Gadamer (VM): ciência da natureza

A auto-reflexão lógica das ciências do espírito, que acompanha o seu efetivo desenvolvimento no século XIX, é inteiramente dominada pelo modelo das ciências da natureza. Mostra-o um simples olhar lançado à expressão “ciências do espírito”, desde que essa expressão receba o significado que nos é familiar, unicamente através de sua forma plural. As ciências do espírito se entendem tão clarividentes, graças à sua analogia com as ciência da natureza, tanto que o eco idealístico, que se situa no conceito do espírito e da ciência do espírito, retrocede. A expressão “ciências do espírito” se popularizou principalmente através do tradutor da lógica de John St. Mill. Na sua obra, Mill procura, suplementarmente, esboçar as possibilidades que o emprego da lógica da indução possui sobre as moral scienses. O tradutor diz, para isso, “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften). Já do contexto da Lógica de Mill, percebe-se que não se trata de reconhecer uma lógica própria das ciências do espírito, mas, ao contrário, de demonstrar que é o método indutivo, que está à base de toda a ciência experimental, que vale exclusivamente também nesse âmbito. Mill encontra-se assim em meio a uma tradição inglesa, cuja formulação mais eficaz foi dada por Hume na introdução de sua obra Treatise. Mesmo nas ciências morais o que importa é reconhecer a uniformidade, a regularidade, a legalidade, que tornam previsíveis os fenômenos e processos individuais. Mesmo no terreno dos fenômenos da natureza não chega a ser alcançável da mesma maneira por toda parte. No entanto, o motivo disso se encontra exclusivamente no fato de que, os dados em que se poderiam reconhecer as uniformidades não são obtidos suficientemente em todos os lugares. Embora a meteorologia trabalhe tão metodicamente quanto a física, acontece apenas que seus dados são mais incompletos e, por isso, mais inseguras suas previsões. A mesma coisa vigora nos campos dos fenômenos morais e sociais. A utilização do método indutivo terá de também ficar isenta de todas as hipóteses metafísicas, mantendo-se inteiramente independente de como se imagina o estabelecimento dos fenômenos que se está observando. Não se está, por exemplo, averiguando as causas de determinados efeitos, mas simplesmente constatando regularidades. Assim, torna-se completamente indiferente se, por exemplo, acreditamos ou não no livre-arbítrio — no terreno da vida social pode-se, em todo caso, chegar a fazer previsões. Tirar consequências da regularidade com relação a fenômenos esperados não inclui nenhuma acepção sobre a espécie de conexão, cuja regularidade possibilita a previsão. O surgimento de decisões livres — caso tais decisões existam — não interrompe o processo regular, porém pertence, ela mesma, à generalidade e à regularidade que são obtidas através da indução. Representa o ideal de uma ciência da natureza da sociedade, que aqui se desenvolve programáticamente, do qual em alguns campos surgiram pesquisas plenas de êxito. Basta pensar na psicologia de massa. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Quanto a isso, é, no fundo, uma coisa evidente que, aqui, não foi a matemática determinante, mas os estudos humanísticos. Pois o que poderia significar a nova doutrina do método, do século XVII, para as ciências do espírito? Basta ler o correspondente capítulo da Logique de Port-Royal, que diz respeito às regras da razão aplicáveis a verdades históricas, para reconhecer a carência do que, a partir dessa ideia do método, se poderia produzir nas ciências do espírito. É realmente uma trivialidade o que daí surge, caso isso signifique, p. ex., que se tenha, ao julgar um acontecimento quanto à sua verdade, de levar em consideração as circunstâncias (circonstances) que o acompanham. Os jansenistas queriam, com esse arrazoado, dar uma introdução metódica, para saber até onde os milagres são dignos de fé. Procuravam eles, contra uma crença incontrolável nos milagres, oferecer o espírito do novo método e opinavam que, dessa maneira, iriam legitimar os verdadeiros milagres da tradição bíblica e da tradição eclesiástica. A nova ciência a serviço da antiga igreja — que uma tal relação não prometia durar, só se torna evidente, e pode-se muito bem imaginar o que teria de acontecer, caso as próprias premissas cristãs acabassem sendo questionadas. O ideal metódico da ciência da natureza tinha de, caso viesse a ser aplicado à credibilidade dos testemunhos históricos da tradição bíblica, conduzir a resultados bem diversos e catastróficos para o cristianismo. O caminho que vai da crítica aos milagres, ao estilo dos jansenistas, à crítica histórica da Bíblia, não é muito distante. Neste particular, Spinoza é um bom exemplo. Iremos mostrar, em passagens posteriores, que a aplicação consequente dessa metodologia, como única norma da verdade das ciências do espírito, seria semelhante a uma auto-subsunção de si mesma. