É óbvio que há uma diferença considerável entre o espectador, que se entrega inteiramente ao jogo da arte, e a sanha de olhar da mera curiosidade. Também à curiosidade é peculiar que se veja atraída pela visão, e que nisso se deixe ficar esquecida, sem que daí consiga se arrancar. No entanto, é característico para o objeto da curiosidade que, no fundo, não diga respeito a nada para a pessoa. Não tem nenhum sentido para o espectador. Não há nada nele a que possa realmente retornar e para dentro do qual se recolhesse. Pois, afinal, é a qualidade formal da novidade, isto é, da alteridade abstrata que fundamenta o estímulo da visão. Isso se mostra no fato de que sobrevêm a ele, como um complemento dialético, o tornar-se aborrecido e o embotamento. Ao contrário disso, aquilo que é representado ao espectador como o jogo da arte, não se esgota na mera enlevação do momento, mas inclui uma reivindicação de duração e a duração de uma reivindicação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Este é o contexto, a partir do qual se determina a ideia de Schleiermacher de uma hermenêutica universal. Essa ideia [183] nasceu da representação de que a experiência da alteridade e da possibilidade do mal-entendido são universais. Não resta dúvida de que essa alteridade torna-se maior no discurso artístico, e o mal-entendido mais provável do que no discurso sem arte, e torna-se mais aguda no discurso fixado por escrito do que no oral, que na viva voz é de igual modo constantemente também interpretado. Mas precisamente a extensão da tarefa hermenêutica ao “diálogo significativo”, tão característica de Schleiermacher, mostra como se transformou o sentido da estranheza, cuja superação a hermenêutica deve promover, frente ao que até então havia sido a proposição de tarefas da hermenêutica. Num sentido novo e universal, a estranheza está ligada indissoluvelmente com a individualidade do tu. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Para poder situar em seu pano de fundo correto a verdadeira virada que Schleiermacher dá à história da hermenêutica, começaremos com uma reflexão que nele não desempenha o menor papel, e que desde ele desapareceu por completo dos questionamentos da hermenêutica (coisa que também restringe de uma maneira muito peculiar o interesse histórico de Dilthey pela história da hermenêutica), que na verdade domina o problema da hermenêutica e só através da qual torna-se compreensível a posição que Schleiermacher ocupa na história da hermenêutica. Partiremos do lema: compreender significa, de princípio, entender-se uns com os outros. Compreensão é, de princípio, entendimento. Assim, os homens se entendem entre si, na maioria das vezes imediatamente, isto é, vão se pondo de acordo até chegar a um entendimento. Acordo é sempre, portanto, acordo sobre algo. Compreender-se é compreender-se em [184] algo. Já a linguagem mostra que o “sobre quê” e o “em quê” não são apenas um objeto qualquer do discurso, do qual a compreensão mútua pudesse prescindir ao buscar seu caminho, mas são, antes, caminho e meta do próprio compreender-se. E quando se pode dizer que duas pessoas se entendem, independentemente do “sobre quê” e do “em quê”, isso quer dizer que não somente se entendem nisso ou naquilo, mas em todas as coisas essenciais que unem os homens. A compreensão só se converte numa tarefa especial no momento em que esta vida natural experimenta alguma distorção no co-visar do visado, que é um visar da coisa em causa comum. No momento em que se produz um mal-entendido, ou alguém manifesta uma opinião que causa estranheza por ser incompreensível, é apenas aí que a vida natural fica tão inibida com relação à coisa em causa comum, que a opinião enquanto opinião, isto é, enquanto opinião do outro, do tu ou do texto, se converte num dado fixo. Mas mesmo assim, ainda se procura em geral chegar a um acordo, e não somente compreender. E isso, de tal modo, que se refaz o caminho em direção à coisa em causa. Só quando se mostram vãs todas essas idas e vindas, que perfazem a arte do diálogo, da argumentação, do perguntar e do responder, do objetar e do refutar, e que se realizam também face a um texto como diálogo interior da alma que busca a compreensão, far-se-á uma mudança no questionamento. Só então o esforço da compreensão vai perceber a individualidade do tu e considerar sua peculiaridade. Na medida em que se trata de uma língua estrangeira, o texto já será, isso não é mais do que uma condição prévia. O verdadeiro problema da compreensão aparece quando, no esforço de compreender um conteúdo, coloca-se a pergunta reflexiva de como o outro chegou à sua opinião. Pois é evidente que um questionamento como este anuncia uma forma de alteridade bem diferente, e significa, em último caso, a renúncia a um sentido comum. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Este é, efetivamente, o pressuposto de Schleiermacher: que cada individualidade é uma manifestação do viver total e que, por isso, “cada qual traz em si um mínimo de cada um dos demais, e isso estimula a adivinhação por comparação consigo mesmo”. Assim, ele pode dizer que se deve conceber imediatamente a individualidade do autor, “transformando a si mesmo ao mesmo tempo no outro”. Ao pontualizar desse modo a compreensão no problema da individualidade, surge, para Schleiermacher a tarefa da hermenêutica como uma hermenêutica universal. Pois tanto o extremo da alteridade como o da familiaridade dão-se com a diferença relativa de toda individualidade. O “método” do compreender terá em vista tanto o comum — por comparação — como o peculiar — por adivinhação — isto é, terá de ser tanto comparativo como adivinhatório. Em ambas as perspectivas, porém, continuará sendo “arte”, porque não pode ser mecanizado como se fosse mera aplicação de regras. O adivinhatório continua imprescindível. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
