Gadamer (VM): acontecer hermenêutico

A partir da linguagem, o conceito da pertença já não se determina como a referenciação teleológica do espírito em relação à estrutura essencial do ente, tal como é pensada na metafísica. Ao contrário, o fato de que a experiência hermenêutica se realize no “modo” da linguagem, e que entre a tradição e seu intérprete tenha lugar uma conversação, coloca um fundamento completamente distinto. O decisivo é que aqui acontece algo. Nem a consciência do intérprete é senhora do que chega a ele como palavra da tradição, nem se pode descrever adequadamente o que tem lugar aqui, como o conhecimento progressivo do que, de maneira que um intelecto infinito conteria tudo o que, de um modo ou de outro, pudesse chegar a falar a partir do conjunto da tradição. Visto a partir do intérprete, “acontecer” quer dizer que não é ele que, como conhecedor, busca seu objeto e “extrai” com meios metodológicos o que realmente se quis dizer e tal como realmente era, ainda que reconhecendo leves obstáculos e desvios, condicionados pelos próprios preconceitos. Isso não é mais que um aspecto exterior ao verdadeiro acontecer hermenêutico. Ele motiva a indispensável disciplina metodológica, com a qual nos comportamos para conosco mesmos. Não obstante, o verdadeiro acontecer só se torna possível, na medida em que a palavra que chega a nós a partir da tradição, e à qual temos de escutar, nos alcança de verdade, e o faz como se falasse a nós e se referisse a nós mesmos. Mais acima tratamos desse aspecto da questão, (466) sob a forma da lógica hermenêutica da pergunta, e demonstramos como aquele que pergunta se converte no perguntado, e como tem lugar o acontecer hermenêutico na dialética do perguntar. Voltamos a fazer menção a isso, com o fim de determinar de uma maneira mais precisa o sentido da pertença, como ele corresponde à nossa experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Essa estrutura da experiência hermenêutica, tão contrária à ideia metódica da ciência, tem, por sua vez, seu próprio fundamento no caráter de acontecer da linguagem que expusemos amplamente. Não se trata somente de que o uso linguístico e a formação continuada dos meios linguísticos sejam um processo, que a consciência individual pudesse enfrentar, sabendo e elegendo — nesse sentido seria literalmente mais correto dizer que a linguagem nos fala do que dizer que nós falamos a ela (de maneira que, por exemplo, no uso linguístico de um texto pode-se determinar com mais exatidão a data de sua produção do que o seu autor). Mais importante que tudo isso é algo que estamos apontando desde o princípio: que a linguagem não constitui o verdadeiro acontecer hermenêutico enquanto linguagem, enquanto gramática nem enquanto léxico, mas no vir à fala do que foi dito na tradição, que é ao mesmo tempo apropriação e interpretação. Por isso, é aqui, onde se pode dizer com toda razão, que esse acontecer não é nossa ação na coisa, mas a ação da própria coisa. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A experiência hermenêutica faz parte desse campo, porque também ela é o acontecer de uma autêntica experiência. O fato de que se evidencie algo naquilo que foi dito, sem que por isso fique assegurado, julgado e decidido em todas as possíveis direções, é algo que de fato ocorre cada vez que algo nos fala a partir da tradição. O transmitido se faz valer a si mesmo, em seu próprio direito, na medida em que é compreendido, e desloca oiorizonte que até então nos rodeava. Trata-se de uma verdadeira experiência, no sentido já mencionado. Tanto o evento do belo como o acontecer hermenêutico pressupõem fundamentalmente a finitude da existência humana. Inclusive podemos fazer a pergunta se um espírito infinito poderia experimentar o elo como nós o experimentamos. Poderia ele ver outra coisa que a beleza do todo que tem ante si? O “aparecer” do belo parece reservado à experiência humana finita. O pensamento medieval conhece um problema análogo, o de como é possível a beleza em Deus, se ele é uno e não múltiplo. Somente a doutrina de Nicolau de Cusa, da complicatio do múltiplo em Deus oferece uma solução satisfatória (cf. O Sermo de pulchritudine, citado acima). E nesse sentido nos parece inteiramente consequente que, na filosofia hegeliana do saber infinito, a arte seja uma forma da representação, que encontraria a sua suspensão e subsunção no conceito e na filosofia. Do mesmo modo, a universalidade da experiência hermenêutica não deveria ser, por princípio, acessível a um espírito infinito, que desenvolvesse, a partir de si mesmo, tudo quanto é sentido, todo noeton, e que pensasse todo o pensável na plena autocontemplação de si mesmo. O Deus aristotélico (e também o espírito hegeliano) deixou para trás de si a “filosofia”, esse movimento da existência finita. Nenhum dos deuses filosofa, diz Platão. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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