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A motivação moral contida no conceito do common sense ou do bon sens permaneceu ativa até os nossos dias e diferencia esses conceitos do nosso conceito da “compreensão humana sadia”. Cito, como exemplo, o belo discurso que Henri Bergson fez em 1895, sobre o bon sens, por ocasião da homenagem que lhe foi prestada na Sorbônia. Sua crítica às abstrações da ciência da natureza, bem como às da linguagem e do pensamento jurídico, seu tempestuoso apelo à “energia interior de uma inteligência, que a todo momento se reconquista sobre si mesma, eliminando as ideias feitas para deixar espaço livre para as ideias que se fazem” (88), tudo isso pôde, na França, ser batizado sob a denominação de bon sens. A determinação desse conceito continha, como é natural, uma referência aos sentidos, mas para Bergson é evidente que, diferentemente dos sentidos, o bon sens se refere ao milieu social (meio social). “Enquanto que os outros sentidos nos colocam em relação com coisas, o bom senso preside nossas relações para com pessoas” (85). Ele é uma espécie de gênio para a vida prática, mas menos um dom (Gabe) do que a permanente tarefa (Aufgabe) de “ajustamento sempre novo de situações sempre novas, uma espécie desadaptação dos princípios gerais à realidade, através da qual se realiza a justiça, um “tato da verdade prática”, uma “retidão de juízo, que provém da retitude da alma” (88). O bons sens é, segundo Bergson, enquanto a fonte comum do pensamento e do querer, em sens social, que tanto evita o erro dos dogmáticos científicos, que estão à busca de leis sociais, como o dos utopistas metafísicos. “Falando mais propriamente, talvez não exista mais método, mas antes, um certo modo de fazer.” É verdade que Bergson fala sobre o significado dos estudos clássicos para o aperfeiçoamento desse bon sens — ele vê neles o empenho de romper o “gelo das palavras” e para descobrir, sob elas, a corrente livre do pensamento (91) — mas é claro que ele não coloca a pergunta contrária, ou seja, até que ponto é necessário o bon sens para os próprios estudos clássicos, isto é, não fala de sua função hermenêutica. Sua pergunta não se dirige, de forma alguma, às ciências, mas, sim, ao sentido independente do bon sens para a vida. Nós sublinhamos apenas a evidência, para ele e seus ouvintes, o sentido moral-político desse conceito assume a liderança. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O que Kant de sua parte, através de sua crítica do juízo estético, legitimou e queria legitimar era a universalidade subjetiva do gosto estético, na qual não se encontra mais nenhum conhecimento do objeto, e, no âmbito das “belas artes”, a superioridade do gênio sobre toda estética da regra. É assim que a hermenêutica romântica e a historiografia, com relação à sua auto-evidência, encontram um ponto de vinculação somente no conceito de gênio, o qual alcança validade através da estética de Kant. Esse foi justamente o outro lado da atuação de Kant. A justificação transcendental do juízo estético alicerça a autonomia da consciência estética, da qual viria a derivar-se também a legitimação da consciência histórica. A subjetivação radical, que incluiu a refundamentação da estética de Kant, marcou verdadeiramente uma época. Ao desacreditar qualquer outro conhecimento teórico que não fosse o da ciência da natureza, forçou a auto-determinação das ciências do espírito a apoiar-se na doutrina de método das ciências da natureza. Mas ao mesmo tempo facilitou-lhes esse apoio, ao colocar à sua disposição, como um dispositivo secundário, o “momento artístico”, o “sentimento” e a “empatia”. A característica das ciências do espírito de Helmholtz, de que nos ocupamos acima, é, nos dois sentidos, um bom exemplo da atuação de Kant. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Eis o que só dificilmente se pode reconhecer quando, com Kant, se mensura a verdade do conhecimento com o conceito do conhecimento da ciência e com o conceito de realidade da ciência da natureza. É necessário entender o conceito da experiência com mais amplidão do que Kant o fez, a fim de que se possa entender também, como experiência, a experiência da obra de arte. Com relação a essa tarefa, podemos nos reportar às admiráveis preleções de Hegel sobre a estética. Nelas, de uma forma extraordinária, o conteúdo de verdade que há em toda experiência da arte é trazido ao reconhecimento e, ao mesmo tempo, transmitido com consciência histórica. Com isso, a estética torna-se uma história das cosmovisões, isto é, uma história da verdade, tal qual se faz visível no espelho da arte. Com isso, confirma-se fundamentalmente a tarefa que formulamos, ou seja, a de justificar na própria experiência da arte o conhecimento da verdade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Assim, se retrocedermos à pré-história da hermenêutica histórica, teremos de destacar, em primeiro lugar, que entre a filologia e a ciência da natureza, em sua primeira auto-reflexão, se estabelece uma correlação muito estreita, que se reveste de um duplo sentido. Em primeiro lugar, a “naturalidade” do procedimento científico-natural deve valer também para o posicionamento frente à tradição bíblica — e para isso serve o método histórico. Mas, ao inverso, também a naturalidade da arte filológica, exercida na exegese bíblica, a arte de compreender pelo texto, coloca ao conhecimento da natureza a tarefa de decifrar o “livro da natureza”. Nessa medida o modelo da filologia pode orientar o método da ciência da natureza. