosprezou a significação que tem a experiencia de vida, tanto individual como universal, para o conhecimento das ciencias do espirito — mas ambos, para ele, são determinados de maneira meramente privada. Trata-se de uma indução não-metódica, carente de verificação, que já aponta para a indução metódica da ciencia. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Como vimos, o conceito de mundo da vida se opõe a todo objetivismo. Trata-se de um conceito essencialmente histórico, que não tem em mente a um universo do ser, a um “mundo que é”. Nem mesmo a ideia infinita de um mundo verdadeiro, partindo-se da progressão infinita dos mundos humano-históricos, deixa-se formular com sentido na experiência histórica. É verdade que se pode indagar pela estrutura do que abrange a todos os mundos ambientais experimentados alguma vez pelos homens, que representa, com isso, a possível experiência do mundo como tal e, nesse sentido, é que se pode perfeitamente falar de uma ontologia do mundo. Uma tal ontologia do mundo continuaria sendo sempre algo bastante diferente do que poderiam produzir as ciências da natureza, pensadas até o fim. Ela representaria uma tarefa filosófica que toma a estrutura essencial do mundo por objeto. Mas mundo da vida quer dizer outra coisa, o todo em que estamos vivendo enquanto seres históricos. E aqui já não se pode mais evitar a [252] conclusão de que, diante da historicidade da experiência nela implicada, a ideia de um universo de possíveis mundos da vida históricos é fundamentalmente irrealizável. A infinitude do passado, mas sobretudo o caráter aberto do futuro histórico não é conciliável com essa ideia do universo histórico. Husserl extraiu explicitamente essa conclusão, sem retroceder ante o “fantasma” do relativismo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Ele oferece exatamente o que acima sentimos fazer falta em Dilthey e Husserl. Entre o idealismo especulativo e o novo ponto de vista da experiência de seu século estende-se uma ponte, no sentido de que o conceito da vida é apresentado como o que abrange ambas as direções. A análise da vitalidade, que constitui o ponto de partida de Yorck, por mais especulativo que soe, inclui o modo de pensar das ciências da natureza próprio de seu século — explicitamente, o conceito da vida de Darwin. Vida é auto-afirmação. Essa é a base. A estrutura da vitalidade consiste em ser julgamento, ou seja, afirmar-se a si mesmo como unidade na participação e articulação de si mesmo. Mas o julgamento mostra-se também como a essência da autoconsciência, pois mesmo quando ela se dirime constantemente no si-próprio e no outro, sua consistência, no entanto — enquanto ser vivo — se mantém no jogo e contra-jogo desses seus fatores constitutivos. Pode-se dizer dela o que se afirma [256] de toda vida, que é prova, isto é, experimento. “Espontaneidade e dependência são os caracteres básicos da consciência; são constitutivos tanto no âmbito da articulação somática como da psíquica, do mesmo modo que sem objetividade não existiria nem o ver ou o sentir corporal, nem tampouco o imaginar, o querer ou o experimentar”. Também a consciência deve ser entendida como um comportamento vital. Essa é a exigência metódica fundamental que Yorck coloca à filosofia e na qual se considera uno com Dilthey. E a esse alicerce oculto (Husserl diria: sobre esse desempenho oculto) há que se reconduzir o pensamento. Para isso torna-se necessário o esforço da reflexão filosófica. Pois a filosofia age opondo-se à tendência da vida. Yorck escreve: “O fato é que o nosso pensamento se move nos resultados da consciência” (ou seja, o pensamento não tem consciência da relação real desses “resultados” com o comportamento vital, sobre o qual repousam os mesmos). “A diremptio alcançada é aquele pressuposto”. O conde Yorck quer dizer com isso que os resultados do pensamento somente são resultados, na medida em que se encontrem separados e se deixem separar do comportamento vital. A partir daí o conde Yorck conclui que a filosofia tem de reverter essa divisão. Tem de repetir, na direção inversa, o experimento da vida “com o fim de reconhecer as relações que condicionam os resultados da vida”. Isso pode estar formulado de uma maneira muito objetivista e natural-científica, e a teoria husserliana da redução poderia apelar, diante disso, à sua forma de pensar estritamente transcendental. Na verdade, nas reflexões de Yorck, ousadas e conscientes de seus objetivos, não somente se mostra com grande clareza a tendência comum a Dilthey e a Husserl, senão que nelas ele aparece como nitidamente superior a estes. Pois, aqui, o pensamento prossegue realmente o nível da filosofia da identidade do idealismo estético e, com isso, torna-se evidente a procedência oculta do conceito da vida de que estão em busca Dilthey e Husserl. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
À luz da ressuscitada questão do ser, Heidegger dá uma mudança nova e radical a tudo isso. Segue a Husserl no fato de que o ser histórico não precisa destacar-se, como em Dilthey, face ao ser da natureza para legitimar epistemologicamente a peculiaridade metódica das ciências históricas. Ao contrário, a forma de conhecer das ciências da natureza evidencia-se como uma forma desviada de compreensão, “que se perdeu na tarefa apropriada de acolher o que é simplesmente dado em sua [264] incompreensibilidade essencial”. Compreender não é um ideal resignado da experiência de vida humana na idade avançada do espírito, como em Dilthey, mas tampouco, como em Husserl, um ideal metódico último da filosofia frente à ingenuidade do ir-vivendo, mas ao contrário, é a forma originária de realização da pre-sença, que é ser-no-mundo. Antes de toda diferenciação da compreensão nas diversas direções do interesse pragmático ou teórico, a compreensão é o modo de ser da pre-sença, na medida em que é poder-ser e “possibilidade”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Isso representa uma provocação para a hermenêutica tradicional. É verdade que na língua alemã a compreensão (Verstehen) designa também um saber fazer prático (“er versteht nicht zu lesen” “ele não entende ler”, o que significa tanto como: “ele fica perdido na leitura”, ou seja, não sabe ler). Mas isso parece muito diferente do compreender orientado cognitivãmente no exercício da ciência. Obviamente, se se olha mais detidamente, surgem traços comuns: nos dois significados aparece a ideia de conhecer, entender do assunto. E mesmo aquele que “compreende” um texto (ou mesmo uma lei) não somente projetou-se a si mesmo a um sentido, comprendendo — no [265] esforço do compreender — mas que a compreensão alcançada representa o estado de uma nova liberdade espiritual. Implica a possibilidade de interpretar, detectar relações, extrair conclusões em todas as direções, que é o que constitui o entender do assunto dentro do terreno da compreensão dos textos. E isso vale também para aquele que entende de uma máquina, isto é, aquele que entende de como se deve tratar com ela, ou aquele que entende de um ofício, ferramenta: admitindo-se que a compreensão racional-finalista está sujeita a normas diferentes do que, p. ex., a compreensão de externalizações da vida ou textos, o que é verdade é que todo compreender acaba sendo um compreender-se. Enfim, também a compreensão de expressões se refere não somente à captação imediata do que contém a expressão, mas também ao descobrimento do que há para além da interioridade oculta, de maneira que se chega a conhecer esse oculto. Mas isso significa que a gente tem de se haver com isso. Nesse sentido vale para todos os casos que aquele que compreende se compreende, projeta-se a si mesmo rumo à possibilidades de si mesmo. A hermenêutica tradicional havia estreitado, de uma maneira inadequada, o horizonte de problemas a que pertence a compreensão. A ampliação que Heidegger empreende, para além de Dilthey, será, por essa mesma razão, fecunda também para o problema da hermenêutica. E verdade que já Dilthey havia rechaçado, para as ciências do espírito, os métodos das ciências da natureza, e que Husserl havia qualificado de “absurda” a aplicação do conceito natural-científico de objetividade às ciências do espírito, estabelecendo a relatividade essencial de todo mundo histórico e de todo conhecimento histórico. Porém agora torna-se visível pela primeira vez a estrutura da compreensão histórica em toda sua fundamentação ontológica, sobre a base da futuridade existencial da pre-sença humana. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
