Gadamer (VM): abstrações

A motivação moral contida no conceito do common sense ou do bon sens permaneceu ativa até os nossos dias e diferencia esses conceitos do nosso conceito da “compreensão humana sadia”. Cito, como exemplo, o belo discurso que Henri Bergson fez em 1895, sobre o bon sens, por ocasião da homenagem que lhe foi prestada na Sorbônia. Sua crítica às abstrações da ciência da natureza, bem como às da linguagem e do pensamento jurídico, seu tempestuoso apelo à “energia interior de uma inteligência, que a todo momento se reconquista sobre si mesma, eliminando as ideias feitas para deixar espaço livre para as ideias que se fazem” (88), tudo isso pôde, na França, ser batizado sob a denominação de bon sens. A determinação desse conceito continha, como é natural, uma referência aos sentidos, mas para Bergson é evidente que, diferentemente dos sentidos, o bon sens se refere ao milieu social (meio social). “Enquanto que os outros sentidos nos colocam em relação com coisas, o bom senso preside nossas relações para com pessoas” (85). Ele é uma espécie de gênio para a vida prática, mas menos um dom (Gabe) do que a permanente tarefa (Aufgabe) de “ajustamento sempre novo de situações sempre novas, uma espécie desadaptação dos princípios gerais à realidade, através da qual se realiza a justiça, um “tato da verdade prática”, uma “retidão de juízo, que provém da retitude da alma” (88). O bons sens é, segundo Bergson, enquanto a fonte comum do pensamento e do querer, em sens social, que tanto evita o erro dos dogmáticos científicos, que estão à busca de leis sociais, como o dos utopistas metafísicos. “Falando mais propriamente, talvez não exista mais método, mas antes, um certo modo de fazer.” É verdade que Bergson fala sobre o significado dos estudos clássicos para o aperfeiçoamento desse bon sens — ele vê neles o empenho de romper o “gelo das palavras” e para descobrir, sob elas, a corrente livre do pensamento (91) — mas é claro que ele não coloca a pergunta contrária, ou seja, até que ponto é necessário o bon sens para os próprios estudos clássicos, isto é, não fala de sua função hermenêutica. Sua pergunta não se dirige, de forma alguma, às ciências, mas, sim, ao sentido independente do bon sens para a vida. Nós sublinhamos apenas a evidência, para ele e seus ouvintes, o sentido moral-político desse conceito assume a liderança. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O mero ver, o mero ouvir são abstrações dogmáticas, que reduzem artificialmente os fenômenos. A percepção abrange sempre o significado. É por isso um formalismo ao avesso, que, além disso, não pode se reportar a Kant, no sentido de procurar, tão-somente na sua forma, a unidade da configuração estética, em oposição ao seu conteúdo. Kant, com o seu conceito da forma, tinha em mente algo bem diferente. Não contra o conteúdo significativo de uma obra de arte, mas contra o mero estímulo sensorial do que seja material, o conceito de forma de Kant designa a construção da configuração estética. O chamado conteúdo objetivo não é, de forma alguma, matéria à espera de uma conformação posterior, mas encontra-se sempre vinculada, na obra de arte, à unidade da forma e do significado. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Algo semelhante, aliás, vale também para as etimologias. É verdade que são bem menos confiáveis, porque não são abstrações produzidas pela linguagem, mas pela linguística, as quais jamais podem ser verificadas plenamente através da própria linguagem, seu uso real. É por isso que, mesmo quando elas acertam, não são fragmentos de provas, mas concessões antecipadas da análise conceitual, encontrando somente nesta sua sólida fundamentação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Nesse ponto, aparece uma distinção que não se pode ignorar. A crítica da ideologia pretende ser uma reflexão emancipatória. De modo correspondente, o diálogo terapêutico pretende tornar conscientes as máscaras do inconsciente e com isso dissolvê-las. Ambas pressupõem seu saber e consideram-se cientificamente fundamentadas. Contrário a isso, a reflexão hermenêutica não contém nenhuma pretensão de conteúdo deste tipo. Não afirma saber que as condições sociais fácticas possibilitam apenas uma comunicação distorcida. Isso implicaria já, em seu juízo, que soubéssemos o que