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Nisso se reflete o fato de que o saber instituído pela (186) Escritura Sagrada e pelas autoridades é o inimigo contra o qual tem de se impor a nova ciência da natureza. Esta tem a sua verdadeira essência, diferentemente daquela, em sua metodologia própria, que a conduz através da matemática e da razão à evidência do que é compreensível em si mesmo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Já essa colocação de tarefa torna patente a repulsa ao idealismo especulativo. Apresenta uma analogia que deve ser entendida em sentido completamente literal. Dilthey quer que a razão histórica necessita de uma justificação igual à da razão pura. Se a crítica da razão pura fez época, não foi só por ter destruído a metafísica como pura ciência racional do mundo, da alma e de Deus, mas porque, ao mesmo tempo, apontava para um âmbito, dentro do qual o emprego de conceitos apriorísticos estava justificado e tornava possível o conhecimento. A crítica da razão pura não somente destruía os sonhos de um vidente do espírito, mas, ao mesmo tempo, respondia à pergunta de como é possível uma ciência da natureza pura. Assim, nesse entremeio, o idealismo especulativo havia acolhido o mundo da história junto com a auto-explicação da razão, e, além disso, havia conseguido, sobretudo em Hegel, resultados geniais precisamente no terreno histórico. Com isso, a pretensão de ciência racional pura ficava estendida, em princípio, ao conhecimento histórico. Este fazia parte da enciclopédia do (224) espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

E este é um dos pontos mais questionáveis de sua teoria, (238) a essência da comparação já pressupõe a não-vinculação da subjetividade cognitiva, que dispõe tanto sobre um como sobre o outro. A comparação torna as coisas simultâneas de maneira transparente. E então se apresenta a dúvida de se saber se o método comparativo faz realmente jus à ideia do conhecimento histórico. Esse procedimento, que é habitual em certos âmbitos da ciência da natureza e que já festeja triunfos em alguns âmbitos das ciências do espírito, como a linguística, a ciência jurídica, a ciência da arte, não é elevado aqui de uma significação subordinada de instrumento de auxílio a um posto de significação central para a essência do conhecimento histórico? E esta significação não proporciona uma legitimação falsa a uma reflexão superficial e desvinculada? Não podemos, nisso, senão dar razão ao conde Yorck quando escreve: “A comparação é sempre estética, prende-se sempre com a forma”, e deve-se recordar que, antes dele, Hegel já desenvolveu uma crítica genial ao método comparativo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Seguindo a teoria dos preconceitos desenvolvida no Aufklärung, pode-se encontrar a seguinte divisão básica dos mesmos: é preciso distinguir os preconceitos gerados pelo respeito humano, dos preconceitos por precipitação. Essa divisão tem seu fundamento na origem dos preconceitos, na perspectiva das pessoas que os cultivam. O que nos induz a erros é o respeito pelos outros, por sua autoridade, ou a precipitação que existe em nós mesmos. O fato de que a autoridade seja uma fonte de preconceitos coincide com o conhecido princípio fundamental do Aufklärung, tal como o formula Kant: tenha coragem de te servir de teu próprio entendimento. Embora a decisão, citada acima, não se restrinja somente ao papel que os preconceitos desempenham na compreensão dos textos, ela encontra seu campo de aplicação preferencial também no âmbito hermenêutico. Pois a crítica do Aufklärung se dirige, em primeiro lugar, contra a tradição religiosa do cristianismo, portanto, a Sagrada Escritura. Enquanto que esta é compreendida como um documento histórico, a crítica bíblica põe em perigo sua pretensão dogmática. Nisso se apoia a radicalidade peculiar do Aufklärung moderno, face a todos os outros movimentos do Aufklärung: que ele tem de se impor frente à Sagrada Escritura e sua interpretação dogmática. Por isso lhe é particularmente central o problema hermenêutico. Procura compreender a tradição corretamente, isto é, isenta de todo preconceito e racionalmente. Mas isso traz uma dificuldade muito especial, pelo mero fato de que a fixação por escrito contém em si própria um momento de autoridade de peso (277) determinante. Não é fácil consumar a possibilidade de que o escrito não seja verdade. O escrito tem a palpabilidade do que é demonstrável, é como uma peça comprobatória. Torna-se necessário um esforço crítico especial para que nos liberemos do preconceito cultivado a favor do escrito e distinguir, tanto aqui, como em qualquer afirmação oral, entre opinião e verdade . Seja como for, a tendência geral do Aufklärung é não deixar valer autoridade alguma e