Quando Kant indaga pelo interesse que se dispensa ao belo, não empiricamente, mas a priori, essa indagação de interesse pelo belo, em face da determinação fundamental da falta de interesse do prazer estético, acaba apresentando uma nova indagação e completa a transição do ponto de vista do gosto para o ponto de vista do gênio. É a mesma doutrina que se desdobra com relação a ambos os fenômenos. Ao assegurar os fundamentos, acaba-se liberando a “crítica do gosto” de todo preconceito, tanto sensualista como racionalista. Está certo que Kant ainda não apresente aqui a pergunta sobre a forma de existência do que foi esteticamente julgado (e com isso de todo o campo indagatorio da relação do belo natural e do belo artístico). Essa dimensão da indagação se abre porém com necessidade, se se pensar o ponto de vista do gosto até o fim, e isto significa para além de si mesmo. A interessante importância do belo é que propriamente movimenta a problemática da estética kantiana. Ela é cada vez uma outra, para a natureza e para a arte, e justamente a comparação do belo natural com o belo artificial dá ao problema seu desenvolvimento. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Aqui vem à tona o mais próprio de Kant. Não é, de forma alguma, como seria de esperar, a arte, devido à qual Kant vai além “do prazer desinteressado” e indaga do interesse pelo belo. Tínhamos, a partir da doutrina do ideal da beleza, descoberto apenas uma vantagem da arte com relação ao belo natural: a vantagem de ser linguagem imediata da expressão do ético. Kant, ao contrário, acentua de início (no parágrafo 42) a vantagem do belo natural com relação ao belo artístico. A beleza natural não possui uma vantagem somente para o juízo estético puro, ou seja, o de tornar claro que o belo repousa, afinal, na finalidade da coisa imaginada para nossa capacidade de compreensão como tal. Isso se torna tão nítido no belo natural, porque não possui nenhum significado, quanto ao conteúdo, que mostre o juízo de gosto em sua pureza não-intelectualizada. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Aqui se conjuga a rejeição da estética da perfeição, na mais bela forma, com a significação moral do belo natural. Justamente porque não encontramos na natureza fins em si e, mesmo assim, achamos beleza, isto é, uma conveniência para a finalidade de nosso prazer, a natureza nos faz, com isso, um “aceno”, no sentido de que somos realmente o último fim, o fim derradeiro da criação. A dissolução do antigo pensamento cosmológico, que deu ao homem seu lugar no arcabouço total dos entes e a cada ente seu objetivo de perfeição, dá ao mundo, que deixa de ser belo, enquanto uma ordem de fins absolutos, a nova beleza, a beleza de ser conveniente para nós. Torna-se “natureza”, cuja inocência reside em que nada sabe dos homens e de seus vícios sociais. Mesmo assim, ela tem algo a nos dizer. Com vista à ideia de uma determinação inteligível da humanidade, a natureza, na qualidade de a bela natureza, ganha uma linguagem que a conduz a nós. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Naturalmente aqui também a importância da arte repousa no fato de que nos agrada, e de que apresenta o homem a si mesmo em sua existência determinada moralmente. Mas os produtos artísticos só servem para nos agradar — ao contrário, os objetos naturais não servem para nos agradar. Justamente nisso reside o significativo interesse pelo belo natural, que, não obstante, consegue tornar consciente nossa determinação moral. A arte não pode nos transmitir esse encontrar-se do homem numa realidade não intencional. Que o homem se encontre a si mesmo na arte, não é para ele a comprovação precedente de algo diferente de si mesmo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Isso é, em si, correto. Mas, por mais impressionante que seja a inteireza dessa sequência de ideias de Kant — ele não coloca o fenômeno da arte sob um padrão a ela adequado. Pode-se fazer o cálculo ao contrário. A vantagem do belo natural com relação ao belo artístico é apenas o reverso da carência do belo natural quanto a uma certa força de expressão. Assim pode-se ver, ao contrário, a vantagem da arte com relação ao belo natural no fato de que a linguagem da arte é uma linguagem exigente, que não se oferece livre e indeterminada à interpretação que vem da disposição de ânimo, porém, nos fala de uma forma determinada significativamente. E o que há de maravilhoso e misterioso na arte é que essa determinada reivindicação não é, apesar disso, nenhum grilhão para a nossa índole, mas justamente abre o espaço de jogo da liberdade lúdica de nossa capacidade de conhecimento. Kant faz justiça absoluta a isso ao dizer que a arte deveria “ser vista como natureza”, ou seja, agradar, sem trair a coerção das regras. Nós não damos atenção à coincidência intencional daquilo que é representado com uma realidade já conhecida. Nem lançamos um olhar quando há semelhança. Não medimos seu sentido de exigência segundo uma medida já bem conhecida, mas, ao contrário, essa medida, o “conceito”, será “esteticamente ampliado” de uma forma ilimitada. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
