Frente à dialética platônica, entendida como um saber teórico, Aristóteles reivindicou para a filosofia prática uma autonomia peculiar e iniciou uma tradição que exerceria sua influência até o século XIX a dentro, e acabaria sendo dissolvida no século XX pela “ciência política” ou “politologia”. Mas, apesar de toda determinação com que Aristóteles apresenta a ideia da filosofia prática contra a ciência unitária da dialética de Platão, o aspecto teórico-científico da chamada “filosofia prática” permaneceu na penumbra. Algumas iniciativas que se estendem até os nossos dias buscam ver no “método” da ética aristotélica, introduzida por ele como “filosofia prática” e na qual a virtude da racionalidade prática, a phrone-sis, ocupa um lugar central, nada mais que um exercício de racionalidade prática. (O fato de toda ação humana, e portanto também a exposição dos pensamentos aristotélicos sobre a filosofia prática, estar sujeita aos critérios da racionalidade prática nada diz sobre o que seja o método da filosofia prática.) A discussão sobre esses pontos não deve causar muita surpresa, uma vez que os enunciados gerais aristotélicos sobre a metodologia e a sistemática das ciências são bastante escassos e contemplam menos a natureza metodológica das mesmas do que a diversidade de âmbitos de seus objetos. Isso vale sobretudo para o primeiro capítulo da Metafísica E e sua duplicação em K 7. Decerto, nela destaca-se a física (e em última instância a “filosofia primeira”), como ciência teórica, frente à ciência prática e poiética. Mas se examinarmos o modo de fundamentar a distinção entre as ciências teóricas e as não teóricas, veremos que se fala unicamente da diversidade dos objetos desse saber. Ora, isso corresponde sem dúvida ao princípio geral metodológico de Aristóteles, segundo o qual o método deve reger-se sempre por seu objeto, e o tema aparece claro no que se refere aos objetos. No caso da física, seu objeto caracteriza-se pelo automovimento. O objeto do saber produtivo, ao contrário, a obra a ser criada, tem sua origem no fabricante e em seu saber e poder. Igualmente o que orienta o sujeito na ação prática política é determinado a partir do próprio sujeito e de seu próprio saber. Poderia parecer que Aristóteles está falando aqui do saber técnico (o do médico, por exemplo) e do saber prático daquele que toma uma decisão racional (prohairesis), como se esse saber, ele mesmo, constituísse a ciência poiética ou prática que corresponde à física. É claro que não é o caso. As ciências que se distinguem aqui (junto com a distinção teórica entre física, matemática e teologia) aparecem como ciências que buscam conhecer os archai e as aitiai. Trata-se de uma investigação da arche, ou seja, não do saber aplicado do médico, do artesão ou do político, mas do que se pode dizer e ensinar em geral. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.
Nesse sentido, tenho a impressão de que a palavra grega syne-sis, empregada para designar o compreender e a compreensão, e que costuma aparece no contexto neutro do fenômeno do aprendizado e numa proximidade intercambiável com a palavra grega que designa o aprender (mathesis), no contexto da ética aristotélica representa uma espécie de virtude espiritual. Trata-se sem dúvida de uma definição mais estrita da palavra, também usada por (315) Aristóteles em sentido neutro, que corresponde ao pertinente estreitamento terminológico de tekhne e phronesis no mesmo contexto. Mas essa palavra possui muitos significados. A palavra “compreensão” aparece ali com o mesmo significado que teve o emprego da palavra “hermenêutica” — mencionado por mim inicialmente — durante o século XVII, significando o conhecimento e a compreensão da alma. Nesse caso, “compreensão” significa uma modificação da racionalidade prática, o julgamento intuitivo das considerações práticas de um outro. Trata-se de algo mais que uma simples compreensão de algo dito. Implica uma espécie de elemento comum que dá sentido à “reunião em conselho”, ao dar e receber um conselho. São apenas os amigos e os que têm intenção amistosa que podem aconselhar. Isso aponta, de fato, para o centro das questões que se ligam com a ideia de filosofia prática. São as implicações morais, na realidade, que se ligam a esse contraponto da racionalidade prática (phronesis). Em sua ética, Aristóteles analisa propriamente as “virtudes”, conceitos normativos que estão sempre sob a pressuposição de validade normativa. A virtude da razão prática não deve ser concebida como uma faculdade neutra que busca encontrar fins justos para meios práticos. Ela está, antes, inseparavelmente ligada ao que Aristóteles chama de ethos. Ethos é para ele a arche, o “fato prévio” que serve como ponto de partida de todo esclarecimento filosófico-prático. É verdade que seu interesse analítico distingue as virtudes éticas e as virtudes dianoéticas, fazendo-as remontar ao que ele chama de duas “partes” da alma racional. Mas o próprio Aristóteles se pergunta o que significam essas duas “partes” da alma e se não devem ser concebidas, antes, como dois aspectos diversos do mesmo fenômeno, como o convexo e o côncavo. Por fim, essas divisões fundamentais em sua análise do que é o bem prático para o ser humano devem ser interpretadas partindo-se do postulado metodológico próprio de sua filosofia prática. Essa filosofia não quer substituir as decisões práticas racionais que deve tomar cada indivíduo em cada situação. Todas as suas descrições tipificantes são entendidas de súbito na direção dessa concreção. Mesmo a célebre análise da estrutura do ponto central que faz a mediação entre os extremos e que parece corresponder às virtudes éticas aristotélicas não passa de uma determinação aberta a muitas significações. Não só que essa significação receba seu conteúdo relativo dos extremos, cujo perfil possui nas convicções e reações morais das pessoas uma determinação muito maior do que o prestigiado ponto intermediário; o que recebe assim uma (316) descrição esquemática é o ethos do spoudaios. O hos dei e o hos ho orthos logos não são subterfúgios frente a uma exigência conceitual mais rigorosa. São as indicações da situação concreta onde a arete alcança sua determinação. A tarefa daquele que possui a phronesis é fornecer essa situação concreta. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.