decidir tudo diante do tribunal da razão. Assim, a tradição escrita, a Sagrada Escritura, como qualquer outra informação histórica, não podem valer por si mesmas. Antes, a possibilidade de que a tradição seja verdade depende da credibilidade que a razão lhe concede. A fonte última de toda autoridade já não é a tradição mas a razão. O que está escrito não precisa ser verdade. Nós podemos sabê-lo melhor. Essa é a máxima geral com a qual o Aufklärung moderno enfrenta a tradição, e em virtude da qual acaba ele mesmo convertendo-se em investigação histórica. Torna a tradição objeto da crítica, tal qual o faz a ciência da natureza com os testemunhos da aparência dos sentidos. Isso não significa que o “preconceito contra os preconceitos” deva ser levado em tudo às consequências do espiritualismo livre e do ateísmo, como na Inglaterra e na França. O Aufklärung alemão reconheceu de modo absoluto “os preconceitos verdadeiros” da religião cristã. Dado que a razão humana seria demasiado débil para passar sem preconceitos, teria sido uma sorte se tivesse sido educada nos preconceitos verdadeiros. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O fato de que a atitude restauradora do romantismo tivesse podido unir-se ao interesse básico do Aufklärung na unidade produtiva das ciências históricas do espírito, expressa tão-somente que o que subjaz a ambas é uma e mesma ruptura com a continuidade de sentido da tradição. Se para o Aufklärung, é coisa certa que toda tradição que se revela ante a razão como impossível ou absurda, só pode ser entendida como histórica, isto é, retrocedendo às formas de representação do passado, a consciência histórica, que aparece com o romantismo, representa uma radicalização do Aufklärung. Pois para a consciência histórica o caso excepcional de uma tradição contrária à razão se converte numa situação comum. Um sentido acessível em geral à razão é tão pouco acreditado que todo o passado, e afinal, igualmente, todo o pensamento dos contemporâneos, só pode ser compreendido ainda como “histórico”. A crítica romântica ao Aufklärung desemboca assim, ela própria, em um Aufklärung, na medida em que se desenvolve como ciência histórica e sateliza a tudo no empuxo do historicismo. O descrédito fundamental de todo preconceito, que vincula o pathos empírico da nova ciência da natureza com o Aufklärung, torna-se, no Aufklärung histórico, universal e radical. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O fato de que nas ciências do espírito esteja operante um momento da tradição, que inclusive constitui sua verdadeira essência e sua característica, a despeito de toda a metodologia inerente ao seu procedimento, é algo que se torna logo patente, se se considera a história da investigação e a diferença entre a (288) história da ciência, que se dá no âmbito das ciências do espírito, e a que se dá no âmbito das ciências da natureza. Evidentemente que não pode haver nenhum esforço histórico e finito do homem que possa apagar completamente os indícios dessa finitude. Também a história da matemática ou das ciências da natureza é uma porção da história do espírito humano e reflexo de seus destinos. Porém, por outra parte, não é mera ingenuidade histórica, o fato de que o investigador da natureza escreva a história de sua ciência a partir do estado atual de seus conhecimentos. Os erros e os desvios não têm para ele outro interesse que não seja o meramente histórico, pois o progresso da investigação é o padrão auto-evidente a ser considerado. Por consequência, a consideração dos progressos da ciência da natureza ou da matemática como parte de seu momento histórico constitui apenas um interesse secundário. O valor cognitivo dos conhecimentos natural-científicos ou matemáticos permanece intocado por esse outro interesse. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Isso é exatamente o que se tem de reter para a análise da consciência da história efeitual: que ela tem a estrutura da experiência. Por paradoxal que seja, o conceito da experiência me parece um dos menos que possuímos. Devido ao papel orientador que desempenha na lógica da indução, para as ciências da natureza, viu-se submetido a uma esquematização epistemológica que me parece encurtar amplamente seu conteúdo originário. Gostaria de recordar que já Dilthey acusava, no empirismo inglês, uma certa falta de formação histórica. Para nós, que detectamos em Dilthey uma vacilação não explícita entre o motivo da “filosofia da vida” e o da teoria da ciência, essa nos parece somente uma crítica pela metade. De fato, a deficiência da teoria da experiência, que constatamos até hoje, e que afeta também a Dilthey, consiste em que ela está integralmente orientada para a ciência e, por conseguinte, não percebe a historicidade interna da experiência. O escopo da ciência é objetivar a experiência até que fique livre de qualquer momento histórico. No experimento natural-científico consegue-se isso através do modo de seu aparato metodológico. Algo parecido realiza também o método histórico-crítico nas ciências do espírito. Num e noutro caso a