Interesse “teórico” e não prático. Mas mesmo assim não se cultiva pelo mero desejo de saber, como acentua Aristóteles em sua Ética, mas por causa da arete, isto é, por causa do ser e agir práticos. Pois (291) bem, parece-me digno de nota que se possa afirmar o mesmo a respeito do que Aristóteles, no livro VI da Metafísica, chama “poietike philosophia” e que abarca tanto a poética como a retórica. Nem uma e nem outra são variedades da “techne”, no sentido do saber técnico. Ambas estão baseadas numa faculdade universal do ser humano. Sua posição especial em relação às “technai” não tem uma caracterização distintiva tão clara como é o caso da ideia da filosofia prática, caracterizada por sua relação polêmica com a ideia platônica do bem. Ademais, creio que, em analogia com a filosofia prática, pode-se considerar a posição particular e a especificidade da filosofia poética como uma consequência do pensamento aristotélico. Seja como for, a história acabou tirando essa consequência. O trivium, que se diferencia em gramática, dialética e retórica, e que inclui sob a retórica também a poética, em relação a todos os modos específicos do fazer ou do produzir algo, ocupa um posto tão universal como o posto que compete à praxis em geral e à racionalidade que a orienta. Essas partes do trivium, longe de ser ciências, são artes “liberais”, ou seja, pertencem à postura básica da existência humana. Não são algo que se faz ou se estuda para que se venha a ser então aquele que aprendeu essas artes. Essa capacidade de formação faz parte das possibilidades do ser humano como tal, faz parte daquilo que todo indivíduo é ou pode fazer. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.
Nesse sentido, tenho a impressão de que a palavra grega synesis, empregada para designar o compreender e a compreensão, e que costuma aparece no contexto neutro do fenômeno do aprendizado e numa proximidade intercambiável com a palavra grega que designa o aprender (mathesis), no contexto da ética aristotélica representa uma espécie de virtude espiritual. Trata-se sem dúvida de uma definição mais estrita da palavra, também usada por (315) Aristóteles em sentido neutro, que corresponde ao pertinente estreitamento terminológico de techne e phronesis no mesmo contexto. Mas essa palavra possui muitos significados. A palavra “compreensão” aparece ali com o mesmo significado que teve o emprego da palavra “hermenêutica” — mencionado por mim inicialmente — durante o século XVII, significando o conhecimento e a compreensão da alma. Nesse caso, “compreensão” significa uma modificação da racionalidade prática, o julgamento intuitivo das considerações práticas de um outro. Trata-se de algo mais que uma simples compreensão de algo dito. Implica uma espécie de elemento comum que dá sentido à “reunião em conselho”, ao dar e receber um conselho. São apenas os amigos e os que têm intenção amistosa que podem aconselhar. Isso aponta, de fato, para o centro das questões que se ligam com a ideia de filosofia prática. São as implicações morais, na realidade, que se ligam a esse contraponto da racionalidade prática (phronesis). Em sua ética, Aristóteles analisa propriamente as “virtudes”, conceitos normativos que estão sempre sob a pressuposição de validade normativa. A virtude da razão prática não deve ser concebida como uma faculdade neutra que busca encontrar fins justos para meios práticos. Ela está, antes, inseparavelmente ligada ao que Aristóteles chama de ethos. Ethos é para ele a arche, o “fato prévio” que serve como ponto de partida de todo esclarecimento filosófico-prático. É verdade que seu interesse analítico distingue as virtudes éticas e as virtudes dianoéticas, fazendo-as remontar ao que ele chama de duas “partes” da alma racional. Mas o próprio Aristóteles se pergunta o que significam essas duas “partes” da alma e se não devem ser concebidas, antes, como dois aspectos diversos do mesmo fenômeno, como o convexo e o côncavo. Por fim, essas divisões fundamentais em sua análise do que é o bem prático para o ser humano devem ser interpretadas partindo-se do postulado metodológico próprio de sua filosofia prática. Essa filosofia não quer substituir as decisões práticas racionais que deve tomar cada indivíduo em cada situação. Todas as suas descrições tipificantes são entendidas de súbito na direção dessa concreção. Mesmo a célebre análise da estrutura do ponto central que faz a mediação entre os extremos e que parece corresponder às virtudes éticas aristotélicas não passa de uma determinação aberta a muitas significações. Não só que essa significação receba seu conteúdo relativo dos extremos, cujo perfil possui nas convicções e reações morais das pessoas uma determinação muito maior do que o prestigiado ponto intermediário; o que recebe assim uma (316) descrição esquemática é o ethos do spoudaios. O hos dei e o hos ho orthos logos não são subterfúgios frente a uma exigência conceitual mais rigorosa. São as indicações da situação concreta onde a arete alcança sua determinação. A tarefa daquele que possui a phronesis é fornecer essa situação concreta. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.
Mas o mais importante aprendi-o de Heidegger. Recordo-me sobretudo do primeiro seminário em que participei. Foi no ano de 1923, ainda em Friburgo, sobre o livro VI da Ética a Nicômaco. A phronesis, a arete da “razão prática”, alio eidos gnoseos, “um gênero de conhecimento diferente”, representou para mim então uma palavra mágica. De certo, soou para mim como uma provocação o dia em que Heidegger analisou a distinção entre tekhne e phronesis e declarou a propósito da frase phroneseos de ouk esti lethem (na racionalidade não há esquecimento): “isso é a consciência moral”. Mas essa hipérbole pedagogicamente espontânea sugeria o ponto decisivo a partir do qual o próprio Heidegger preparou mais tarde em Ser e tempo o novo lugar da pergunta pelo ser. Basta pensar em expressões como “vontade de consciência moral”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
Nesse ponto de nossa investigação impõe-se um contexto problemático que já apontamos em mais de uma ocasião. Se o próprio núcleo do problema hermenêutico é que a tradição como tal tem de ser entendida cada vez de uma maneira diferente, então — visto sob o ponto de vista lógico — trata-se da relação entre o geral e o particular. Compreender é então um caso especial da aplicação de algo geral a uma situação concreta e particular. Com isso ganha especial relevância para nós a ética aristotélica, de que já mencionamos nas nossas considerações introdutórias à teoria das ciências do espírito. É verdade que Aristóteles não aborda o problema hermenêutico nem sua dimensão histórica, mas trata somente da apreciação correta do papel que a razão deve desempenhar na atuação ética. Mas é precisamente isto que nos interessa aqui, que ali trata-se de razão e de saber, que não estão separados do ser que deveio, mas que são determinados por este e que são determinantes para este ser. Através de sua limitação do intelectualismo socrático-platônico na questão do bem, Aristóteles funda, como se sabe, a ética como disciplina autônoma frente à metafísica. Criticando como uma generalidade vazia a ideia platônica do bem, contrapõe-lhe a questão pelo humanamente bom, aquilo que é bom para o ser humano . Na linha dessa crítica, torna-se exagerado equiparar virtude e saber, arete e logos, como ocorria na teoria socrático-platônica das virtudes. Aristóteles recoloca-os na sua verdadeira medida, mostrando que o elemento que sustenta o saber ético do homem é a orexis, a “ambição”, e sua elaboração em uma atitude firme (hexis). O conceito da ética carrega já no seu nome a relação com essa fundamentação aristotélica da areté, no exercício e no ethos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.