No entanto, examinando-o mais de perto, reconhecemos que também as opiniões não podem ser entendidas de maneira arbitrária. Da mesma forma que não é possível manter muito tempo uma compreensão incorreta de um hábito linguístico, sem que se destrua o sentido do todo, tampouco se podem manter, às cegas, as próprias opiniões prévias sobre as coisas, quando se compreende a opinião de outro. Quando se ouve alguém ou quando se empreende uma leitura, não é necessário que se esqueçam todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo e todas as opiniões próprias. O que se exige é simplesmente a abertura à opinião do outro ou à do texto. Mas essa abertura já inclui sempre que se ponha a opinião do outro em alguma relação com o conjunto das opiniões próprias, ou que a gente se ponha em certa relação com elas. Claro que as opiniões representam uma infinidade de possibilidades mutáveis (em comparação com a univocidade de uma linguagem ou de um vocabulário), mas dentro dessa multiplicidade do opinável, isto é, daquilo em que um leitor pode encontrar sentido e, enquanto tal pode esperar, nem tudo é possível, e quem não ouve direito o que o outro está dizendo, realmente, acabará por não conseguir integrar o mal-entendido em suas próprias e variadas expectativas de sentido. Por isso também aqui existe um padrão. A tarefa hermenêutica se converte por si mesma num questionamento pautado na coisa, e já se encontra sempre determinada por este. Com isso o empreendimento hermenêutico ganha um solo firme sob seus pés. Aquele que quer compreender não pode se entregar, já desde o início, à casualidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar o mais obstinada e consequentemente possível a opinião do texto — até que este, finalmente, já não possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão. Quem quer compreender um texto, em princípio, disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem “neutralidade” com [274] relação à coisa nem tampouco auto-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos, apropriação que se destaca destes. O que importa é dar-se conta das próprias antecipações, para que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade e obtenha assim a possibilidade de confrontar sua verdade com as próprias opiniões prévias. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Nada além do que essa distância de tempo torna possível resolver a verdadeira questão crítica da hermenêutica, ou seja, distinguir os verdadeiros preconceitos, sob os quais compreendemos, dos falsos preconceitos que produzem os mal-entendidos. Nesse sentido, uma consciência formada hermeneuticamente terá de incluir também a consciência histórica. Tornará conscientes os próprios preconceitos, que a guiam na compreensão, com o fim de que a tradição se destaque, por sua vez, como opinião diferente, dando-lhe assim o seu direito. É claro que destacar um preconceito implica em suspender sua validez. Pois na medida em que um preconceito nos determina, não o conhecemos nem o pensamos como um juízo. Como poderia então ser destacado? Conseguir pôr um preconceito diante dos olhos é impossível, enquanto este estiver constante e desapercebidamente em obra, porém somente quando, por assim dizer, ele é atraído por estímulo. Esse estímulo procede precisamente do encontro com a tradição. Pois o que incita à compreensão deve ter-se feito valer já, de algum modo, em sua própria alteridade. Já vimos que a compreensão começa aí onde algo nos interpela. Esta é a condição hermenêutica suprema. Sabemos agora o que ela exige com isso: a de suspender por completo os próprios preconceitos. Porém, a suspensão de todo juízo e, a fortiori, de todo preconceito, visto logicamente, tem a estrutura da pergunta. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A consciência da história efeitual é em primeiro lugar consciência da situação hermenêutica. No entanto, o tornar-se [307] consciente de uma situação é uma tarefa que em cada caso reveste uma dificuldade própria. O conceito de situação se caracteriza pelo fato de não nos encontrarmos diante dela e, portanto, não podemos ter um saber objetivo dela. Nós estamos nela, já nos encontramos sempre numa situação, cuja iluminação é a nossa tarefa, e esta nunca pode se cumprir por completo. E isso vale também para a situação hermenêutica, isto é, para a situação em que nos encontramos face à tradição que queremos compreender. Também a iluminação dessa situação, isto é, a reflexão da história efeitual, não pode ser plenamente realizada, mas essa impossibilidade não é defeito da reflexão, mas encontra-se na essência mesma do ser histórico que somos. Ser histórico quer dizer não se esgotar nunca no saber-se. Todo saber-se procede de um dado histórico prévio, que chamamos, com Hegel, “substância”, porque suporta toda opinião e comportamento subjetivo e, com isso, prefigura e delimita toda possibilidade de compreender uma tradição em sua alteridade histórica. A partir disso a tarefa da hermenêutica filosófica pode ser caracterizada como segue: tem de refazer o caminho da fenomenologia do espírito hegeliana, até o ponto em que, em toda subjetividade, se mostra a substancialidade que a determina. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Em ambos os casos, aquele que procura compreender se coloca a si mesmo fora da situação do entendimento. Ele próprio não é atingível. Na medida em que se atende de antemão não somente ao que o outro procura lhe dizer, mas também à sua posição, coloca-se sua própria posição sob a imunidade do inacessível. Já vimos na gênese do pensamento histórico, que este assume efetivamente essa ambígua transição do meio para o fim, isto é, o que era só um meio, transforma-o em fim. O texto que se procura entender historicamente é privado formalmente de sua pretensão de dizer a verdade. Acredita-se compreender por que vê a tradição a partir do ponto de vista [309] histórico, isto é, porque nos deslocamos à situação histórica e procuramos reconstruir seu horizonte. De fato, renunciou-se definitivamente à pretensão de encontrar na tradição uma verdade compreensível que possa ser válida para nós mesmos. Este reconhecimento da alteridade do outro, que a converte em objeto de conhecimento objetivo, é, no fundo, uma suspensão de sua pretensão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Nesse sentido, compreender uma tradição requer, sem dúvida, um horizonte histórico. Mas o que não é verdade é que se ganhe esse horizonte deslocando-nos a uma situação histórica. Pelo contrário, temos de ter sempre um horizonte para podermos nos deslocar a uma situação qualquer. Pois, o que significa deslocar-se? Evidentemente que não será algo tão simples como “apartar o olhar de si mesmo”. Evidentemente que também isso é necessário na medida em que se procura dirigir a vista realmente a uma situação diferente. Mas nós temos que levar a nós mesmos até essa outra situação. Somente assim se satisfaz o sentido de “deslocar-se”. Se nos deslocamos, por exemplo, à situação de um outro homem, então vamos compreendê-lo, isto é, tornar-nos-emos conscientes de sua alteridade, e até de sua individualidade irredutível, precisamente por nos deslocarmos à sua situação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Já vimos antes, que isso se realiza como um processo de destacar (Abhebung). Consideremos um momento qual é o [311] conteúdo desse conceito de “destacar”. Destacar é sempre uma relação recíproca. O que deve ser destacado tem de destacar-se de algo, que, por sua vez, terá de destacar-se ele próprio daquele. Todo destacar algo torna simultaneamente visível aquilo que se destaca. Nós o descrevemos acima como o pôr em jogo os preconceitos. Partíamos então do fato de que uma situação hermenêutica está determinada pelos preconceitos que trazemos conosco. Estes formam assim o horizonte de um presente, pois representam aquilo mais além do qual já não se consegue ver. No entanto, importa que nos mantenhamos longe do erro de que o que determina e limita o horizonte do presente é um acervo fixo de opiniões e valorações, e que face a isso a alteridade do passado se destaca como um fundamento sólido. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Mas se na realidade não existem esses horizontes que se destacam uns dos outros, por que falamos então de fusão de horizontes e não simplesmente da formação desse horizonte único que remonta sua fronteira às profundidades da tradição? Colocar essa questão implica admitir a peculiaridade da situação, na qual a compreensão se converte em tarefa científica, e admitir que é necessário uma vez elaborar esta situação como situação hermenêutica. Todo o encontro com a tradição realizado com consciência histórica experimenta por si mesmo a relação de tensão entre texto e presente. A tarefa hermenêutica consiste em não ocultar esta tensão em uma assimilação ingênua, mas em desenvolvê-la conscientemente. Esta é a razão por que o comportamento hermenêutico está obrigado a projetar um horizonte que se distinga do presente. A consciência histórica é consciente de sua própria alteridade e por isso destaca o horizonte da tradição com respeito ao seu próprio. Mas, por outro lado, ela mesma não é, como já procuramos mostrar, senão uma espécie de superposição sobre uma tradição que continua atuante, e por isso ela recolhe em seguida o que acaba de destacar, com o fim de intermediar-se consigo mesma na unidade do horizonte histórico que alcança dessa maneira. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Por isso, teremos que determinar a estrutura da consciência [352] da história efeitual, na perspectiva de Hegel e buscando uma diferenciação dele. A interpretação espiritual do cristianismo, através da qual Hegel determina a essência do espírito, não se vê afetada pela objeção de que nela não restaria espaço para a experiência do outro e da alteridade da história. A vida do espírito consiste, antes, em reconhecer-se a si mesmo no ser do outro. O espírito, orientado para o conhecimento de si mesmo, vê-se dividido com o “positivo” que lhe aparece como estranho, e tem de aprender a reconciliar-se com ele, reconhecendo-o como próprio e familiar. Resolvendo a dureza da positividade, reconcilia-se consigo mesmo. E, enquanto que essa reconciliação é a tarefa histórica do espírito, o comportamento histórico do espírito não é nenhum auto-refletir-se nem mesmo uma suspensão puramente formal-dialética da auto-alienação que lhe aconteceu, mas uma experiência, que experimenta realidade e é ela própria real. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