objetividade ficaria garantida pelo fato de que as experiências que jazem ali poderiam ser repetidas por qualquer pessoa. Tal como na ciência da natureza os experimentos têm de ser possíveis de comprovação posterior, também nas ciências do espírito o procedimento completo tem que ser passível de controle. Nesse sentido, na ciência não pode restar lugar para a historicidade da experiência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Ao sair das profundezas do hegelianismo epigonal e do materialismo acadêmico da metade do século, a filosofía passou a se afirmar sob o signo de Kant e de seu questionamento epistemológico pela fundamentação da ciência. Na Crítica da razão pura, Kant respondeu à questão pela possibilidade de uma ciência pura da natureza. Isso agora foi ultrapassado na medida em que se pergunta pela possibilidade da ciência da história. Ao lado da Crítica da razão pura, procurou-se colocar uma Crítica da razão histórica (para usar uma expressão de Wilhelm Dilthey). O problema da história apresentou-se como o problema da ciência da história. Como esta adquire seu direito de ser uma teoria do conhecimento? Perguntar desta forma, porém, significou medir a (29) ciência da história nos moldes das ciências da natureza. O livro clássico da lógica neokantiana da história traz um título bem característico: “Os limites da formação conceitual das ciências da natureza”. Nele, Heinrich Rickert procura demonstrar o que caracteriza o objeto da história, e porque na história em lugar de se procurar leis universais, como na ciência da natureza, reconhece-se o singular, o individual. O que é que transforma um mero fato numa realidade histórica? A resposta é: Seu significado, isto é, sua relação com o sistema dos valores culturais humanos. Neste questionamento, apesar de todas as restrições, o modelo de conhecimento das ciências da natureza continua sendo o determinante. O problema da história resume-se inteiramente no problema epistemológico sobre a possibilidade de uma ciência da história. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Há muitos problemas, pelos quais a fé na ilimitação da razão histórica pode se tornar questionável. Refiro-me à questão das constantes naturais do espírito histórico, suas pressuposições biológicas, e à questão do começo da história. Será que a história só principia realmente onde a humanidade começa transmitir uma consciência de si própria? Será que as decisões que fazem história já de há muito não a precederam? Haverá um feito de maior significado do que a invenção do arado, que precede a qualquer tempo histórico? E o que é o mito, no qual os povos históricos se espelham, bem antes de adentrar seu destino histórico? Desde que a investigação filosófica deu alguns passos decisivos para além de Dilthey, o próprio problema a respeito da compreensão histórica se nos revela, hoje, a partir de uma nova luz. Martin Heidegger, em Ser e tempo, levou a historicidade da pre-sença (Dasein) humana a contextos fundamentais de questionamento. A problemática da história viu-se assim liberada das pressuposições ontológicas, sob as quais era vista também por Dilthey. Demonstrou que o ser não significa sempre e necessariamente objetividade (Gegenständlichkeit), mas que importa sobretudo “elaborar a diferença genérica entre o (34) ôntico e o histórico”. O ser da pre-sença humana é um ser histórico. Isso significa, porém, que não está dado como a existência dos objetos da ciência da natureza, mas de modo mais vulnerável e oscilante do que estes. A historicidade, isto é, a temporalidade é ser em sentido mais originário do que o ser simplesmente dado, que a ciência natural busca conhecer. Há uma razão histórica, somente porque a pre-sença humana tem caráter temporal e histórico. Há uma história do mundo somente porque esta pre-sença temporal do homem “tem um mundo”. Há uma cronologia somente porque a própria pre-sença histórica do homem é tempo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

I — O conceito de ciência moderna foi cunhado pelo desenvolvimento da ciência da natureza do século XVII. Deve-se a ele um crescente domínio da natureza, e desta forma espera-se também que a ciência do homem e da sociedade ofereça o mesmo domínio do universo humano-histórico. Espera-se das ciências do espírito até mais, uma vez que o crescente domínio da natureza pela ciência ao invés de diminuir o mal-estar da cultura acabou aumentando-o. Os métodos das ciências da natureza não apreendem tudo que é digno de se saber, nem sequer o que é mais digno de se saber, ou seja, os fins últimos aos quais deve estar subordinado todo domínio dos recursos da natureza e do homem. O que se espera das ciências do espírito e da filosofía, nelas contidos, são conhecimentos de uma outra espécie e de uma outra ordem. E assim parece que precisamos falar não do elemento comum que o uso dos métodos científicos coloca para toda a ciência, mas do elemento singular que faz com que as ciências do espírito sejam tão significativas e tão dignas de serem pensadas. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.