O fato de que nas ciências do espírito esteja operante um momento da tradição, que inclusive constitui sua verdadeira essência e sua característica, a despeito de toda a metodologia inerente ao seu procedimento, é algo que se torna logo patente, se se considera a história da investigação e a diferença entre a [288] história da ciência, que se dá no âmbito das ciências do espírito, e a que se dá no âmbito das ciências da natureza. Evidentemente que não pode haver nenhum esforço histórico e finito do homem que possa apagar completamente os indícios dessa finitude. Também a história da matemática ou das ciências da natureza é uma porção da história do espírito humano e reflexo de seus destinos. Porém, por outra parte, não é mera ingenuidade histórica, o fato de que o investigador da natureza escreva a história de sua ciência a partir do estado atual de seus conhecimentos. Os erros e os desvios não têm para ele outro interesse que não seja o meramente histórico, pois o progresso da investigação é o padrão auto-evidente a ser considerado. Por consequência, a consideração dos progressos da ciência da natureza ou da matemática como parte de seu momento histórico constitui apenas um interesse secundário. O valor cognitivo dos conhecimentos natural-científicos ou matemáticos permanece intocado por esse outro interesse. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Portanto, não é necessário pôr em discussão que também nas ciências da natureza podem estar operantes momentos da tradição, por exemplo, sob a forma de que em certas ocasiões preferem-se determinadas orientações de investigação. Porém, a investigação científica como tal não recebe as leis de seu progresso dessas circunstâncias, mas unicamente da lei da coisa que se abre aos seus esforços metódicos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O que é que subjaz a tudo isso? É evidente que não se pode falar de um “objeto idêntico” da investigação, nas ciências do espírito, no mesmo sentido que ele se dá nas ciências da natureza, onde a investigação penetra cada vez mais profundamente na natureza. Nas ciências do espírito o interesse investigador que se volta para a tradição é motivado, de uma maneira especial, pelo respectivo presente e seus interesses. Somente na motivação do questionamento é que deveras se constitui, como tal, o tema e o objeto da investigação. Com isso, a investigação histórica é suportada pelo movimento histórico em que se encontra a própria vida, e não se deixa compreender ideologicamente a partir do objeto a que se orienta a investigação. Em si, um tal objeto não existe de modo algum. É isso o que distingue as ciências do espírito das da natureza. Enquanto o objeto das ciências da natureza pode ser determinado idealiter como aquilo que seria conhecido num conhecimento completo da natureza, não faz sentido falar-se de um conhecimento completo da história. E por isso não é adequado, em última análise, falar de um “objeto em si” ao qual se orientasse essa investição [290]. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Não há dúvidas de que é uma provocação à autocompreensão das ciências do espírito libertar-se, no conjunto de suas atividades, do modelo das ciências da natureza, e considerar a mobilidade histórica de seu tema não somente como um prejuízo de sua objetividade, mas também como algo positivo. Nesse meio tempo, surgiram no novo desenvolvimento das próprias ciências do espírito algumas iniciativas visando a um gênero de reflexão que verdadeiramente pode fazer jus ao estado do problema. O metodologismo ingênuo da investigação histórica já não domina sozinho o campo. O progresso da investigação já não se entende de modo generalizado como expansão e penetração em novos âmbitos e materiais, senão que, em vez disso, como o alcançar um nível de reflexão mais elevado dentro dos correspondentes questionamentos. É evidente que, mesmo desse ponto de vista, continua-se pensando teleologicamente, sob o padrão do progresso da investigação, como sempre convém ao investigador. Porém, junto a isso começa a entrever-se também uma consciência hermenêutica que perpassa a investigação com um interesse mais auto-reflexivo. Isso ocorre sobretudo nas ciências do espírito que contam com uma tradição mais antiga. A ciência clássica da antiguidade, por exemplo, depois de ter elaborado sua própria tradição em círculos cada vez mais extensos, voltou-se sempre de novo, com questionamentos cada vez mais afinados, para os velhos objetos preferenciais de sua ciência. Com isso introduziu uma espécie de autocrítica, na medida em que começou a refletir sobre o que perfaz realmente a excelência de seus objetos mais excelentes. O conceito do clássico, que no pensamento histórico, a partir do descobrimento do helenismo por Droysen, tinha sido reduzido a um mero conceito estilístico, obtém agora um novo direito de cidadania. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Quando Schleiermacher e, seguindo seus passos, a ciência do século XIX vão mais além da “particularidade” dessa reconciliação da antiguidade clássica e cristianismo e concebem a tarefa da hermenêutica a partir de uma generalidade formal, conseguem estabelecer a concordância com o ideal de objetividade próprio das ciências da natureza, mas somente ao preço de renunciar a fazer valer a concreção da consciência histórica dentro da teoria hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Mas, se reconhecemos isso, então a melhor maneira de [344] levar a filologia à sua verdadeira dignidade e a uma adequada compreensão de si mesma seria libertando-a da historiografia. Só que isso me parece só meia verdade. Temos de nos questionar, antes, se também a imagem do comportamento histórico, que foi orientadora aqui, não: estaria deformada. Talvez não somente o filólogo, mas também o historiador, deva orientar seu comportamento, menos segundo o ideal metodológico das ciências da natureza, que segundo o modelo que nos oferecem a hermenêutica jurídica e a hermenêutica teológica. Pode ser certo que o tratamento que o historiador confere aos textos seja especificamente diverso da vinculação original do filólogo com seus textos. Pode ser certo também que o historiador procure ir até atrás de seus textos com o fim de obrigá-los a uma conclusão que eles não querem dar e que por si mesmos tampouco poderiam fazê-lo. Se se mede segundo o padrão que apresenta um só texto, as coisas parecem ser efetivamente assim. O historiador se comporta com os seus textos como o juiz de instrução no interrogatório das testemunhas. Entretanto, a mera constatação de fatos que este consegue extrair a partir das atitudes preconcebidas de uma testemunha não esgota a tarefa do historiador; esta só chega ao seu final quando se compreendeu o significado dessas constatações. Com os testemunhos históricos ocorre algo parecido ao que se passa com as declarações das testemunhas num julgamento. O fato de que se use o mesmo não é uma casualidade. Em ambos os casos o testemunho é um meio para estabelecer fatos. Todavia, tampouco estes são o verdadeiro objeto, mas unicamente o material para a verdadeira tarefa: no juiz, encontrar o direito; no historiador, determinar o significado histórico de um acontecimento no conjunto de sua autoconsciência histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Isso é exatamente o que se tem de reter para a análise da consciência da história efeitual: que ela tem a estrutura da experiência. Por paradoxal que seja, o conceito da experiência me parece um dos menos que possuímos. Devido ao papel orientador que desempenha na lógica da indução, para as ciências da natureza, viu-se submetido a uma esquematização epistemológica que me parece encurtar amplamente seu conteúdo originário. Gostaria de recordar que já Dilthey acusava, no empirismo inglês, uma certa falta de formação histórica. Para nós, que detectamos em Dilthey uma vacilação não explícita entre o motivo da “filosofia da vida” e o da teoria da ciência, essa nos parece somente uma crítica pela metade. De fato, a deficiência da teoria da experiência, que constatamos até hoje, e que afeta também a Dilthey, consiste em que ela está integralmente orientada para a ciência e, por conseguinte, não percebe a historicidade interna da experiência. O escopo da ciência é objetivar a experiência até que fique livre de qualquer momento histórico. No experimento natural-científico consegue-se isso através do modo de seu aparato metodológico. Algo parecido realiza também o método