No terreno hermenêutico o correlato dessa experiência do tu é o que se costuma chamar a consciência histórica. A consciência histórica tem notícia da alteridade do outro e do passado em sua alteridade, tal como a compreensão do tu tem notícia do mesmo como pessoal. No outro do passado não busca o caso de uma regularidade geral, mas algo historicamente único. Mas, na medida em que nesse reconhecimento procura elevar-se por inteiro acima de seu próprio condicionamento, fica aprisionado na aparência dialética, pois o que realmente procura é tornar-se ao mesmo tempo senhor do passado. Isto não precisa acontecer nos moldes da pretensão especulativa de uma filosofia da história universal — pode também rebrilhar como o ideal do esclarecimento consumado, que ilumina o caminho de experiência das ciências históricas, como vimos, por exemplo, em Dilthey. Já revelamos a aparência dialética que a consciência histórica produz, e que é correlata da aparência dialética da experiência consumada no saber, quando na nossa análise da consciência hermenêutica descobrimos que o ideal . do esclarecimento histórico é algo irrealizável. Aquele que se crê seguro na sua falta de preconceitos, porque se apoia na objetividade de seu procedimento e nega seu próprio condicionamento histórico, experimenta o poder dos preconceitos que o dominam incontroladamente como uma vis a tergo. Aquele que não quer conscientizar-se dos preconceitos que o dominam acaba considerando erroneamente o que vem a se mostrar sob eles. É como na relação entre o eu e o tu. Aquele que sai reflexivamente da reciprocidade de uma tal relação altera-a e destrói sua vinculatividade moral. Da mesma maneira, aquele que sai reflexivamente da relação vital para com a tradição destrói o verdadeiro sentido desta. A consciência histórica que quer compreender a tradição não pode abandonar-se à forma metódico-crítica de trabalho com que se aproxima das fontes, como se ela fosse suficiente para proteger contra a intromissão dos seus próprios juízos e preconceitos. Verdadeiramente tem que pensar também a própria historicidade. Estar na tradição não [367] restringe a liberdade do conhecer, mas a faz possível, como já o formulamos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Eis aqui o correlato da experiência hermenêutica. Eu tenho de deixar valer a tradição em suas próprias pretensões, e não no sentido de um mero reconhecimento da alteridade do passado, mas na forma em que ela tenha algo a me dizer. Também isto requer uma forma fundamental de abertura. O que está aberto à tradição desta maneira vê que a consciência histórica não está realmente aberta, mas que, antes, quando lê seus textos “historicamente”, já nivelou prévia e fundamentalmente toda a tradição, e os padrões de seu próprio saber não poderão ser nunca postos em questão por ela. Recordo neste ponto a forma ingênua de comparação, na qual costuma mover-se quase sempre o comportamento histórico. O fragmento 25 do Lyceum de Friedrich Schlegel diz: “Os dois postulados fundamentais da chamada crítica histórica são o postulado da medianidade e o axioma da habitualidade. Postulado da medianidade: tudo o que é verdadeiramente grande, bom e belo é inverossímil, pois é extraordinário e no mínimo suspeitoso. Axioma da habitualidade: as coisas têm de ter sido sempre tal como são entre nós e ao nosso redor, porque é tudo tão natural”. — Pelo contrário, a consciência da história efeitual vai mais além da ingenuidade deste comparar e igualar, deixando que a tradição se converta em experiência e mantendo-se aberta à pretensão da verdade que lhe vem ao encontro nela. A consciência hermenêutica tem sua consumação não na certeza metodológica sobre si mesma, mas na pronta disposição à experiência que caracteriza o homem experimentado face ao que está preso dogmaticamente. É isto que caracteriza a consciência [368] da história efeitual, como poderemos pronunciar mais detalhadamente a partir do conceito da experiência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Com isso, nos metemos numa dimensão que, em geral, é descuidada pela autoconcepção dominante das ciências históricas. E regra geral que o historiador eleja os conceitos com os quais descreve a peculiaridade histórica de seus objetos, sem reflexão expressa sobre a sua origem e justificação. Segue nisso unicamente o seu interesse pela coisa, e não se dá conta do fato de que a apropriação descritiva que ele encontra nos conceitos que elege pode ser altamente desastrosa para a sua própria intenção, na medida em que equipara a estranheza histórica ao que é familiar e, assim, já submeteu a alteridade do objeto aos próprios conceitos prévios, por mais imparcialmente que pretenda compreendê-lo. Apesar de toda a sua metodologia científica, comporta-se da mesma maneira que todo aquele que, como filho do seu tempo, está dominado acriticamente pelos conceitos prévios e pelos preconceitos do seu próprio tempo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