Aquele que enfrenta, em toda sua problematicidade reflexiva, essa reflexão que acompanha a verdade das ciências do espírito haverá de preferir invocar uma testemunha insuspeita, sobretudo se fizer parte de um círculo de investigadores da natureza e de leigos que permitem que seu universo de ideias seja determinado pela ciência da natureza: O grande físico Hermann Helmholtz, há cerca de cem anos, falou sobre a diferença entre as ciências da natureza e as ciências do espírito. A justiça e a imparcialidade perspicaz com que ele elaborou o caráter peculiar das ciências do espírito merecem respeito ainda hoje. É verdade que também ele dimensionou o modo de trabalho das ciências do espírito segundo os métodos das ciências da natureza, descrevendo-o a partir destas. Com isso, ficou fácil compreender por que as deduções apreensivas e rápidas com que as ciências alcançam seus resultados não poderiam satisfazer à sua necessidade lógica. Ele percebeu, no entanto, que é este o modo em que as ciências do espírito alcançam a verdade e que são necessárias condições humanas de outra espécie quando se pretende que essas deduções rápidas realmente concluam alguma coisa. Tudo o que pertence aos âmbitos da memória, da fantasia, do tato, da sensibilidade musical e da experiência de mundo tem um caráter diferente dos aparatos de que se serve o investigador da natureza. Elas, sem dúvida, incluem um instrumentado, que no entanto não pode ser feito, mas se desenvolve quando alguém se empenha em trilhar os caminhos da grande tradição da história da humanidade. Por isso, aqui não vale apenas a máxima do Iluminismo: Tem a coragem de servir-te de teu entendimento. Também o contrário tem validade aqui, ou seja, a autoridade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.

Isso pode ser uma afirmação unilateral, que não encontra um respaldo inequívoco em Aristóteles. Ela desenvolveu-se, todavia, a partir da doutrina grega do logos e sustenta sua evolução até o conceito moderno de ciência. De imediato, a ciência criada pelos gregos é completamente diferente do nosso conceito de ciência. A ciência verdadeira é a matemática. Não é a ciência da natureza, e muito menos a história. O seu objeto é um ser puramente racional, e visto que pode ser apresentada num conjunto fechado de deduções, ela é como tal um modelo para toda ciência. O que caracteriza a ciência moderna, ao contrário, é o fato de a matemática se constituir em modelo, não pelo ser de seus objetos, mas como o modo mais perfeito de conhecimento. A configuração da ciência moderna estabelece uma ruptura decisiva em relação às configurações do saber do Ocidente grego e cristão. O que predomina agora é a ideia do método. Em sentido moderno, o método, apesar de toda a variedade apresentada nas diversas ciências, é um conceito unitário. O ideal de conhecimento pautado pelo conceito de método consiste em se poder trilhar um caminho cognitivo de maneira tão consciente que se torna possível refazê-lo sempre. Methodos significa “caminho de seguimento”. Metódico é poder-seguir sempre de novo o caminho já trilhado e é isto o que caracteriza o proceder da ciência. Justamente por isso faz-se necessário estabelecer logo uma restrição daquilo que pode resultar desta pretensão à verdade. Se a verdade (veritas) só se dá pela possibilidade de verificação — seja como for — , então o parâmetro que mede o conhecimento não é mais sua verdade, mas sua certeza. Por isso, desde a formulação clássica dos princípios de certeza de Descartes, o verdadeiro ethos da ciência moderna passou a ser o fato de que ela só admite como condição satisfatória de verdade aquilo que satisfaz o ideal de certeza. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

O problema da liberdade parece ser um dos que preenchem perfeitamente a condição prévia de ser um problema filosófico idêntico. A condição prévia de ser um problema filosófico consiste na verdade em ser insolúvel. O problema deve ser de tal modo abrangente e fundamental que volta a se instaurar sempre de novo, uma vez que parece não haver nenhuma “solução” capaz de resolvê-lo totalmente. Já Aristóteles descreveu a essência do problema dialético, afirmando que são as questões grandes e insolúveis que se devem lançar ao adversário numa disputa verbal. A pergunta, porém, é: haverá “o” problema da liberdade? A questão da liberdade será realmente sempre a mesma em todos os tempos? O que dizer daquele mito profundo da República de Platão, segundo o qual a própria alma escolhe, num estado anterior ao nascimento, a sorte para sua vida, de tal modo que se queixa das consequências de sua escolha recebe como resposta: “aitia helemenou, Tens culpa na tua escolha”? Terá o mesmo sentido que o conceito de liberdade que dominou, por exemplo, a filosofia moral estóica, que afirmava com certa resolução que o único caminho para tornar-se independente e, com isso, livre seria não prender seu coração a nada, e não apegar-se a si próprio? Será este o mesmo problema do mito platônico? Será o mesmo problema quando a teologia cristã procura tecer e resolver seu grande enigma entre a liberdade do homem e a providência divina? E será o mesmo quando, na era da ciência da natureza, formulamos a pergunta: Como se deve conceber a possibilidade de liberdade, diante da determinação infalível do acontecimento natural diante do fato de que toda ciência da natureza deve partir do pressuposto de que na natureza não acontecem milagres? O problema do determinismo e do indeterminismo da vontade, formulado a partir dessa situação, será ainda o mesmo problema? VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.