histórico-crítico nas ciências do espírito. Num e noutro caso a objetividade ficaria garantida pelo fato de que as experiências que jazem ali poderiam ser repetidas por qualquer pessoa. Tal como na ciência da natureza os experimentos têm de ser possíveis de comprovação posterior, também nas ciências do espírito o procedimento completo tem que ser passível de controle. Nesse sentido, na ciência não pode restar lugar para a historicidade da experiência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Ainda menos consistente é, sem dúvida, a imagem oposta que esta investigação faz das ciências da natureza. Tenho claro para mim que, aqui, se deixou para trás um amplo campo de problemas hermenêuticos, que ultrapassa meu próprio alcance no processo de investigação científica. Somente nas ciências histórico-filológicas cheguei a participar esporadicamente e com alguma competência do trabalho de investigação das mesmas. Onde não posso estudar trabalhos originais, sinto não ter o direito de querer conscientizar o investigador do que ele faz ou do que acontece com ele. A essência da reflexão hermenêutica consiste justamente em que ela deve surgir da práxis hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Já em 1934, na crítica acertada de Moritz Schlick ao dogma das proposições protocolares, via com clareza que as ciências da natureza incluem uma problemática hermenêutica. Todavia, quando as ideias desse livro se desenvolveram, nos anos trinta, anos em que as circunstâncias temporais trouxeram consigo um crescente isolamento, a concepção que se impôs formalmente foi o fisicalismo e a unity ofsáence. O linguistic turn da investigação anglo-saxônica ainda não havia despontado no horizonte. Só pude estudar a obra tardia de Wittgenstein depois de ter atravessado minha própria trajetória de pensamento. E também foi só bem mais tarde que comprovei na crítica de Popper ao positivismo motivos muito próximos à minha própria orientação. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
No ano de 1841, o velho Schelling foi convidado a ocupar a cátedra de filosofia em Berlim e enfrentar os efeitos política e cientificamente perigosos de Hegel. Sem que o soubesse ou quisesse, a crítica de Schelling a Hegel acabou decretando o fim da posição de liderança da filosofia na cultura ocidental. Não foi a sua própria filosofia que se impôs, mas a predominância metodológica das ciências da natureza. Também o problema da história formulou-se segundo esse modelo metodológico. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.
Ao sair das profundezas do hegelianismo epigonal e do materialismo acadêmico da metade do século, a filosofía passou a se afirmar sob o signo de Kant e de seu questionamento epistemológico pela fundamentação da ciência. Na Crítica da razão pura, Kant respondeu à questão pela possibilidade de uma ciência pura da natureza. Isso agora foi ultrapassado na medida em que se pergunta pela possibilidade da ciência da história. Ao lado da Crítica da razão pura, procurou-se colocar uma Crítica da razão histórica (para usar uma expressão de Wilhelm Dilthey). O problema da história apresentou-se como o problema da ciência da história. Como esta adquire seu direito de ser uma teoria do conhecimento? Perguntar desta forma, porém, significou medir a [29] ciência da história nos moldes das ciências da natureza. O livro clássico da lógica neokantiana da história traz um título bem característico: “Os limites da formação conceitual das ciências da natureza”. Nele, Heinrich Rickert procura demonstrar o que caracteriza o objeto da história, e porque na história em lugar de se procurar leis universais, como na ciência da natureza, reconhece-se o singular, o individual. O que é que transforma um mero fato numa realidade histórica? A resposta é: Seu significado, isto é, sua relação com o sistema dos valores culturais humanos. Neste questionamento, apesar de todas as restrições, o modelo de conhecimento das ciências da natureza continua sendo o determinante. O problema da história resume-se inteiramente no problema epistemológico sobre a possibilidade de uma ciência da história. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.
Como se cumpre esse trabalho da vida, formador de pensamentos? Dilthey fundamenta sua filosofia na experiência interna da compreensão, a qual nos abre a realidade que resiste ao conceito. Todo conhecimento histórico é uma tal compreensão. A compreensão não é, porém, somente o procedimento da ciência histórica, mas uma determinação fundamental do ser humano. Isso repousa sobre o fato de termos vivências, que nos são conscientes. Essas vivências configuram-se na “recordação” para a compreensão significativa. Dilthey apoiou-se aqui no pensamento romântico, ao reconhecer que esta compreensão significativa está estruturada [31] de modo bem diferente do que o procedimento cognitivo das ciências da natureza. Aqui não se transita de um elemento para outro e deste para o próximo, para com isso abstrair-lhe o comum. Antes, a vivência singular já é sempre uma totalidade significativa, um nexo reunitivo. E por isso a vivência singular constitui uma parte da totalidade do decurso da vida. Apesar disso, seu significado está referido a essa totalidade de um modo todo próprio. Não é a última coisa vivenciada por alguém que consuma e determina o significado do nexo de vida. O sentido de um destino de vida é, antes, uma totalidade própria que se forma não a partir do final, mas de um centro formador de sentido. O significado do nexo não se forma em torno da última vivência, mas em torno da vivência decisiva. Um instante pode ser decisivo para toda uma vida. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.
Mas essa ausência de preconceitos não é uma ausência condicionada? Essa reivindicação não tem sempre o sentido polêmico de estar livre deste ou daquele preconceito? Será que a reivindicação da ausência de preconceitos (como nos ensina também a experiência da vida humana) não camufla, na verdade, a persistência teimosa de preconceitos que acabam nos determinando de modo imperceptível? Conhecemos isso suficientemente a partir do modo como os historiadores trabalham. Pretendem ser críticos, isto é, ouvir as fontes e testemunhas sobre uma questão histórica, munidos da justiça superior de um juiz, para ver o que está por trás das coisas. Mas esta pretensa crítica superior já não vem sempre precedida e sustentada por uma atuação silenciosa de preconceitos orientadores? No fundo de toda crítica das fontes e dos testemunhos encontra-se sempre um último parâmetro de credibilidade, que depende apenas de uma coisa: do que se considera possível e se está disposto a acreditar. Sim, no fundo ainda resta algo mais a ser dito. Assim como a vida real, também a história só nos interessa quando sua fala atinge nosso julgamento prévio sobre as coisas, as pessoas e as épocas. Toda compreensão do que é significativo pressupõe que articulemos conjuntamente um uso desses preconceitos. Heidegger caracterizou esse estado de coisas como círculo hermenêutico: compreendemos somente o que já sabemos; ouvimos somente o que colocamos na leitura. Medido pelos parâmetros do conhecimento das ciências da natureza, isso parece inadmissível. Na verdade, só assim torna-se possível a compreensão histórica. Não se trata de evitar um tal círculo, mas de entrar nele de modo correto. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.
I — O conceito de ciência moderna foi cunhado pelo desenvolvimento da ciência da natureza do século XVII. Deve-se a ele um crescente domínio da natureza, e desta forma espera-se também que a ciência do homem e da sociedade ofereça o mesmo domínio do universo humano-histórico. Espera-se das ciências do espírito até mais, uma vez que o crescente domínio da natureza pela ciência ao invés de diminuir o mal-estar da cultura acabou aumentando-o. Os métodos das ciências da natureza não apreendem tudo que é digno de se saber, nem sequer o que é mais digno de se saber, ou seja, os fins últimos aos quais deve estar subordinado todo domínio dos recursos da natureza e do homem. O que se espera das ciências do espírito e da filosofía, nelas contidos, são conhecimentos de uma outra espécie e de uma outra ordem. E assim parece que precisamos falar não do elemento comum que o uso dos métodos científicos coloca para toda a ciência, mas do elemento singular que faz com que as ciências do espírito sejam tão significativas e tão dignas de serem pensadas. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.