A relação entre alma e corpo, como é pensada nesse tipo de teorias, por exemplo, na filosofia platônico-pitagórica, e a que corresponde a ideia religiosa da transmigração das almas, instaura, antes, a completa alteridade da alma em relação ao corpo. A alma retém em todas as corporalizações seu ser para si, e a liberação do corpo é para ela purificação, isto é, reconstrução de seu ser verdadeiro e autêntico. Também a manifestação do divino na forma humana, que torna tão humana a religião grega, nada tem a ver com a encarnação. Ali, Deus não se torna homem, mas se mostra aos homens em forma humana, mantendo ao mesmo tempo, por inteiro e absolutamente, toda sua divindade supra-humana. Frente a isso, o Deus feito homem, como ensina a religião cristã, implica o sacrifício que assume o crucificado como filho do homem, e implica, com isso, uma relação misteriosamente diferente, cuja interpretação teológica tem lugar na doutrina da trindade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Da relação mundana da linguagem, segue-se seu caráter peculiar de coisa. O que vem à fala são conjunturas. Uma coisa que se comporta desse modo ou de outro. Nisso estriba-se o reconhecimento da alteridade autônoma, que pressupõe por parte do falante uma distância própria com respeito à coisa. Sobre essa distância repousa o fato de que algo possa destacar-se como conjuntura própria e converter-se em conteúdo de uma proposição, suscetível de ser entendida pelos demais. Na estrutura da conjuntura que se destaca, está dado o fato de que sempre haja nela algum componente negativo. A determi-natividade de qualquer ente consiste precisamente em ser tal coisa e não ser tal outra. Em consequência existem, por princípio, conjunturas negativas, que o pensamento grego leva em conta pela primeira vez. Já na obstinada monotonia do princípio eleático da correspondência de ser e noein o pensamento grego segue o caráter fundamental de coisa, próprio da linguagem, e, em sua superação do conceito eleático do ser, Platão reconhece que o não-ser no ser é o que, na realidade, torna possível que se fale do ente. É claro que na variada articulação do logos do eidos não podia desenvolver-se adequadamente, como já vimos, a questão do ser próprio da linguagem; tão penetrado estava o pensamento grego da objetividade da linguagem. Perseguindo a experiência natural do mundo em sua conformação linguística, o pensamento grego pensa o mundo como o ser. O que pensa em cada caso como ente destaca-se como logos, como conjuntura enunciável, a partir de um todo circundante, que constitui o horizonte do mundo da linguagem. O que desse modo se pensa como ente não é, na realidade, objeto de enunciados, mas “vem à fala em enunciados”. Com isso, ganha sua verdade, seu caráter de ser e estar aberto no pensamento humano. Desse modo, a ontologia grega se fundamenta na objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, concebendo a linguagem a partir do enunciado. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Em um empreendimento como este é questão de ordem levar-se em conta a ressonância que o projeto pessoal encontrou junto à crítica. Também nesse caso, não podemos negligenciar que o fato de a história efeitual pertencer à coisa ela mesma é uma verdade hermenêutica. Nesse sentido há que se remeter para o prefácio à 2a edição e o posfácio à 3a e 4a edições. Olhando retrospectivamente, hoje, parece-me que não se alcançou plenamente a consistência de caráter teorético desejada, pelo menos num ponto. Não fica suficientemente claro como se harmonizam os dois projetos fundamentais que contrapõem o conceito de jogo ao princípio subjetivista que determina o pensamento da modernidade. Por um lado, encontra-se a orientação no jogo da arte, e ademais, a fundamentação da linguagem no diálogo, que trata do jogo da linguagem. Com isso coloca-se a questão mais ampla e decisiva: até que ponto consegui tornar visível a dimensão hermenêutica como um além da autoconsciência, e isto quer dizer, não suspender mas conservar a alteridade do outro na compreensão? Tive, assim, que recuperar o conceito de jogo em minha perspectiva ontológica, ampliada ao caráter universal da linguagem. Tratava-se de vincular estreitamente o jogo da linguagem com o jogo da arte, no qual havia vislumbrado como o caso hermenêutico por excelência. Era natural agora pensar a nossa experiência de mundo em seu aspecto da linguagem, que é universal, sob o modelo do jogo. Já no prefácio à 2 — edição de meu livro assim como nas páginas conclusivas de minha contribuição “Die phänomenologische Bewegung” (O movimento fenomenológico) mostrei a convergência das minhas ideias concebidas nos anos trinta com o conceito de jogo do Wittgenstein tardio. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Em alguns pontos de minha argumentação percebe-se de modo especial que o meu ponto de partida das ciências “históricas” do espírito é unilateral. Sobretudo a introdução do significado hermenêutico da distância temporal, pois, por mais convincente que tenha sido, acabou sendo um péssimo precursor do significado [9] fundamental da alteridade do outro e com isso da função fundamental que concerne à linguagem, isto é, ao diálogo. Teria sido mais adequado à coisa em questão falar, de uma forma mais geral, da função hermenêutica da distância. Não precisa tratar-se sempre de uma distância histórica e também não é sempre a distância temporal, em absoluto e como tal, que está em condições de superar conotações falsas e aplicações destrutivas. A distância mostra-se também na simultaneidade, como um momento hermenêutico, por exemplo, no encontro entre pessoas, que na conversa buscam primeiramente uma base comum, e de modo pleno no encontro entre pessoas que falam línguas estrangeiras ou que vivem em outras culturas. Cada um desses encontros deixa vir à consciência algo como uma opinião preconcebida, que parece tão evidente e natural a esta pessoa que ela não se dá conta da equiparação ingênua que faz com o próprio, e o mal-entendido que se estabelece com isso. Nesse ponto, a primeira significação do diálogo, inclusive para a investigação etnológica e a questionabilidade de sua técnica de questionários, acabou tornando-se importante. No entanto, permanece correto que onde entra em jogo a distância temporal, esta garante um auxílio crítico especial, porque é só então que saltam à vista as modificações e que as diferenças podem ser observadas. Pense-se na dificuldade de se avaliar a arte contemporânea, a que eu me referi especialmente em minhas explanações. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Essa exigência fundamental deve ser pensada como a radicalização de um procedimento que, na verdade, estamos constantemente empregando. Aqui não cabe a restrição, segundo a qual ao ouvir alguém ou fazer uma leitura não podemos ter nenhuma opinião prévia em relação ao conteúdo, devendo esquecer todas as opiniões próprias. Ao contrário, quando se abre espaço para a opinião do outro ou do texto, isso sempre já pressupõe a relação dessa opinião com o conjunto das opiniões próprias e vice-versa. É verdade que as opiniões representam a movimentação de uma multiplicidade de possibilidades. Dentro dessa multiplicidade do passível de opinião, isto é, dentro daquilo que um leitor pode encontrar e esperar encontrar de significativo, nem tudo é possível, e todo aquele que não leva em conta o que o outro realmente diz acabará por não poder integrá-lo à própria expectativa múltipla de sentido. Dessa forma, há aqui também um critério. A tarefa hermenêutica transforma-se assim, espontaneamente, num questionamento voltado para as coisas elas mesmas que sempre a codetermina. Com isso, a empresa hermenêutica alcança uma base sólida. Quem quiser compreender não pode de antemão abandonar-se cegamente à casualidade das próprias opiniões, para em consequência e de maneira cada vez mais obstinada não dar ouvidos à opinião do texto, até que esta opinião não mais se deixe ouvir, impedindo a compreensão presumida. Quem quiser compreender um texto está, ao contrário, disposto a deixar que ele diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente deve ser de antemão receptiva à alteridade do texto. Essa receptividade não pressupõe, no [61] entanto, uma “neutralidade” quanto à coisa, nem um anulamento de si mesmo, incluindo a apropriação seletiva das próprias opiniões e preconceitos. Há que se ter consciência dos próprios pressupostos a fim de que o texto se apresente a si mesmo em sua alteridade, de modo a possibilitar o exercício de sua verdade objetiva contra a opinião própria. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
Na analítica de Heidegger, portanto, o círculo hermenêutico ganha uma significação totalmente nova. A estrutura circular da compreensão manteve-se, na teoria que nos precedeu, sempre nos quadros de uma relação formal entre o individual e o todo ou de seu reflexo subjetivo: a antecipação divinatória do todo e sua explicitação consequente no caso singular. Segundo esta teoria, portanto, o movimento circular oscilava no texto e acabava suspenso com sua completa compreensão. A teoria da compreensão culminava num ato divinatório que se transferia totalmente ao autor e, a partir dali, procura dissolver tudo que é estranho ou causava estranheza no texto. Heidegger, pelo contrário, reconhece que a compreensão do texto permanece sempre determinada pelo movimento pré-apreensivo da compreensão prévia. O que Heidegger descreve dessa forma não é outra coisa do que a tarefa de concretização da consciência histórica. Junto com essa concretização, exige-se tomar consciência das próprias opiniões prévias e preconceitos e realizar a compreensão guiada pela consciência histórica, de forma que a apreensão da alteridade histórica e o emprego que ali se faz dos métodos históricos não consista simplesmente em deduzir o que a ela se atribuiu de antemão. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
