Em contrapartida ao modo de pensar da mais recente estética, tínhamos desenvolvido acima o conceito do jogo como o genuino acontecimento da arte. Essa tentativa veio agora a se confirmar no fato de que, também o quadro — e com isso o conjunto da arte não dependente de re-produção — é um acontecimento do ser e, por isso, não pode ser adequadamente entendido como objeto de uma consciência estética, mas, antes, [149] pode ser compreendido em sua estrutura ontológica, a partir de fenômenos como o da re-presentação. O quadro é um acontecimento do ser — nele o ser torna-se um fenômeno sensorial-visível. A originalidade da imagem, portanto, não se limita à função “retratante” do quadro — e, assim, também não ao domínio particular da pintura e das artes plásticas “objetivas”, do qual, por exemplo, a arte da construção ficaria totalmente excluída. A originalidade da imagem é, antes, um momento da essência, que encontra seu fundamento no caráter de representação da arte. A “idealidade” da obra de arte não pode ser determinada através da relação com uma ideia como um ser a ser imitado, reproduzido, senão que, como diz Hegel, como o “aparecer” da própria ideia. A partir do fundamento de uma tal ontologia do quadro, torna-se infundada a primazia do quadro pintado sobre madeira, que faz parte de um acervo de pinturas e que corresponde à consciência estética. O quadro guarda, antes, uma relação indissolúvel com o seu mundo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O que importa reconhecer é que aquilo que chamamos de ocasionalidade não representa, de forma alguma, uma redução da exigência artística e da univocidade artística de tais obras. Pois, o que se apresenta à subjetividade estética como “irrupção do tempo no jogo” e que na era da arte vivencial apareceu como uma redução do significado estético de uma obra. É, na verdade, apenas o reflexo subjetivo daquela relação ontológica que elaboramos acima. Uma obra de arte pertence tão estreitamente àquilo com o qual tem relação, que enriquece o ser daquele outro como que através de um novo acontecimento do ser. No quadro, ser-fixado; na poesia, ser-tratado; ser meta de uma alusão, do ponto de vista do palco, isso tudo não são efemeridades, que permanecem distanciadas do ser, mas representações desse próprio ser. O que dissemos de modo geral acima sobre a valência de ser do quadro inclui também esse momento ocasional. Assim, apresenta-se o momento da ocasionalidade, que vem ao encontro nos fenômenos citados, como um caso de exceção de uma relação geral, que convém ao ser da obra de arte: a fim de experimentar a continuidade da determinação de seu significado a partir da “ocasião” de seu vir à representação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
De todas essas ponderações, justifica-se caracterizar o modo de ser da arte, no seu todo, através do conceito da representação, o qual abarca do mesmo modo jogo como quadro, comunhão como representação. A obra de arte será entendida, com isso, como um acontecimento do ser e desfaz-se sua abstração, na qual a diferenciação estética a coloca. Também o quadro é um acontecimento da representação. Sua relação com o quadro original é tampouco uma redução de sua autonomia de ser, que nós, ao contrário, tendo em vista o quadro, tivemos motivo para falar de um crescimento de seu ser. O emprego de conceitos jurídico-sacrais mostrou-se, a partir daí, como um mandato. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A atual discussão hermenêutica que se apoia em Bultmann parece querer superá-lo apenas numa certa direção. Se para Bultmann o apelo do anúncio cristão se dirige ao homem, no sentido de que deve renunciar à vontade de dispor de si mesmo, a própria convocação desse apelo é de certo modo uma experiência privada que o homem faz enquanto dispõe de si mesmo. Nesse sentido, Bultmann interpretou o conceito heideggeriano da inautenticidade da pre-sença de uma maneira eminentemente teológica. Em Heidegger, porém, a inautenticidade não está ligada à autenticidade no mesmo sentido em que a decadência é tão própria à existência humana quanto a “decisibilidade”, e que o pecado (a falta de fé) lhe é tão próprio quanto a fé. Em Heidegger, a origem comum de autenticidade e inautenticidade ultrapassa o ponto de partida baseado na autocompreensão. É a primeira forma sob a qual, no pensamento de Heidegger, o próprio ser veio à fala em sua polaridade de desvelamento e velamento. Assim como Bultmann se apoia na analítica existencial da pre-sença, de Heidegger, para explicitar a existência escatológica do homem entre fé e falta de fé, pode-se também tomar esta dimensão da questão do ser a partir do ponto de vista teológico, na medida em que se traz para a “linguagem da fé” o significado central que possui a linguagem nesse acontecimento do ser. Essa dimensão aparece melhor explicitada no Heidegger tardio. Já na discussão hermenêutica feita por Ott, marcada por um tom altamente especulativo, encontramos uma crítica dirigida a Bultmann, muito próxima à Carta sobre o humanismo de Heidegger. Corresponde à sua própria tese positiva, p. 107: “A linguagem, na qual ‘vem à fala’ a realidade, na qual e com a qual se realiza a reflexão sobre a existência humana, essa linguagem acompanha a existência em todas as épocas de seu acontecer”. Creio que também as ideias hermenêuticas do teólogo Fuchs e Ebeling têm sua origem no Heidegger tardio, na medida em que priorizam decisivamente o conceito da linguagem. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.