A utilização de métodos de certo também faz parte do trabalho das ciências do espírito. Esta distingue-se da literatura científica popular também por uma certa possibilidade de verificação. Mas isso tudo se refere mais aos materiais do que às consequências que se podem tirar destes. Não é que a ciência possa, através de sua metodologia, garantir a verdade. Às vezes pode haver mais verdade na obra não-científica de um amador do que numa avaliação metodológica do material. Na verdade, poder-se-ia demonstrar que o desenvolvimento das ciências do espírito nos últimos cem anos teve no modelo das ciências da natureza um constante ponto de referência, porém os seus impulsos mais decisivos e essenciais não provieram do pathos dessas ciências experimentais, mas do espírito do romantismo e do idealismo alemão. Elas têm viva consciência dos limites do Iluminismo e do método da ciência. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.
A ideia de condicionalidade de todo conhecimento pelos [39] poderes históricos e sociais que movem a atualidade não representa apenas um enfraquecimento teórico de nossa crença no conhecimento. Significa também uma conivência real de nosso conhecimento com relação aos poderes da época. As ciências do espírito são colocadas a serviço dessas tendências, são avaliadas pelo significado que seus conhecimentos sociais, políticos, religiosos prestam ao poder vigente. Desta forma, reforçam a pressão que o poder exerce sobre o espírito. Diante de toda espécie de terror, elas são incomparavelmente mais susceptíveis do que as ciências da natureza, porque nelas não há nenhum parâmetro para distinguir, com segurança invejável, o autêntico e correto da intenção oculta e simulada. Desta forma, a última comunidade ética que as liga com o ethos de toda investigação corre o risco de perder-se. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.
Aquele que enfrenta, em toda sua problematicidade reflexiva, essa reflexão que acompanha a verdade das ciências do espírito haverá de preferir invocar uma testemunha insuspeita, sobretudo se fizer parte de um círculo de investigadores da natureza e de leigos que permitem que seu universo de ideias seja determinado pela ciência da natureza: O grande físico Hermann Helmholtz, há cerca de cem anos, falou sobre a diferença entre as ciências da natureza e as ciências do espírito. A justiça e a imparcialidade perspicaz com que ele elaborou o caráter peculiar das ciências do espírito merecem respeito ainda hoje. É verdade que também ele dimensionou o modo de trabalho das ciências do espírito segundo os métodos das ciências da natureza, descrevendo-o a partir destas. Com isso, ficou fácil compreender por que as deduções apreensivas e rápidas com que as ciências alcançam seus resultados não poderiam satisfazer à sua necessidade lógica. Ele percebeu, no entanto, que é este o modo em que as ciências do espírito alcançam a verdade e que são necessárias condições humanas de outra espécie quando se pretende que essas deduções rápidas realmente concluam alguma coisa. Tudo o que pertence aos âmbitos da memória, da fantasia, do tato, da sensibilidade musical e da experiência de mundo tem um caráter diferente dos aparatos de que se serve o investigador da natureza. Elas, sem dúvida, incluem um instrumentado, que no entanto não pode ser feito, mas se desenvolve quando alguém se empenha em trilhar os caminhos da grande tradição da história da humanidade. Por isso, aqui não vale apenas a máxima do Iluminismo: Tem a coragem de servir-te de teu entendimento. Também o contrário tem validade aqui, ou seja, a autoridade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.
Foi uma resposta muito acertada. Mas será que algum professor ou aluno das ciências da natureza consideraria isto como uma resposta? Em geral não sabemos dizer porque esta ou aquela suposição filosófica ou histórica do principiante é “impossível”. É uma questão de tato, adquirida no trato incansável com as coisas, que não pode contudo ser ensinado e nem demonstrado. No entanto, numa situação pedagógica como a que descremos acima, é quase sempre certo que o professor experiente está certo e o principiante está errado. Em todo caso, com relação a estas condições peculiares de verdade, dá-se também o caso em que, frente à investigação, não temos nenhum parâmetro absolutamente seguro que nos permita distinguir uma contribuição autêntica de uma mera pretensão; sucede também que às vezes duvidamos se o que dizemos contém realmente a verdade que presumimos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.
Penso que as ciências do espírito fornecem um testemunho convincente a respeito deste problema. Também nelas há algo que pode ser subordinado ao conceito metodológico da ciência moderna. Todos nós precisamos admitir o ideal da verificabilidade de todos os conhecimentos dentro dos limites do possível. No entanto, devemos confessar que muito raramente alcançamos este ideal e que os investigadores que buscam alcançar esse ideal da forma mais precisa possível, na maioria das vezes não estão capacitados a dizer-nos as coisas verdadeiramente importantes. Desta forma, há algo nas ciências do espírito que não pode ser pensado do mesmo modo nas ciências da natureza: que o investigador pode aprender muito mais lendo um livro de um diletante do que lendo livros de outros investigadores. É claro que estes são casos excepcionais. Porém, o fato disto ser possível mostra que aqui se estabelece uma relação entre o conhecimento da verdade e a possibilidade de ser dito, que não pode ser medido pela verificabilidade do enunciado. Sabemos disto tão bem, através das ciências do espírito, que abrigamos a desconfiança justificada contra um determinado tipo de trabalho científico que mostra muito claramente, à frente e atrás e sobretudo abaixo, isto é, nas notas, o método com que são elaborados. Será que ali se pergunta realmente por algo novo? Chega-se realmente a conhecer alguma coisa? Ou será que se repete de tal modo o método de conhecimento, e esmera-se de tal modo em suas fórmulas exteriores, que o trabalho dá a impressão de ser cientifico? Temos de confessar, ao contrário, que as maiores e mais fecundas produções das ciências do espírito estão muito distantes do ideal de verificabilidade. Do ponto de vista filosófico, isto é muito importante. Pois não se trata de que o investigador não-original queira fazer-se passar por um especialista, dissimulando uma intenção impostora, e que pelo contrário o investigador fecundo tenha de destronar, pelo protesto revolucionário, tudo o que até o presente tinha [51] validade na ciência. Talvez possa mostrar-se aqui uma relação objetiva, segundo a qual aquilo que possibilita a ciência pode igualmente impedir a fecundidade do conhecimento científico. Trata-se de uma relação principiai entre verdade e não-verdade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.
