Gadamer (VM): acontecimento

Se, a seguir, se passar a comprovar o quanto de acontecimento age em toda compreensão e quão pouco, através da consciência histórica-moderna, se debilitam as tradições em que nos vemos, não se procurará com isso, por exemplo, baixar diretrizes para as ciências ou para a prática da vida, mas sim, corrigir uma falsa concepção sobre o que são. GVM Introdução

Terá de se conscientizar de que sua própria compreensão e interpretação não é nenhuma construção a partir de princípios, mas o aperfeiçoamento de um acontecimento que lhe vem de longe. GVM Introdução

É realmente uma trivialidade o que daí surge, caso isso signifique, p ex, que se tenha, ao julgar um acontecimento quanto à sua verdade, de levar em consideração as circunstâncias (circonstances) que o acompanham. GVM I 1

Veremos que nisso reside uma consequência hermenêutica de longo alcance, na medida em que todo encontro com a linguagem da arte é um encontro com um acontecimento não acabado e, ela mesma, uma parte desse acontecimento. GVM I 1

O fato de o modo de ser do jogo encontrar-se tão próximo da forma de movimento da natureza, permite, porém, uma importante conclusão metódica. É evidente que não é assim, que os animais também brincam (spielen, em alemão, que significa tanto jogar, como brincar, tocar um instrumento ou representar teatro etc.) e que até se possa dizer, num sentido figurado, que a água e a luz brincam. Ao contrário poderíamos antes dizer do homem que ele também brinca (spielt). Também o seu jogar é um acontecimento da natureza. GVM I 2

A simultaneidade não é, pois, uma forma de acontecimento na consciência, mas uma tarefa para a consciência e um desempenho que será exigido dela. GVM I 2

O sentido do tomar-parte é, aqui, a genuína participação no próprio acontecimento salvífico. GVM I 2

Há nisso uma desunião com o que acontece, um não-querer-ter-por-verdadeiro, que se rebela contra o horrendo acontecimento. GVM I 2

Parece que somente Hebbel se encontra na fronteira daquilo que ainda podemos chamar de tragédia, tal qual a exatidão com que o ser culpado subjetivo está adequado ao desenvolvimento do acontecimento trágico. GVM I 2

Pode-se ver, sem dúvida, nessa superação da proibição da imagem, o acontecimento decisivo, através do qual tornou-se possível o desenvolvimento das artes plásticas no mundo ocidental cristão. GVM I 2

A re-presentação da imagem é um caso especial da re-presentação como acontecimento público. GVM I 2

Em contrapartida ao modo de pensar da mais recente estética, tínhamos desenvolvido acima o conceito do jogo como o genuino acontecimento da arte. GVM I 2

Essa tentativa veio agora a se confirmar no fato de que, também o quadro — e com isso o conjunto da arte não dependente de re-produção — é um acontecimento do ser e, por isso, não pode ser adequadamente entendido como objeto de uma consciência estética, mas, antes, pode ser compreendido em sua estrutura ontológica, a partir de fenômenos como o da re-presentação. GVM I 2

O quadro é um acontecimento do ser — nele o ser torna-se um fenômeno sensorial-visível. GVM I 2

Uma obra de arte pertence tão estreitamente àquilo com o qual tem relação, que enriquece o ser daquele outro como que através de um novo acontecimento do ser. GVM I 2

Cada encenação é um acontecimento, mas não um acontecimento que venha a se opor ou posicionar-se paralelamente à obra poética, como algo próprio — a própria obra é que acontece no acontecimento da encenação. GVM I 2

É assim que as figuras dos deuses, do rei, o monumento, que são apresentados a alguém pressupõem que o Deus, o rei, o herói, ou o acontecimento, a vitória ou o tratado de paz, já possuam uma atualidade determinante para todas as atualidades. GVM I 2

O que aqui se deixou fixado no quadro não é somente um acontecimento solene como tal. GVM I 2

A obra de arte será entendida, com isso, como um acontecimento do ser e desfaz-se sua abstração, na qual a diferenciação estética a coloca. GVM I 2

Também o quadro é um acontecimento da representação. GVM I 2

Do adorno tem-se de dizer também, que pertence à representação; a representação, porém, é um acontecimento ôntico, é re-presentação. GVM I 2

Seja qual for o caso, o que queremos dizer, sob o termo “representação”, é um momento universal e ontológico da estrutura do estético, um acontecimento ôntico, e não, por exemplo, um acontecimento vivencial que aconteceria no momento da criação artística e que apenas seria repetida pelo ânimo que a recebe em cada caso. GVM I 2