Claro que esse desvio realizado pela explicação histórica não se dá apenas nos moldes do Iluminismo moderno. Frente ao Antigo Testamento, a teologia cristã, por exemplo, viu-se logo na obrigação de iluminar exegeticamente seus conteúdos — inconciliáveis com a dogmática e a moral cristãs — e para isso, além da interpretação alegórica e tipológica, como demonstrou por exemplo Agostinho no De Doctrina Christiana, serviu-se também da reflexão histórica. Mas nesse caso a tradição dogmática da Igreja cristã continuou sendo a base inamovível. As reflexões históricas eram um recurso esporádico e secundário na compreensão da Sagrada Escritura. Com o surgimento da nova ciência da natureza e sua crítica, isso mudou substancialmente. Aquilo que na Sagrada Escritura, em consonância com a ciência moderna, pode ser compreendido a partir da pura razão é uma faixa muito estreita. Com isso cresce consideravelmente o âmbito do que se pode compreender apenas com recurso às condições históricas. É verdade que para Spinoza existe ainda uma evidência imediata das verdades morais que a razão pode reconhecer na Bíblia. Essa evidência assemelha-se, em certo sentido, à da geometria de Euclides, que contém verdades tão imediatamente evidentes à razão que já não se questiona sua origem histórica. No entanto, as verdades morais que possuem essa evidência na tradição bíblica representam para Spinoza apenas uma pequena parcela do todo da tradição bíblica. A Sagrada Escritura, no seu todo, continua estranha à razão. Se quisermos compreendê-la devemos recorrer à reflexão histórica, como é o caso da crítica dos milagres. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

A estrutura do que chamamos de saúde não é uma realidade precisa e delimitada, mas um estado que se caracteriza, desde antigamente, pelo conceito de equilíbrio. O conceito de equilíbrio implica, no entanto, a existência de uma margem de oscilações que se compensam mutuamente. A perda de equilíbrio só acontece quando ultrapassamos a amplitude tolerável das oscilações. A recuperação do equilíbrio, por sua vez, quando possível, apenas se dá penosamente por meio de um novo esforço. Não significando outra coisa que a recuperação do equilíbrio oscilante, o restabelecimento impõe uma moderação especial à “intervenção”. A intervenção incide de fora sobre um sistema que equilibra e regula a si próprio. Toda intervenção que busca eliminar uma perturbação desse equilíbrio está sujeita a modificar involuntariamente outros condicionamentos do equilíbrio. E quanto mais crescem as possibilidades da ciência tanto maior será esse perigo. Para expressá-lo de modo mais geral: há aqui uma tensão essencial entre os nexos isoláveis de saber e poder que se elaboram por meio da análise causal da ciência da natureza e da organização individual, que, como mostrou Kant, só pode ser compreendida a partir de pontos de vista teleológicos. Nesse sentido, a medicina moderna estende-se à problemática comum sustentada pela biologia científica atual. Os progressos alcançados nesse terreno, sobretudo pela chamada teoria da informação e pela cibernética, puseram a perder muito da univocidade de uma ideia utópica do ideal de um “Newton do vegetal”, ideal que parecia totalmente inalcançável para Kant. Mesmo assim, nada disso ajudou a decidir sobre a questão dos métodos morfológicos. Nem sequer sabemos por que os métodos morfológicos são incompatíveis com os métodos analíticos causais. Mesmo com suas próprias pressuposições metodológicas, a chamada investigação comportamental não consegue esclarecer os comportamentos que não se deixam observar como um nexo mecânico entre causa e efeito, sem que essa explicação implique necessariamente uma contradição. Mesmo que algum dia se consiga reproduzir organismos vivos na proveta, não será nenhum contra-senso o estudo do comportamento desses organismos. O pensamento da ciência admite os dois métodos, submetendo-os ao mesmo objetivo, a saber, conhecer cientificamente um âmbito de experiência e torná-lo disponível. De certo, tornar disponível não se restringe à mera capacidade de reproduzir. Implica também a capacidade de prever processos que não estão à mão, como por exemplo o comportamento de seres vivos em determinadas situações. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

Com efeito, devemos perguntar como legitimar o condicionamento hermenêutico de nosso ser frente à existência da ciência moderna, uma vez que esta se baseia totalmente no princípio da imparcialidade e na ausência de preconceitos. Não se trata de dar normas à ciência e recomendar-lhe moderação — isso, sem mencionar que esse tipo de sermão sempre contém algo de cômico. A ciência não fará nossa vontade. Seguirá seu caminho movida por uma necessidade interna, que não depende de seu arbítrio, gerando sempre novos conhecimentos e produções que nos assombram. Não existe outra opção. É absurdo implorar a um pesquisador da área de genética, alertando-o dos perigos da criação de um super-homem. Também não se pode encarar o problema como se nossa consciência humana se opusesse ao curso