A definição que Kant deu à arte, como a “bela representação de uma coisa” faz jus à fama, na medida em que até mesmo o feio, na representação através da arte, é belo. Não obstante, a genuína natureza da arte ao se realçar em contraste com o belo natural, saiu-se mal. Se o conceito de uma coisa só fosse considerado como belo, passaria a ser de novo apenas uma questão de uma representação “de cunho acadêmico” e preencheria apenas a condição imprescindível de toda beleza. A arte é justamente, também segundo Kant, mais do que uma “bela representação de uma coisa”: Ela é representação de ideias estéticas, isto é, de algo que vai além de todo conceito. O conceito do gênio pretende formular essa concepção de Kant. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Em face dessa situação, apresenta-se a pergunta pelo modo como Kant determina a mútua relação entre o gosto e o gênio. Kant conserva sua primazia principiai para o gosto, na medida em que também as obras das belas artes, que são artes de um gênio, encontram-se sob o ponto de vista condutor da beleza. Pode-se ter dificuldade em citar, em contraste com a inventividade do gênio, o aprimoramento posterior, que se torna um imperativo do gosto — mas essa é a disciplina necessária, que se pode atribuir ao gênio. Até aí, em casos de litigio, segundo a opinião de Kant, o gosto continua merecendo a primazia. Mas essa questão não tem significação principiai. Porque, basicamente, o gosto encontrase no mesmo nível que o gênio. A arte do gênio reside em tornar transmissível o jogo livre das forças do conhecimento. É o que produzem as ideias estéticas, que ele inventa. A transmissibilidade do estado de ânimo, do prazer, caracteriza também o prazer estético do gosto. E uma capacidade do julgamento, portanto, um gosto de reflexão, mas aquilo sobre o que ele reflete é somente aquele estado de ânimo do avivamento das forças do conhecimento, que se encontra tanto no belo natural como no belo artístico. A significação sistemática do conceito do gênio, ao contrário, está restrita ao caso especial da beleza artística, mas a significação do conceito do gosto é universal. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Uma coisa é certa: para Kant, o conceito de gênio significa realmente apenas uma complementação daquilo que o faz interessar-se pelo juízo estético, “na intenção transcendental”. Não se deve esquecer, que a crítica do juízo, na sua segunda parte, tem a ver absolutamente só com a natureza (e seu julgamento segundo conceitos de finalidade), não tendo nada a ver com a arte. Para a intenção sistemática do todo, a aplicação do juízo estético com relação ao belo e ao sublime na natureza é mais importante do que a fundamentação transcendental da arte. A “adequação da natureza à nossa capacidade de conhecimento”, que, como vimos, só pode ocorrer no belo natural (e não nas belas artes), tem, como princípio transcendental do juízo estético, a importância de preparar igualmente o entendimento para aplicar o conceito de uma finalidade à natureza. Desse ponto de vista, a crítica do gosto, isto é, a estética, é uma preparação para a teleologia. Esta, cuja reivindicação constitutiva para o conhecimento da natureza foi destruída pela crítica da razão pura, no sentido de legitimar um princípio da capacidade de julgamento, é a intenção filosófica de Kant, que só a partir daí conduz a uma conclusão sistemática o todo de sua filosofia. O juízo lança a ponte entre entendimento e razão. O inteligível, a que faz alusão o gosto, o substrato supra-sensorial da humanidade, contém ao mesmo tempo a intermediação entre os conceitos de natureza e os conceitos de liberdade. Essa é a importância sistemática que tem para Kant o problema da beleza natural: Ela fundamenta a posição central da teleologia. Só ela, não a arte, pode ser de proveito na legitimação do conceito de finalidade com relação para o julgamento da natureza. Já a partir desse fundamento sistemático o juízo de gosto “puro” torna-se a base imprescindível da terceira crítica. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O que o conceito do gênio produz é pois apenas comparar esteticamente os produtos das belas artes com a beleza da natureza. Também a arte é vista esteticamente, isto é, também ela é um caso para o juízo reflexo. O que é trazido à tona intencionalmente — e, nesse sentido, plenamente adequado ao fim — não deve ser relacionado a um conceito, mas pretende agradar, com relação ao mero julgamento — tal qual o belo natural. “As belas artes são arte do gênio”, não significa nada mais do que o seguinte: também para o belo, não existe na arte nenhum outro princípio de julgamento, nenhuma medida de conceito ou de conhecimento, a não ser o da conveniência (Zweckmässigkeit) para o sentimento da liberdade no jogo de nossa capacidade de conhecimento. O belo na natureza ou na arte possui um e mesmo princípio apriorístico, que reside totalmente na subjetividade. A autonomia do juízo estético não fundamenta, de forma alguma, nenhum campo de validade autônoma para belos objetos. A reflexão transcendental de Kant sobre um a priori do juízo, justifica a reivindicação do julgamento estético, mas, no fundo, não admite uma estética filosófica no sentido de uma filosofia da arte (o próprio Kant diz que aqui a crítica não corresponde a nenhuma doutrina ou metafísica). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