Assim como a investigação moderna da natureza não considera a natureza como um todo compreensível, mas como um acontecimento estranho ao eu, em cujo decurso ela introduz uma luz limitada, mas confiável, e cujo domínio se torna assim possível, da mesma maneira o espírito humano, que procura proteção e certeza, tem de opor à “insondabilidade” da vida, a esse “semblante terrível”, a capacidade da compreensão, formada cientificamente. GVM II 1

Da mesma forma que o seguimento é mais que uma simples imitação, sua compreensão é também uma forma sempre renovada de encontro, e ela própria tem o caráter de acontecimento, precisamente porque não deixa as coisas como estão, mas encerra a aplicação. GVM II 2

Todavia, tampouco estes são o verdadeiro objeto, mas unicamente o material para a verdadeira tarefa: no juiz, encontrar o direito; no historiador, determinar o significado histórico de um acontecimento no conjunto de sua autoconsciência histórica. GVM II 2

A compreensão do curso da batalha e a compreensão do plano que Nelson tinha para a sua execução são, por conseguinte, um e o mesmo acontecimento. GVM II 2

Na realidade não podemos ocultar que num caso como este a lógica de pergunta e resposta tem de reconstruir duas perguntas distintas que encontrarão também duas respostas distintas: a pergunta pelo sentido no curso de um grande acontecimento, e a pergunta pelo caráter planificado deste curso. GVM II 2

O acordo ou o seu fracasso é como um acontecimento que tem lugar em nós mesmos. GVM III 1

A singularidade do acontecimento da redenção leva à introdução da essência histórica no pensamento ocidental e permite também que o fenômeno da linguagem emerja de sua imersão na idealidade do sentido e se ofereça à reflexão filosófica. GVM III 2

É verdade que a palavra não é o acontecimento do pronunciador, essa entrega inapelá-vel do próprio pensamento ao outro. GVM III 2

Quer a própria tradição seja uma obra de arte, quer proporcione notícias de um grande acontecimento, em qualquer caso, o que se transmite aqui entra de novo na existência, tal como se representa. GVM III 3

Ela conhece o caráter interminavelmente aberto do acontecimento de sentido, do qual participa. GVM III 3

Aquele que compreende já está sempre incluído num acontecimento, em virtude do qual se faz valer o que tem sentido. GVM III 3

É nessas distinções que se pode esclarecer a questão que, num outro contexto, tenho sempre de novo colocado, qual seja, de saber que função desempenha no acontecimento hermenêutico a intenção do autor. GVM II Introdução 1

A enunciação individual, portanto, está sempre inserida num acontecimento comunicativo, não podendo ser compreendida como algo singular. GVM II Introdução 1

O sentido de um acontecimento, pelo contrário, é aquilo que se pode extrair da leitura, a partir de textos e outros testemunhos, e quiçá até na reavaliação de sua própria intenção enunciativa. GVM II Introdução 1

Será que existe realmente essa liberdade da compreensão? Será que nele se revela o nexo infinito do acontecimento como a essência da história? Será que não perguntamos exatamente pela essência da história quando perguntamos pelos limites da autoconsciência histórica? Nietzsche nos precedeu nesse questionamento. GVM II Prel. 2

Só assim torna-se representável a singularidade de um acontecimento, a plenitude do instante. GVM II Prel. 2

É sabido por todos o quanto pode ser diferente o mesmo acontecimento histórico, quando descrito por investigadores de nacionalidades diversas, mesmo sendo sérios. GVM II Prel. 3

Compreender é um processo histórico-efeitual, e se poderia demonstrar que é na linguagem própria a toda compreensão que o acontecimento hermenêutico traça seu caminho. GVM II Prel. 5

É a tradição que abre e delimita nosso horizonte histórico, e não um acontecimento opaco da história que acontece “por si”. GVM II Prel. 6

o conceito de liberdade que dominou, por exemplo, a filosofia moral estoica, que afirmava com certa resolução que o único caminho para tornar-se independente e, com isso, livre seria não prender seu coração a nada, e não apegar-se a si próprio? Será este o mesmo problema do mito platônico? Será o mesmo problema quando a teologia cristã procura tecer e resolver seu grande enigma entre a liberdade do homem e a providência divina? E será o mesmo quando, na era da ciência da natureza, formulamos a pergunta: Como se deve conceber a possibilidade de liberdade, diante da determinação infalível do acontecimento natural diante do fato de que toda ciência da natureza deve partir do pressuposto de que na natureza não acontecem milagres? O problema do determinismo e do indeterminismo da vontade, formulado a partir dessa situação, será ainda o mesmo problema? Basta darmos apenas alguns passos na análise dessa suposta identidade para percebermos em que tipo de dogmatismos se sustenta. GVM II Prel. 7