científico das coisas, pretendendo construir assim uma espécie de contraciência. Mesmo assim não podemos deixar de perguntar se esses objetos aparentemente tão inofensivos, como a consciência estética e a consciência histórica, não apresentam uma problemática própria que afeta primeiramente nossa moderna ciência da natureza e nosso comportamento técnico frente ao mundo. Mesmo que, baseados na ciência moderna, erigíssemos um mundo técnico novo capaz de modificar tudo ao nosso redor, isso ainda não prova que o pesquisador, munido dos conhecimentos decisivos para isso, tenha se dado conta, nem um pouco, dessas desvalorizações técnicas. O que move o verdadeiro pesquisador é a pura vontade de conhecer e nada mais. Apesar disso, devemos nos perguntar se também frente ao conjunto de nossa civilização moderna, baseada na ciência, não acabamos (226) negligenciando alguma coisa. E se não se esclarecerem as pressuposições sob as quais se encontram essas possibilidades de conhecimento e de produção, isso não acarretará que a mão que emprega esses conhecimentos acabará se tornando destrutiva? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

É estranho que um pesquisador de Plotino, tão conceituado como Richard Harder, tenha criticado, em sua última conferência, o conceito de fonte, por causa de sua “procedência das ciências da natureza” (Source de Plotin, entretiens V, VII, Quele oder Tradition?). Por mais justificada que seja a crítica à pesquisa das fontes puramente externa, o conceito de fonte tem uma legitimação bem mais fundamentada. Como metáfora filosófica, esse conceito é de origem platônica e neoplatônica. A imagem que guia essa metáfora é a erupção da água pura e fresca, que brota de uma profundeza invisível. Testemunha disso, entre outras coisas, é a reiterada construção pege kai arche (Faidro, 245c, assim como muitas citações em Philo e Plotino). Como termo filológico, o conceito de fons parece só ter sido introduzido na época do humanismo, e mesmo ali não significa em primeiro lugar o que conhecemos pela investigação das fontes, mas a parole ad fontes, o retorno às fontes, como acesso à verdade originária e não-desfigurada dos autores clássicos. Também isso confirma nossa constatação de que a filologia, nos seus textos, busca a verdade que pode neles se encontrar. A passagem do conceito para o sentido técnico da palavra, usual hoje, deveria conservar algo do significado originário, na medida em que a fonte diferencia-se da reprodução turva ou da apropriação falsificadora. Isso esclarece, de modo específico, que o conceito de fonte só se conhece na tradição literária. Somente o que é transmitido pela linguagem proporciona uma abertura e acesso constante e pleno ao que essa tradição contém; não é preciso restringir-se a interpretar, como ocorre com outros documentos ou relíquias. Pode-se também haurir diretamente da fonte e nela medir suas derivações posteriores. Tudo isso não são imagens da ciência da natureza. São imagens espirituais e de linguagem, que no fundo confirmam o que pensa Harder, a saber, que as (384) fontes não precisam turvar-se pelo fato de serem usadas. Da fonte brota sempre de novo água fresca e o mesmo acontece com todas as verdadeiras fontes espirituais da tradição. Vale a pena estudá-las, porque sempre podem proporcionar algo diferente do que se hauriu delas até o momento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO V

Tornamo-nos mais ou menos cegos para essa tarefa por causa da ciência moderna e sua generalização filosófica. No Fédon de Platão, Sócrates coloca a exigência de compreender a estrutura cósmica e o acontecimento natural do mesmo modo que ele compreende o motivo por que está encarcerado e não aceitou a oferta de fuga, a saber, porque considerou bom para ele aceitar inclusive uma sentença injusta. Compreender a natureza como Sócrates se compreende a si mesmo aqui é uma exigência que a física aristotélica realizou a seu modo. Mas essa exigência não é compatível com o que representa a ciência desde o século XVII e com o que possibilitaram a ciência da natureza e do domínio da natureza sustentado por aquela. É exatamente essa a razão por que a hermenêutica e suas consequências metodológicas aprenderam muito menos da teoria da ciência moderna do que de outras tradições mais antigas que convém recordar. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

O conceito da realidade, ao qual Schiller opõe a poesia, já não é mais, certamente, kantiano. Porque Kant parte sempre, como vimos, do belo natural. Mas na medida em que Kant, devido à sua crítica da metafísica dogmática, restringe o conceito do conhecimento inteiramente à possibilidade da “pura ciência da natureza”, tornando assim indiscutivelmente válido o conceito da realidade nominalística, no final das contas o constrangimento ontológico em que veio a se encontrar a estética do século XIX terá de ser atribuído ao próprio Kant. Sob o domínio do preconceito nominalístico só se pode compreender o ser estético de uma forma insuficiente e equívoca. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.