Que a linguagem seja o centro pelo qual a consciência se conjuga com o ente, não é em si nenhuma novidade. Já Hegel havia caracterizado a linguagem como o centro da consciência, pelo qual o espírito subjetivo intermedeia-se com o ser dos objetos; posteriormente, Ernst Cassirer ampliou o estreito ponto de partida do neokantianismo, o fato da ciência, transformando-o numa filosofia das formas simbólicas, que não apenas abarca unitariamente as ciências da natureza e as ciências do espírito, mas que também deve dar uma fundamentação transcendental ao comportamento cultural humano como um todo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
A função que a busca de linguagem desempenha na filosofia é primordial. É o que se pode perceber pela função desempenhada aqui pela terminologia: em si, em sua configuração no âmbito da linguagem o conceito apresenta-se como termo, isto é, como uma palavra bem circunscrita e univocamente delimitada em sua significação. Todo mundo sabe, porém, que não é possível um falar terminológico, nos moldes da exatidão do cálculo com símbolos matemáticos. É verdade que o falar lança mão de termos. Mas isso significa que esses termos se incorporam constantemente no processo de entendimento, exercendo sua função própria de linguagem no seio desse processo. Em contraposição à possibilidade de criar termos fixos que exerçam funções de conhecimento determinadas, como acontece nas ciências e de modo exemplar na matemática, o uso filosófico da linguagem, como vimos, não possui outra credencial a não ser que se dá na linguagem. O que ali se exige é certamente uma credencial específica, enquanto a primeira tarefa apresentada para a correlação de palavra e conceito, de linguagem falada e pensamentos que se articulam em palavras conceptuais. Trata-se de esclarecer o encobrimento da origem conceitual das palavras filosóficas, se quisermos demonstrar a legitimidade de nossas perguntas. Um exemplo clássico que vivenciamos nesse século é a descoberta do pano de fundo histórico-conceitual, oculto no conceito de “sujeito” e suas implicações ontológicas. “Sujeito”, em grego, é hypokeimenon, o subjacente, palavra introduzida por Aristóteles para designar, diante da mudança de diversas formas fenoménicas do ente, aquilo que não muda, e subjaz a essas qualidades mutáveis. Mas será que quando se usa a palavra sujeito ainda se ouve esse hypokeimenon, subiectum, que subjaz a tudo o mais, uma vez que estamos, todos nós, inseridos na tradição cartesiana, pensando o conceito de sujeito como a auto-reflexão, o ter consciência de si? Quem ouve ainda que “sujeito” é originalmente “o que subjaz no fundo”? Mas pergunto também quem não o ouve ali? Quem não pressupõe que aquilo que se determina pela auto-reflexão está ali como um ente que se conserva na mudança de suas qualidades como o que subjaz no fundo, como o suporte? O encobrimento (Unaufgedeckheit) dessa genealogia histórico-conceitual fez com que se pensasse o sujeito como algo caracterizado pela sua autoconsciência, só consigo mesmo e colocado diante da incômoda questão de como poderá sair dessa sua splendid isolation. Foi assim que surgiu a pergunta pela realidade do mundo exterior. Foi a crítica de nosso século que reconheceu que a pergunta sobre como nosso pensamento, nossa consciência poderia alcançar o mundo externo, estava falsamente colocada, uma vez que consciência não é outra coisa do que consciência de algo. A primazia da autoconsciência frente à consciência de mundo é um preconceito ontológico que se enraíza, em última instância, na influência incontrolado do conceito de subiectum, no sentido de hypokeimenon, ou do correspondente conceito latino de substância. A autoconsciência determina a substância autoconsciente frente a todo outro ente. Mas como podem se encontrar a natureza extensa e a substância autoconsciente? Como essas substâncias tão distintas entre si podem se influenciar? Esse foi o célebre problema dos inícios da filosofia moderna, que é também a base do suposto dualismo metodológico entre ciências da natureza e ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
Não é nenhum exagero afirmar que, bem mais do que o progresso das ciências da natureza, foi a racionalização de seu emprego técnico-científico que produziu essa nova fase da revolução industrial em que nos encontramos. Creio que o que caracteriza o perfil de nossa época não é o crescimento exagerado do domínio da natureza, mas o desenvolvimento de métodos científicos de controle para a vida da sociedade. É só assim que a marcha vitoriosa da ciência moderna, iniciada no século XIX, passou a ser um fator social predominante. Só agora o pensamento científico, à base de nossa civilização, apoderou-se de todos os âmbitos da práxis social. A investigação científica do mercado, a condução científica da guerra, a ciência da política externa, o controle científico da natalidade, a ciência para a condução da vida humana etc. conferem ao especialista em economia e sociedade um lugar central. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.
A ciência moderna surge no século XVII, tomando por base o pensamento do método e do asseguramento metódico do progresso no conhecimento. Ela alterou radicalmente nosso planeta, ao privilegiar uma forma de acesso ao mundo, que não é a única e nem a mais abrangente que possuímos. Trata-se do acesso que, pelo isolamento metódico e pela interrogação consciente — no experimento — , prepara os âmbitos particulares, tematizados por esse isolamento, para uma nova intervenção de nosso agir. Essa foi a grande contribuição das ciências da natureza e especialmente da mecânica de Galileu no século XVII. Como se sabe, a contribuição espiritual do descobrimento da lei da queda livre dos corpos e do plano inclinado não se obteve pela simples observação. Não havia vácuo. A queda livre foi uma abstração. Todo mundo pode se lembrar da admiração causada ao se observar o experimento feito em sala de aula, quando no vácuo relativo a folha de chumbo e a pena de ave caem na mesma velocidade. O que Galileu fez foi isolar condições que não ocorrem na natureza, quando abstraiu da resistência do meio. Mas é só essa abstração que possibilita a descrição matemática exata dos fatores que dão um resultado no processo da realidade natural, possibilitando assim a intervenção controlada do homem. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
Será que existe na realidade uma linguagem científica própria a que devemos escutar? Toda expressão é evidentemente ambígua. Por um lado, desenvolve um recurso de linguagem próprio para a fixação e o entendimento comunicativo no próprio processo de investigação. Por outro, e isso significa algo bem diverso, a ciência utiliza uma linguagem que pretende atingir a consciência pública e superar a legendária incompreensibilidade da ciência. Mas será que os sistemas comunicativos desenvolvidos no interior da investigação científica têm o caráter eminente de uma linguagem própria? Nesse sentido, quando falamos de linguagem da ciência, referimo-nos evidentemente a esses sistemas de comunicação que não derivam da linguagem cotidiana. O melhor exemplo é a matemática e sua função nas ciências da natureza. O que a matemática é em si mesma, isso é seu mistério mais privado. Nem sequer os físicos o sabem. O que ela conhece, qual o seu objeto, quais são suas questões, é algo muito peculiar. Que a matemática se desenvolva em si mesma, que considere a si mesma como razão, permanecendo dentro de si mesma na própria investigação, isso constitui uma das maiores maravilhas da razão humana. Mas, enquanto linguagem, em que se fala sobre o mundo, a matemática é mais um sistema de símbolos dentro do conjunto de nosso comportamento na linguagem e não uma linguagem própria. Sabe-se que o físico encontra-se sempre numa situação difícil quando, fora de suas equações, procura fazer compreender a outros e a si próprio os cálculos que fez e sofre constantemente a tensão dessa tarefa de integração. Muitas vezes, os grandes físicos tornam-se sumamente poéticos. Tudo que fazem os átomos, como se capturam elétrons e realizam outras operações valorosas e astuciosas, tudo isso representa uma linguagem de contos de fadas, na qual um físico procura tornar compreensível para si mesmo e, dentro de certos limites, também para nós o que ele retrata de modo exato pelas equações. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