O tratado teológico-político de Espinosa foi o acontecimento principal. GVM II Prel. 8

O “acontecimento” da verdade que forma o espaço de jogo do desocultar e ocultar conferiu um novo caráter ontológico a todo desocultar, mesmo àquele das ciências da compreensão. GVM II Prel. 8

Também essa se introduz e sustenta pelo acontecimento comunicativo que realizamos ao falar e onde se constrói compreensão e entendimento. GVM II Prel. 8

Sempre me impressionou — quiçá por sua fraseologia arcaica — o que Kant escreveu sobre a Revolução Francesa: “Um acontecimento assim não se esquece”. GVM II Compl. 10

O fato de que um acontecimento não se esquece — é óbvio que a frase somente quer dizer que ninguém pode esquecê-lo — depende evidentemente da importância desse acontecimento. GVM II Compl. 10

Aconteceu de tal modo que ninguém pode esquecê-lo e por isso a linguagem pode considerar o acontecimento como um ser atuante e dizer: esse acontecimento não se esquece. GVM II Compl. 10

Assim, a guerra transformou-se para nós em algo qualitativa e fundamentalmente distinto do que era antes desse acontecimento epocal que foi o descobrimento da força atômica. GVM II Compl. 10

O próprio tempo envelheceu de certo modo ante esse acontecimento. GVM II Compl. 10

E isso não somente no sentido de deixar o passado submerso, inatual e ausente, como um espaço de tempo antigo que se vislumbra por assim dizer como uniforme, mas também o próprio futuro fica afetado pelo significado epocal de um acontecimento epocal. GVM II Compl. 10

E evidente que nunca podemos saber com certeza se um acontecimento possui realmente uma importância epocal. GVM II Compl. 10

Apesar de toda a incerteza inerente a todo enunciado de futuro, basta que esse acontecimento e sua influência imediata venham acompanhados da convicção de que fez época. GVM II Compl. 10

Mas isso significa que toda essa atualização e todo esse saber são por sua vez um acontecimento, são história. GVM II Compl. 10

Mesmo quando, no dizer, substituímos uma expressão por outra ou a justapomos a outra, seja por abundância retórica ou para ajustar a expressão, quando o orador não a encontra de imediato, o sentido do discurso se constrói no processo das expressões sucessivas, jamais saindo do acontecimento único dessa fluência. GVM II Compl. 13

Deixamos esse acontecimento único quando introduzimos no lugar de uma palavra usual uma outra de sentido idêntico. GVM II Compl. 13

A tese afirma que não apenas o processo do entendimento entre os seres humanos, mas também o próprio processo da compreensão representa um acontecimento de linguagem mesmo quando se volta para algum aspecto fora do âmbito da linguagem ou escuta a voz apagada da letra escrita. GVM II Compl. 14

Trata-se de um acontecimento de linguagem semelhante àquele diálogo interno da alma consigo mesma, que para Platão caracterizava a essência do pensamento. GVM II Compl. 14

Nesse caso, devemos deixar de lado todas as questões de conteúdo e considerar apenas o acontecimento como tal. GVM II Compl. 14

Isso pode ser ilustrado por um pequeno acontecimento que vivenciei com minha filha pequena: Ela tinha que escrever a palavra “morango” e perguntou como se escreve. GVM II Compl. 14

Quando então? Como se dá isso? Podemos afirmar que isso é um acontecimento único, onde se dá um primeiro conhecimento que arranca a criança das trevas da ignorância? Parece-me que não é exatamente assim. GVM II Outros 17

A compreensão é, ela mesma, um acontecimento. GVM II Outros 18

Na verdade, uma autobiografia é mais uma história das ilusões privadas do que a compreensão do acontecimento histórico real. GVM II Outros 23

Mas, no próprio acontecimento comunicativo, eles opõem resistência a sua textualização. GVM II Outros 24

No que se seguiu, nos casos em que se dava uma motivação para a interpretação e onde no processo comunicativo se constituía algo como um texto, tanto a interpretação quanto o texto propriamente dito estavam inseridos no acontecimento do entendimento. GVM II Outros 24