A fundamentação do juízo estético sobre um a priori da subjetividade estava fadado a ganhar uma significação totalmente nova quando se modificou o sentido da reflexão transcendental-filosófica nos sucessores de Kant. Quando deixa de existir o pano de fundo da metafísica, que fundamentou a preferência pelo belo natural, em Kant, e voltou a vincular o conceito de gênio à natureza, apresenta-se, em um novo sentido, o problema da arte. Já a maneira pela qual Schiller assimilou a Crítica do Juízo de Kant e, tendo em vista o seu ideal de uma “educação estética”, aplicou todo o ímpeto de seu temperamento moral-pedagógico, fez que se elevasse a um primeiro plano o ponto de vista da arte em contraste com o ponto de vista kantiano do gosto e do juízo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Assim vemos que, segundo a questão, a ideia de um gosto consumado, discutida por Kant, seria melhor definida através do conceito do gênio. Naturalmente seria desagradável aplicar a ideia do gosto consumado, como tal no campo do belo natural. Para a arte da jardinagem, até pode, eventualmente, ser aceito. Mas, de uma forma consequente, Kant cunhou a arte da jardinagem como o belo artístico. No entanto, em face da beleza da natureza, p. ex., da beleza de uma paisagem, a ideia de um gosto consumado está bastante fora do lugar. Será que ele consiste em dignificar segundo o mérito tudo que é belo na natureza? Pode haver ali uma seleção? Existe ali uma ordem hierárquica? Será que uma paisagem ensolarada é mais bela que uma mergulhada em chuva? Afinal, existe na natureza o feio? Ou será que há somente para variações de ânimo, variações de simpatia (Ansprechendes), para gostos diferentes, agrados diferentes? Kant pode ter razão quando considera de importância moral indagar se a natureza pode, seja como for, agradar a alguém. Mas pode-se diante dela diferenciar, com sentido, um bom e um mau gosto? Onde uma tal diferenciação não deixa absolutamente nenhuma dúvida, em face da arte e do artístico, aí, como vimos, o gosto é, ao contrário, apenas uma condição restritiva do belo e não contém o seu genuíno princípio. Assim, a ideia de um gosto consumado, ante a natureza como ante a arte, ganha algo de duvidoso. A gente faz violência ao conceito do gosto quando não se assume nele a mutabilidade do gosto. Se há algo que é um testemunho da mutabilidade de todas as coisas humanas e da relatividade de todos os valores humanos, esse algo é o gosto. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Com isso, porém, se deslocaram os fundamentos da estética. Como o conceito do gosto do belo natural também sofre desvalorização, ou será entendido diferentemente. O interesse moral pelo belo da natureza, que Kant descrevera tão entusiasticamente, dá lugar ao auto-encontro do homem nas obras de arte. Na extraordinária estética de Hegel, o belo natural aparece ainda como “reflexo do espírito”. Não há mais, no fundo, nenhum momento independente no todo sistemático da estética. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Para o desenvolvimento da mais recente estética torna-se decisivo que também aqui, como em toda a filosofia sistemática, o idealismo especulativo tenha tido um efeito que vai bem mais além de sua validade reconhecida. Conhecidamente, a execração do esquematismo dogmático da escola de Hegel, em meados do século XIX, acabou promovendo uma renovação da crítica sob a divisa: “De volta a Kant”. Isso vale, da mesma forma, para a estética. Por mais grandiosa que tenha sido a valoração da arte para uma história das cosmovisões, que Hegel deu na sua estética — o método de uma tal construção apriorística da história, que encontrou algumas aplicações na escola hegeliana (Rosenkranz, Schasler, entre outros), acabou sendo rapidamente desacreditada. A exigência de uma volta a Kant, que se levantou contra isso, não conseguiu representar uma verdadeira volta e retomada do horizonte, que abrangia as críticas de Kant. Antes, o fenômeno da arte e o conceito do gênio permaneceram no centro da estética, e o problema do belo natural, bem como o conceito do gosto, continuaram à margem. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O conceito da realidade, ao qual Schiller opõe a poesia, já não é mais, certamente, kantiano. Porque Kant parte sempre, como vimos, do belo natural. Mas na medida em que Kant, devido à sua crítica da metafísica dogmática, restringe o conceito do conhecimento inteiramente à possibilidade da “pura ciência da natureza”, tornando assim indiscutivelmente válido o conceito da realidade nominalística, no final das contas o constrangimento ontológico em que veio a se encontrar a estética do século XIX terá de ser atribuído ao próprio Kant. Sob o domínio do preconceito nominalístico só se pode compreender o ser estético de uma forma insuficiente e equívoca. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.