Mas isso não tem muita importância para as ciências da natureza, como tais. O pesquisador da natureza sabe perfeitamente quão particular é o âmbito de conhecimento de sua ciência no todo da realidade humana. Não partilha do endeusamento que a opinião pública lhe atribui. E assim que, tanto a opinião pública quanto o pesquisador que recorre a ela precisam da reflexão hermenêutica sobre as pressuposições e limites da ciência. Na suposição de que ainda consigam exercê-la, as assim chamadas humaniora dispõem de uma boa comunicação com a consciência geral, porque seus objetos pertencem imediatamente à tradição cultural e ao corpo formativo tradicional. Mas as ciências sociais mantêm uma relação especialmente [249] tensa com seu objeto, a realidade social, necessitando assim da reflexão hermenêutica. O estranhamento metodológico, a que elas devem seu progresso, refere-se aqui ao todo do mundo humano-social. Por causa desse estranhamento, o mundo vê-se colocado à disposição da ciência, no que se refere à planificação, direção, organização, desenvolvimento, enfim, numa infinidade de funções que determinam por assim dizer a partir de fora a vida de cada indivíduo e de cada grupo. O engenheiro social que cuida do funcionamento da máquina social parece dissociado da sociedade a que pertence. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Vamos explicitar concretamente esse pensamento. A reflexão efetuada pela hermenêutica filosófica seria crítica no sentido de que descobriria o objetivismo ingênuo onde se encontra enredada a autocompreensão das ciências históricas, orientada nas ciências da natureza. Aqui a crítica da ideologia lança mão da reflexão hermenêutica interpretando o caráter de preconceito de toda compreensão como uma crítica da sociedade. Ou a reflexão hermenêutica descobre falsos embasamentos (Hypostasierungeri) de palavras no estilo que fazia Wittgenstein ao criticar os conceitos da psicologia remontando à situação hermenêutica originária onde a fala está referida à práxis. Também essa crítica ao enfeitiçamento da linguagem retifica nossa autocompreensão, de tal modo que essa pode ajustar-se melhor às nossas experiências. Mas a hermenêutica produz reflexão crítica, por exemplo, quando defende a linguagem compreensível contra falsas pretensões da lógica, que busca importar determinados critérios de cálculo enunciativo a textos filosóficos, demonstrando (Carnap ou Tugendhat) que, quando Heidegger ou Hegel falam sobre o nada, essa fala seria absurda por não cumprir certas precondições lógicas. Nesse caso, a hermenêutica filosófica pode demonstrar que essas objeções não correspondem à experiência hermenêutica ficando aquém do que se deve compreender. O “nada nadificante”, p. ex., não expressa como pensa Carnap um sentimento, mas um movimento do pensamento que deve ser compreendido. A reflexão hermenêutica parece-me ser produtiva onde alguém por exemplo examina o modo de argumentação socrático nos diálogos platônicos a partir da perspectiva de seu rigor lógico. Nesse caso, a reflexão hermenêutica pode descobrir que o processo comunicativo que se dá no desenrolar dos diálogos socráticos é um processo da compreensão e do entendimento, que não é atingido pela busca de conhecimento do analista lógico. Em todos esses casos, a crítica reflexiva reporta-se a uma instância representada pela experiência hermenêutica e sua realização na linguagem. Eleva à consciência crítica o scopus dos enunciados presentes e qual o esforço hermenêutico exigido para sua pretensão da verdade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
O problema não se limita às ciências do espírito. E evidente que também nas ciências da natureza é somente a teoria que deve confirmar e definir uma autêntica aquisição cognitiva de uma constatação factual. A mera acumulação de fatos não é nenhuma experiência, e menos ainda o fundamento da ciência empírica. Também nesse campo, a relação “hermenêutica” entre fato e teoria é o decisivo. Aquelas tentativas epistemológicas, empreendidas pela escola de Viena, de trabalhar com a proposição protocolaria como indubitavelmente certa pela simultaneidade que se dá entre o observador e o observado, e para construir as ciências naturais sobre essa base, foram refutadas com acerto, a meu ver, já na fase inicial do círculo de Viena (1934) por Mirtz Schlick. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
Diante disso, a guinada que se deu no século XX e à qual contribuíram decisivamente, a meu ver, Husserl e Heidegger, significou o descobrimento dos limites dessa identidade idealista ou histórico-espiritual entre espírito e história. Nos trabalhos tardios de Husserl aparece a palavra mágica Lebenswelt (mundo da vida), um desses neologismos raros e surpreendentes (a palavra alemã não existia antes de Husserl) que entram na consciência geral sobre a linguagem e trazem à fala alguma verdade ignorada ou esquecida. Assim, a palavra Lebenswelt restabeleceu os laços com certos pressupostos latentes e anteriores a todo conhecimento científico. O programa de uma “hermenêutica da facticidade” de Heidegger, isto é, a confrontação com a incompreensibilidade da própria existência factual, significou sem dúvida uma ruptura com o conceito idealista de hermenêutica. A compreensão e a vontade de compreender são reconhecidas em sua tensão com relação à realidade factual. Tanto a teoria de Husserl sobre o mundo da vida quanto o conceito heideggeriano de hermenêutica da facticidade afirmam a temporalidade e a finitude do ser humano frente à tarefa infinita da compreensão e da verdade. Minha tese propõe que, a partir dessa ótica, o saber não se coloca somente como uma questão de domínio do outro e do estranho. Esse domínio constitui o pathos fundamental da investigação científica da realidade, presente em nossas ciências da natureza (embora quem sabe à base de uma fé na racionalidade da constituição do cosmos). O que afirmo é que o essencial das “ciências do espírito” não é a objetividade, mas a relação prévia com o objeto. E, para essa esfera do saber, eu complementaria o ideal de conhecimento objetivo, implantado pelo ethos da cientificidade, com o ideal de “participação”. Participação nas manifestações essenciais da experiência humana tal como se configuraram na arte e na história. Nas ciências do espírito, esse é o verdadeiro critério para conhecer o conteúdo ou a falta de conteúdo de suas teorias. Procurei demonstrar em meus trabalhos que o modelo do diálogo é decisivo para esclarecer a estrutura dessa forma de participação. Isso porque o diálogo se caracteriza também por não ser o sujeito individual, separado que percebe e afirma, o único a dominar o assunto, mas por alcançarmos participar da verdade e do outro pela partilha. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
Para isso é preciso uma visão certeira. A admirável empresa de uma crítica da razão histórica, empreendida por Dilthey, foi marcada e também obstaculizada, pensamos hoje, por sua dependência em relação ao modelo metodológico das ciências experimentais da [328] natureza. De certo, seu repúdio à teoria axiológica do neokantismo (Rickert) tem sua razão de ser; mas era preciso superar a mera oposição à teoria neokantiana dos valores. Foi o que fez Theodor Litt. Quando no ano de 1941, eu escutei, em Leipzig, a conferência de Litt na Academia saxônica de ciências, da qual acabara de ser eleito membro — seu membro mais jovem — esse estudo sobre “o universal na elaboração do conhecimento das ciências do espírito” pareceu-me uma síntese na qual Litt ratificava sua posição intermediária entre Kant e Herder. Ele a havia elaborado no ano de 1930 num belo livro. Como a linguagem constituía nesse caso a ponte entre o universal e o particular ou singular, pareceu-me muito natural aproveitar meu próprio estudo da crítica ontológica que Heidegger fez à metafísica grega e a sua consequência histórica, aplicando-o ao pensamento subjetivo da modernidade para precisar melhor a natureza das ciências do espírito. Ainda hoje sinto-me próximo de Litt, por exemplo, na defesa da linguagem da cotidianidade frente à linguagem técnica e o conceito “puro”, o qual tem sua plena justificação nas ciências da natureza. Litt aprendeu a articular seu próprio pensamento na dialética hegeliana do universal e do particular e na fusão do juízo determinante com o juízo reflexivo. Desse modo tocava no nervo hermenêutico. Eu mesmo procurei ultrapassar o horizonte da teoria moderna da ciência e da filosofia das ciências do espírito para examinar o problema hermenêutico, tomando como referência a estrutura fundamental do ser humano baseada na linguagem. A virtude aristotélica da racionalidade, a phronesis, acaba sendo a virtude hermenêutica fundamental. Serviu de modelo para a formação de minha própria linha argumentativa. Desse modo, a hermenêutica, essa teoria da aplicação, quer dizer, da conjugação do universal e do particular, converteu-se para mim numa tarefa filosófica central. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