Esse fato representou ao mesmo tempo um acontecimento no âmbito da linguagem e a conquista de uma compreensão mais profunda da própria linguagem. GVM II Outros 25

Trata-se simplesmente de um coletivo para designar cada vez um texto concreto (no sentido mais amplo de texto, incluindo uma obra de pintura, um edifício e até mesmo um acontecimento natural). GVM II Outros 25

O significado histórico de um acontecimento, porém, não precisa coincidir com seu valor cognitivo enquanto fenômeno de expressão, e seria errôneo crer ter esgotado sua compreensão por tê-lo compreendido como fenômeno de expressão. GVM II Anexos Exc. I

Seria uma realidade falsa, onde o acontecimento parece ser igual a uma conta. GVM II Anexos Exc. II

É justamente por isso que também ela se constitui em acontecimento, como foi mostrado no decorrer desta investigação. GVM II Anexos Exc. II

A aplicação da palavra ao próprio jogo (representação) — em vez de aplicá-la ao que nele se representa — é um acontecimento absolutamente secundário, que pressupõe a desvinculação do teatro de sua função litúrgica. GVM II Anexos Exc. VI

Mas é curioso como a vivacidade desse “pensar”, quando por exemplo Collingwood considera a biografia como anti-histórica por não estar fundamentada no “pensar”, mas num acontecimento da natureza. GVM II Anexos 27

A própria fé nessa história deve ser compreendida como um acontecimento histórico, como um apelo da palavra de Deus. GVM II Anexos 27

Ao contrário, o acontecimento salvífico anunciado no Novo Testamento só pode ser compreendido como um acontecimento verdadeiro quando sua profecia não é uma mera “reprodução do fato futuro”. GVM II Anexos 27

Em cada caso, trata-se de um “acontecimento” e o conceito de autocompreensão é sempre um conceito histórico. GVM II Anexos 27

Assim como Bultmann se apoia na analítica existencial da pre-sença (Dasein), de Heidegger, para explicitar a existência escatológica do homem entre fé e falta de fé, pode-se também tomar esta dimensão da questão do ser a partir do ponto de vista teológico, na medida em que se traz para a “linguagem da fé” o significado central que possui a linguagem nesse acontecimento do ser. GVM II Anexos 27

Mas, frente ao texto — e esta é uma consequência audaz e inevitável — , a palavra tem a primazia, pois é acontecimento da linguagem. GVM II Anexos 27

Pois, mesmo que a hermenêutica teológica não lance mão de nenhuma outra fonte de inspiração ou de revelação para o ato de compreensão da Sagrada Escritura, o acontecimento querigmático da interpretação da Bíblia, como se dá na pregação ou no cuidado pastoral individual, enquanto fenômeno hermenêutico, não pode ser simplesmente desqualificado nem reduzido à problemática científica da teologia. GVM II Anexos 28

A filosofia continua sendo crítica da metafísica e da linguagem, mas sob a base de um acontecimento hermenêutico levado a cabo por uma historicidade interna interior. GVM II Anexos 28

Ambos falam de um “acontecimento de linguagem” próprio da fé, buscando afastar do sentido salvífico da tradição bíblica qualquer objetivismo indiferente, na linha do mito ou do fato histórico. GVM II Anexos 28

Nem Hegel nem Husserl abordaram expressamente esse problema, e mesmo as fundamentações modernas do conhecimento com os recursos da semântica e de uma semiótica universal não conferem o lugar central que deve ser atribuído ao acontecimento da linguagem como tal. GVM II Anexos 28

Mas foi sobretudo a filosofia da vida, por trás da qual estava Friedrich Nietzsche, o “acontecimento” europeu que impregnou todo nosso sentimento cósmico, e em conexão com ele, ocupou os jovens espíritos com o problema do relativismo histórico debatido à luz de Wilhelm Dilthey e de Ernst Troeltsch. GVM II Anexos 30

No Fédon de Platão, Sócrates coloca a exigência de compreender a estrutura cósmica e o acontecimento natural do mesmo modo que ele compreende o motivo por que está encarcerado e não aceitou a oferta de fuga, a saber, porque considerou bom para ele aceitar inclusive uma sentença injusta. GVM II Anexos 30

Para ver que a obra poética se constitui num corretivo do ideal da definição objetiva e da hybris dos conceitos, não precisei seguir o pensamento de Heidegger quando, armado com os poemas de Hölderlin, enfrentou Hegel e interpretou a obra de arte como um acontecimento originário da verdade. GVM II Anexos 30

 

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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