Muitas vezes, a distância temporal pode resolver a tarefa propriamente crítica da hermenêutica, distinguir os verdadeiros preconceitos dos falsos. A consciência formada hermeneuticamente incluirá, por isso, uma consciência histórica. Terá de tomar consciência dos preconceitos que regem a compreensão, a fim de que a tradição se destaque e se imponha como uma opinião diversa. Para se destacar um preconceito, como tal, é necessário certamente suspender-lhe a validade; pois, à medida que continuamos determinados por um preconceito, não temos conhecimento dele e nem o pensamos como um juízo. Desta forma, não conseguirei colocar um preconceito no aberto, diante de mim, enquanto este estiver constante e inadvertidamente em jogo, mas somente quando, por assim dizer, ele é incitado. O que permite incitá-lo, desta forma, é o encontro com a tradição, uma vez que aquilo que provoca a compreensão já deve ter se imposto em sua alteridade. O primeiro elemento com que se inicia a compreensão é o fato de que algo nos interpela. É a primeira de todas as condições hermenêuticas. Agora vemos o que se exige para isso: uma suspensão fundamental dos próprios preconceitos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
Aqui está em questão o aspecto do problema hermenêutico apresentado nesse último caso. Tanto a compreensão da tradição cristã quanto a da Antiguidade Clássica implica para nós uma consciência histórica. Por mais vivo que ainda seja o que nos liga à grande tradição greco-cristã, compartilhamos todos a consciência da alteridade, a consciência de não pertencermos mais de modo inquestionável a esta tradição. Isso torna-se muito claro nos primórdios da crítica histórica à tradição e nos inícios da crítica bíblica empreendida por Spinoza, em seu tratado teológico-político. Ali mostra-se claramente que o caminho da compreensão histórica é uma espécie de desvio inevitável, que deve ser percorrido por todo aquele que, não tendo acesso direto ao que diz a tradição, quer compreendê-la. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.
A convicção romântica da total estranheza face à tradição, segundo a qual a tradição constitui uma total alteridade frente ao presente, tornou-se uma pressuposição metodológica fundamental do procedimento hermenêutico. A hermenêutica torna-se uma postura metodológica universal justamente por pressupor a estranheza do conteúdo a ser compreendido e, com isso, impor-se a tarefa de sua superação pela apropriação do conhecimento. É bastante significativo que Schleiermacher não considere tão absurda a ideia de se compreender mesmo os princípios de um Euclides a partir da perspectiva histórica, isto é, recorrendo aos momentos fecundos da vida de Euclides, nos quais surgiram essas ideias. Em lugar do conhecimento objetivo imediato, surge a compreensão psicológico-histórica como a postura realmente metodológica e científica. Foi só a partir daí que a ciência bíblica, a teologia em seu aspecto exegético, pôde elevar-se ao status de uma verdadeira ciência histórico-crítica. A hermenêutica tornou-se o órgão geral do método histórico. Sabe-se que a introdução dessa reflexão histórico-crítica no campo da exegese bíblica provocou grandes tensões entre dogmática e exegese, que perpassam o trabalho teológico do Novo Testamento até os dias de hoje. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.
Para isso lancei mão, sobretudo, da linguagem inerente a toda compreensão. Refiro-me a coisas muito simples e nada misteriosas. Trata-se simplesmente de que nossa consciência histórica, impregnada de conhecimento da alteridade, do estranhamento e mundos históricos alheios, ao aspirar manter separados seus próprios conceitos e os conceitos dessas épocas e mundos alheios, ao final do enorme esforço de conhecimento histórico acaba sempre conjugando ambas as conceptualidades. Um exemplo: a forma jurídica mais estranha que nos chegou das culturas mais antigas é considerada como um tipo de direito que encontra compreensão no espaço global do que é possível juridicamente. Não é uma mera manifestação de nossa consciência histórica a possibilidade de explicitar, por exemplo, como compreendemos os estranhos documentos babilónicos (ou quaisquer outros) como documentos jurídicos e a possibilidade de estar de acordo sobre eles. Não é somente que a distância histórica seja intermediada pelo caráter de linguagem (Sprachlichkeit), mas que essa mediação é prévia a qualquer consciência especificamente histórica. O lugar central do fenômeno da linguagem está não somente em presidir o método da interpretação histórica, mas em ser a forma como se transmitiu sempre o passado e as coisas passadas. Estamos habituados a considerar com um certo orgulho histórico como os escritores da Antiguidade ou da Idade Média, de modo ingenuamente tipológico ou moralista, viam nos testemunhos do passado confirmações diretas do que eles tomavam por verdadeiro. Costumamos dizer que careciam de sentido histórico. Mas o modo dessa compreensão ou assimilação diretamente moralizante ou articulado de qualquer outro modo da tradição passada é na realidade um acontecer de linguagem do mesmo que qualquer processo histórico de interpretação na ciência moderna. A diferença é que ali o vemos com máxima clareza, porque as palavras que se assumiu sem modificação alguma adquirem imediatamente um sentido muito diferente. O trato ingênuo com a tradição efetua sempre uma aplicação ao momento presente que não obstante possa nos parecer extremamente a-científica e portanto falsa e muitas vezes faz parte desses mal-entendidos fecundos a partir de onde vive o nexo tradicional das culturas. Algo dessa convergência conosco mesmos mantém-se vivo em todo conhecimento histórico. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.