É estranho que um pesquisador de Plotino, tão conceituado como Richard Harder, tenha criticado, em sua última conferência, o conceito de fonte, por causa de sua “procedência das ciências da natureza” (Source de Plotin, entretiens V, VII, Quele oder Tradition?). Por mais justificada que seja a crítica à pesquisa das fontes puramente externa, o conceito de fonte tem uma legitimação bem mais fundamentada. Como metáfora filosófica, esse conceito é de origem platônica e neoplatônica. A imagem que guia essa metáfora é a erupção da água pura e fresca, que brota de uma profundeza invisível. Testemunha disso, entre outras coisas, é a reiterada construção pege kai arche (Faidro, 245c, assim como muitas citações em Philo e Plotino). Como termo filológico, o conceito de fons parece só ter sido introduzido na época do humanismo, e mesmo ali não significa em primeiro lugar o que conhecemos pela investigação das fontes, mas a parole ad fontes, o retorno às fontes, como acesso à verdade originária e não-desfigurada dos autores clássicos. Também isso confirma nossa constatação de que a filologia, nos seus textos, busca a verdade que pode neles se encontrar. A passagem do conceito para o sentido técnico da palavra, usual hoje, deveria conservar algo do significado originário, na medida em que a fonte diferencia-se da reprodução turva ou da apropriação falsificadora. Isso esclarece, de modo específico, que o conceito de fonte só se conhece na tradição literária. Somente o que é transmitido pela linguagem proporciona uma abertura e acesso constante e pleno ao que essa tradição contém; não é preciso restringir-se a interpretar, como ocorre com outros documentos ou relíquias. Pode-se também haurir diretamente da fonte e nela medir suas derivações posteriores. Tudo isso não são imagens da ciência da natureza. São imagens espirituais e de linguagem, que no fundo confirmam o que pensa Harder, a saber, que as [384] fontes não precisam turvar-se pelo fato de serem usadas. Da fonte brota sempre de novo água fresca e o mesmo acontece com todas as verdadeiras fontes espirituais da tradição. Vale a pena estudá-las, porque sempre podem proporcionar algo diferente do que se hauriu delas até o momento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO V
Antigamente, quando na filosofia se refletia sobre os fundamentos das ciências do espírito, mal se falava de hermenêutica. A hermenêutica era uma simples disciplina auxiliar, um cânon de regras que tinha como objeto o trato com textos. Em todo caso, ainda se diferenciava por levar em conta e contemplar o modo específico de determinados textos, por exemplo, como hermenêutica bíblica. Havia ainda uma disciplina auxiliar um pouco diferente, também chamada hermenêutica, na figura da hermenêutica jurídica. Continha regras para a complementação de lacunas no direito codificado, tendo, portanto, caráter normativo. A problemática filosófica central que se encontrava inserida no factum das ciências do espírito — em analogia para com as ciências da natureza e sua fundamentação através da filosofia kantiana — era abordada, ao contrário, na teoria do conhecimento. A crítica da razão pura de Kant justificou os elementos apriorísticos do conhecimento experimental das ciências da natureza. Assim, convinha que se implementasse uma justificação teórica correspondente para o modo de conhecimento das ciências históricas. Em sua Historik, J.G. Droysen projetou uma metodologia das ciências históricas, exercendo grande influência. Essa metodologia visava uma plena correspondência com a tarefa kantiana. Wilhelm Dilthey, que iria desenvolver a verdadeira filosofia da escola histórica, perseguiu desde o princípio e conscientemente a tarefa de uma crítica da razão histórica. Nesse sentido, também sua autoconcepção possuía um cunho epistemológico. Sabe-se que para ele o fundamento epistemológico das chamadas ciências do espírito repousava em uma psicologia “descritiva e analítica”, purificada da alienação das ciências da natureza. Na execução dessa tarefa, Dilthey acabou superando seu originário ponto de partida epistemológico, tendo sido ele a fazer surgir o momento filosófico da hermenêutica. É verdade que nunca renunciou ao fundamento epistemológico buscado na psicologia. A base sobre a qual procurou erigir o edifício do universo histórico das ciências do espírito continuou sendo o fato de as vivências serem caracterizadas pelo tomar consciência de si mesmas, de modo que ali não surge nenhum problema a respeito do conhecimento do outro, do não-eu, como acontece na base do questionamento kantiano. O universo histórico, porém, não é um nexo de vivências nos [388] moldes da autobiografia, onde a historia se apresenta em função da interioridade da subjetividade. Por fim, o nexo histórico deve ser compreendido como um nexo de sentido que supera fundamentalmente o horizonte vivencial do indivíduo. E como um texto grande e estranho, para cuja decifração precisa da ajuda de uma hermenêutica. É assim que Dilthey procura a passagem da psicologia para a hermenêutica, a partir da constringência da própria coisa em questão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
“Dilthey viu-se confrontado com uma questão que [396] Windelband e os outros não perceberam, uma vez que não aprofundaram suficientemente o problema: A questão de como é possível um conhecimento do particular, paralelamente e em diferenciação para com a experiência imediata. Ele responde a esta questão com a constatação de que um tal conhecimento não é possível e recai na convicção positivista, segundo a qual o universal (o verdadeiro objeto do conhecimento) somente seria passível de conhecimento com a ajuda das ciências da natureza ou de alguma outra ciência fundamentada em princípios naturalistas. Assim, tanto ele quanto toda sua geração não conseguem se evadir da influência do pensamento positivista” (184). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Em todo caso, não podemos deixar-nos induzir ao erro de pensar que o problema da hermenêutica só poderia ser colocado desde o ponto de vista do historicismo moderno. Isso, se admitirmos que os clássicos discutiam as opiniões de seus precursores não como historicamente diferentes, mas como se fossem contemporâneas. Mas a tarefa da hermenêutica de interpretação dos textos herdados da tradição também estava presente então. E, supondo-se que esta interpretação sempre inclui a questão da verdade, talvez ela não esteja tão longe de nossas próprias experiências com textos, como quer supor a metodologia da ciência histórico-filológica. Sabe-se que a palavra hermenêutica se reporta à tarefa do intérprete, o qual explicita e comunica algo incompreensível, por ser falado numa língua estranha — mesmo que essa seja a linguagem dos deuses feita de sinais e signos. O saber que se consagra a essa tarefa sempre foi objeto de possíveis reflexões e desenvolvimento consciente. Esse desenvolvimento pode muito bem ter se dado na forma de uma tradição oral, como ocorreu no sacerdócio deifico. Mas a tarefa da interpretação se apresenta com muita decisão onde há literatura escrita. Tudo que foi fixado por escrito tem algo de estranho, exigindo, enquanto tal, a mesma tarefa de compreensão que encontramos quando se fala algo em língua estrangeira. O intérprete do texto gráfico, assim como o intérprete do discurso divino ou humano, tem a tarefa de superar a estranheza e possibilitar apropriação. Essa tarefa pode complicar-se quando a distância histórica entre o texto e o intérprete se tornar consciente. Isso porque, nesse caso, a tradição que sustenta tanto o texto herdado quanto seus intérpretes está rompida. Creio, no entanto, que sob o ímpeto de falsas analogias metodológicas sugeridas pelas ciências da natureza, a hermenêutica “histórica” se distancia em muito da hermenêutica pré-histórica. Tentei mostrar que essas hermêuticas compartilham pelo menos um traço dominante comum: a estrutura da aplicação. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
O tema que abordei em minhas reflexões foi o procedimento da própria ciência e a restrição da objetividade que se pode observar nelas (e que não é recomendado). Creio que reconhecer o sentido produtivo de tais restrições, por exemplo, na forma dos preconceitos produtivos, não é nada mais que um mandamento da honestidade científica, pelo qual o filósofo deve responder. Como é possível então acusar a filosofia, que traz isso à consciência, de estar encorajando um procedimento acrítico e subjetivo no âmbito da ciência? Isso parece-me tão absurdo quanto querer esperar, por exemplo, que a lógica matemática vá promover o pensamento lógico, ou que a teoria da ciência do racionalismo crítico, que se denomina “lógica da investigação”, vá promover a investigação científica. Tanto a lógica teórica quanto a filosofia das ciências satisfazem, antes, uma necessidade filosófica de justificação e são secundárias frente à práxis científica. Apesar de todas as diferenças existentes entre as ciências da natureza e as ciências do espírito, a validade imanente da metodologia crítica das ciências jamais poderá ser contestada. Mesmo o racionalista crítico mais extremado não pode negar que a aplicação da metodologia científica é precedida por certos fatores que dizem respeito à relevância de sua escolha temática e de seu questionamento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
Mas retornemos para a teoria da ciência. O problema da relevância não deve se restringir apenas às ciências do espírito. O que são os fatos nas ciências da natureza não pode ser atribuído a toda e qualquer grandeza mensurada. Eles não passam de resultados de medições que representam a resposta a uma pergunta, a confirmação ou refutação de uma hipótese. Mesmo a organização de um experimento para a medição de alguma grandeza não se legitima pelo simples fato de essas medições serem executadas com a maior precisão e de acordo com todas as regras da arte. Ganha a sua [458] legitimação apenas através do contexto de investigação. Assim, toda ciência implica um componente hermenêutico. Do mesmo modo que uma questão histórica ou uma realidade histórica não pode dar-se num isolamento abstrato, tampouco no âmbito das ciências da natureza poderá dar-se algo parecido. Mas com isso não se está restringindo a própria racionalidade do proceder, supondo-se que isso seja possível. O esquema de “propor uma hipótese e fazer sua verificação é uma característica inerente a toda investigação, mesmo nas ciências do espírito, e até mesmo no âmbito da filologia. De certo, é impossível livrar-se do perigo de considerarmos a racionalidade do proceder como uma legitimação suficiente para o significado do que se “conheceu” dessa maneira. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
Mas justamente quando se reconhece a problemática da relevância ficará difícil permanecer fiel ao lema da liberdade dos valores desenvolvido por Max Weber. Não é suficiente manter um deci-sionismo cego com relação aos últimos objetivos, em favor do qual falou abertamente Max Weber. Aqui o racionalismo metodológico desemboca num irracionalismo tosco. Conjugar nele a assim chamada filosofia existencial seria desconhecer as coisas por completo. A verdade, porém, é exatamente o seu contrário. Mas a intenção do conceito de clarificação da existência proposto por Jasper era justamente submeter as decisões últimas a uma clarificação racional; não é por acaso que ele considerava os conceitos de “razão e existência” como sendo inseparáveis. Heidegger, por sua vez, tirou consequências ainda mais radicais. Ele buscou esclarecer a falácia ontológica da distinção entre valor e realidade e dissolver o conceito dogmático do “fato”. Nesse sentido, a questão dos valores não desempenha nenhum papel nas ciências da natureza. É verdade que, no contexto próprio de sua investigação, essas ciências estão submetidas a nexos que podem ser esclarecidos hermeneuticamente. Mas com isso ainda não extrapolam o círculo de sua competência metodológica. Mas nelas o que se questiona é algo parecido, pelo menos em um único ponto. Em sua investigação científica, as ciências são real e totalmente independentes da imagem de mundo que guardam pela linguagem, onde vivem os investigadores enquanto tais? E serão independentes sobretudo do esquema de mundo de sua própria língua materna? Mas, em outro sentido, também aqui está sempre em jogo a hermenêutica. Mesmo que, usando uma linguagem normatizada pela ciência, se conseguisse filtrar todas as conotações que provêm da língua materna, ainda assim permaneceria o problema da “tradução” dos conhecimentos científicos para a linguagem comum, único meio de as ciências da natureza alcançarem sua universalidade comunicativa e com isso sua relevância social. Mas isso já não afetaria a investigação como tal. Apenas mostraria que a mesma não é “autônoma”, mas está inserida em um contexto social. Isso vale para toda e qualquer ciência. Nesse caso, não é necessário reservar uma autonomia especial para as ciências “compreensivas”, e tampouco se pode deixar de perceber que nelas o saber pré-científico desempenha um papel muito importante. Decerto, tudo aquilo que nessas ciências possui esse modo de ser pode ser classificado como “acientífico”, como cientificamente incomprovável etc. Mas é exatamente por isso que se reconhece a estrutura dessas ciências. Então devemos objetar também que é justamente o saber pré-científico, remanescente nessas ciências como um resto lamentável de acientificidade, que constitui seu modo próprio de ser e determina a vida prática e social das pessoas — inclusive as condições para que estas possam fazer ciência — mais decisivamente que tudo que se pode conseguir e até querer por meio de uma crescente racionalização dos contextos humanos de vida. Será realmente possível e desejável que confiemos a um especialista todas as questões decisivas tanto da vida social e política quanto da vida privada e pessoal? E, afinal de contas, na aplicação concreta de sua ciência, o próprio especialista não empregaria sua ciência, mas apenas sua razão prática. E mesmo que esse fosse um engenheiro social ideal, por que razões sua razão prática deveria ser melhor que a das outras pessoas? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
As palavras que são utilizadas na linguagem filosófica, aguçadas pelo pensamento a uma precisão conceitual, implicam sempre momentos semânticos “da linguagem do objeto”, e enquanto implicam uma certa inadequação. Mas o nexo de significado que ressoa sempre em cada palavra da língua viva invade também o potencial [462] de significação da palavra conceitual. E isso não pode ser desconectado em nenhum emprego de expressões da linguagem comum com vistas ao conceito. Mas isso não tem nenhuma importância na formação do conceito nas ciências da natureza, na medida em que nelas a relação experimental controla todo o uso dos conceitos, impondo assim um ideal de univocidade e preparando de modo puro o conteúdo lógico dos enunciados. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
A intenção teórica de meu próprio questionamento determinou o importante lugar que ocupa Wilhelm Dilthey no nexo dos problemas de minha investigação, junto com a energia com que acentuei sua atitude ambivalente frente à lógica indutiva de seu século e à herança romântico-idealista, o que no Dilthey tardio inclui não só Schleiermacher mas também o jovem Hegel. Nesse sentido, temos que destacar alguns novos aspectos. Com uma intenção oposta à minha, Peter Krausser rastreou o amplo interesse científico de Dilthey, ilustrando-o, em parte, com material das obras póstumas. A ênfase com que apresenta esse interesse de Dilthey é característica de uma geração que conheceu a Dilthey em sua atualidade tardia dos anos 20 do século XX. Para aqueles que tematizaram, primeiramente e com intenção teórica pessoal, o interesse de Dilthey pela historicidade e pela fundamentação das ciências do espírito, por exemplo, para Misch, Groethuysen e Spranger, mas também para Jaspers e Heidegger, sempre foi evidente que Dilthey teve grande participação nas ciências da natureza de seu tempo, sobretudo no seu ramo antropológico e psicológico. Krausser desenvolve a teoria estrutural de Dilthey com os meios de uma análise quase cibernética, de modo que a fundamentação das ciências do espírito segue exatamente o modelo das ciências da natureza. Mas isso sobre a base de dados tão vagos que qualquer cibernético persignar-se-ia diante disso. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.