A história da compreensão não é menos antiga e honorável. Se quisermos reconhecer a hermenêutica onde ela aparece como uma verdadeira arte de compreender, então, se não quisermos começar com o Nestor da Ilíada, temos de começar com Ulisses. Poderíamos apelar para o fato de que o novo movimento de educação da sofística impulsionou de fato a interpretação de frases poéticas famosas, adornando-as artificialmente como exemplos pedagógicos. Junto com Gundert, poderíamos até contrapor a esta hermenêutica uma hermenêutica socrática. Mas isso está longe de ser uma teoria da compreensão, e parece ser característico para o surgimento do problema hermenêutico a eliminação de um distanciamento, a superação de uma alteridade e a construção de uma ponte entre o outrora e o agora. Nesse sentido, seu momento característico foi a época moderna, que ganhou consciência de sua distância em relação aos tempos passados. Algo disso já se encontrava na pretensão teológica de compreensão da Bíblia, própria da Reforma, e de seu princípio da sola scriptura, mas encontrou um real desenvolvimento na medida em que o Iluminismo e Romantismo geraram uma consciência histórica, que estabeleceu uma relação cindida com toda tradição. Outra consequência se deu pelo fato de a história da teoria hermenêutica ter-se orientado na tarefa da interpretação das “manifestações vivas expressas por escrito”, mesmo que a elaboração teórica da hermenêutica de Schleiermacher tenha incluído a compreensão no modo como se dá no trato oral da conversação. A retórica, ao contrário, voltava-se para a imediaticidade do efeito do discurso, e mesmo tendo trilhado também os caminhos da escrita artística e desenvolvido a teoria do estilo e os estilos, sua verdadeira realização não se dá na leitura mas no dizer. A posição intermédia do discurso proclamado já denuncia a tendência de basear a arte do discurso em recursos artísticos fixados por escrito, desligando-os da situação originária. Aqui se inicia a influência recíproca com a poética, cujos objetos de linguagem alcançam um tal grau de pureza artística que sua transformação da oralidade para a escritura e vice-versa se dá sem perdas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
A experiência hermenêutica carrega uma tensão não só desde o surgimento da ciência moderna, mas desde que se pleiteou um questionamento hermenêutico: uma tensão que jamais se resolve. Desse modo, ela não se deixa enquadrar sob o esquema de um autoconhecimento na alteridade, no qual o sentido seria sempre apreendido e transmitido plenamente. Esse conceito idealista do sentido do compreender não me parece desorientar apenas Apel, mas a maioria de meus críticos. Eu próprio admito que uma hermenêutica filosófica reduzida a idealismo necessita de complemento crítico. Procurei demonstrar isso na crítica aos seguidores hegelianos do século XIX, Droysen e Dilthey. Mas o impulso da hermenêutica não foi sempre “compreender” pela interpretação o estranho, a vontade inescrutável dos deuses, a mensagem de salvação ou as obras dos clássicos. Tampouco isso significa sempre uma inferioridade constitutiva daquele que compreende frente àquele que fala ou que dá a entender? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser “se mostra”. A “hermenêutica da facticidade” [335] significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O “ser para o texto”, que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o “ser para a morte”, e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta “imanência” metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por “compreender” algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A [336] experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do “conhecimento de si mesmo na alteridade” como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de “vontade de poder” presente até na submissão e no sacrifício: “também no escravo há vontade de poder”. Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o “logocentrismo” da ontologia grega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Aqui percebemos uma limitação do modelo grego, já denunciada criticamente no Antigo Testamento, em Paulo, em Lutero e em seus inovadores modernos. Na famosa descoberta do diálogo socrático como forma básica de pensamento, esta dimensão no diálogo não ganha consciência conceitual. Isso se explica em parte porque um escritor com a imaginação poética e a força de linguagem como Platão soube descrever a figura carismática de seu Sócrates de modo a deixar transparecer a pessoa e a tensão erótica que dele emana. Mas quando insiste na explicitação do diálogo, convencendo os outros de sua ignorância e atraindo-os inclusive para a sua causa, esse seu Sócrates pressupõe que o logos é comum a todos e não exclusividade sua. Como foi dito, a profundidade do princípio dialogai somente alcançou a consciência filosófica no ocaso da metafísica, na época do romantismo alemão, e se impôs novamente no século XX em contraposição ao idealismo e seu atrelamento ao sujeito. Esse é meu ponto de partida. Nesse contexto, pergunto como a comunidade de sentido que se produz no diálogo cria intermediação com a opacidade da alteridade do outro, e o que é em última instância a estrutura da linguagem: é uma ponte ou uma barreira? Uma ponte para a comunicação de um com o outro e construir [337] identidades sobre o rio da alteridade, ou uma barreira que limita nossa auto-entrega e nos priva da possibilidade de expressar-nos e comunicar-nos plenamente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.