uma comunicação correta e não distorcida deveria produzir. Tampouco considera atuar como um terapeuta que leva o processo reflexivo do paciente a um bom termo, conduzindo-o a um conhecimento mais elevado de sua história de vida e de seu verdadeiro ser. Em ambos os casos, na crítica da ideologia e na psicanálise, a interpretação pretende orientar-se por um saber prévio, a partir do qual as fixações prévias e os preconceitos podem ser dissolvidos. Nesse sentido, ambas podem ser compreendidas como “Iluminismo”. A experiência hermenêutica vê, ao contrário, com ceticismo todo postulado de um saber prévio. O conceito da compreensão prévia, introduzido por Bultmann, não se refere a esse tipo de saber: Os nossos preconceitos devem ser colocados em jogo no processo do compreender… Na concreção da experiência hermenêutica, conceitos como “esclarecimento”, “emancipação”, “diálogo livre de coerção” revelam-se como pobres abstrações. A experiência hermenêutica faz ver o enraizamento profundo que podem ter os preconceitos e o pouco que uma mera conscientização pode fazer para dissolver sua força. Sabia disso muito bem um dos pais do Iluminismo moderno, Descartes, procurando legitimar seu novo conceito de (116) método não tanto por argumentos mas pela meditação, por uma reflexão reiterada. Isso não deve ser descartado como se fosse mero revestimento retórico. Sem isso, não há comunicação, mesmo em trabalhos filosóficos e científicos, que precisam de recursos retóricos para impor sua vigência. Toda a história do pensamento confirma essa antiga proximidade entre a retórica e a hermenêutica. No entanto, a hermenêutica contém sempre um elemento que ultrapassa a mera retórica: inclui sempre um encontro com as opiniões do outro, que vêm, por sua vez, à fala. Isso vale também para a compreensão de textos e outras criações culturais do mesmo gênero. Precisam desenvolver sua própria força persuasiva para serem compreendidos. Por isso, a hermenêutica é filosofia porque não pode ser restrita a uma teoria da arte, que “apenas” compreende as opiniões de um outro. A hermenêutica implica, antes, que toda compreensão de algo ou de um outro vem precedida de uma autocrítica. Aquele que compreende não postula uma posição superior. Confessa, antes, a necessidade de colocar à prova a verdade que supõe própria. É o que está implícito em todo compreender, e por isso todo compreender contribui para o aperfeiçoamento da consciência da história dos efeitos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Mas a crítica hermenêutica só adquire sua verdadeira eficácia quando produz auto-reflexão, ou seja, quando consegue refletir sobre seu próprio esforço crítico, sobre as suas próprias condições e dependências. Uma reflexão hermenêutica capaz de realizar essa auto-reflexão parece-me estar muito próxima de um verdadeiro ideal de conhecimento, porque torna consciente a ilusão da própria reflexão. Uma consciência crítica, que demonstra por toda parte a existência de preconceitos e dependências, mas que se considera ela mesma absoluta, isto é, independente e livre de preconceitos, permanece necessariamente presa a ilusões. Pois é motivada justamente pelo que ela critica. Está de forma irrecusável dependente do que pretende dissolver. A pretensão de uma ausência total de (183) preconceitos é uma ingenuidade, seja na forma delirante de um iluminismo absoluto, seja como o delírio de um empirismo livre de todos os preconceitos da tradição metafísica, ou ainda como o delírio de uma superação da ciência pela crítica ideológica. Em todo caso, ao refletir sobre si própria, a consciência hermenêutica iluminista parece-me fazer valer uma verdade superior. Sua verdade é a verdade da tradução. A sua superioridade consiste em apropriar-se do estranho, não simplesmente dissolvendo-o criticamente ou reproduzindo-o acritícamente, mas conferindo-lhe nova validade a partir do momento em que o interpreta no horizonte de seus próprios conceitos. A tradução permite que o estranho e o próprio se conjuguem numa nova configuração, à medida que respeita o ponto de verdade do outro frente a si própria. Nessa forma de prática reflexiva, o que se dá como formulado na linguagem se vê de certo modo superado, ou seja, retirado de sua própria estrutura de mundo própria da linguagem. Mas essa nova realidade, e não nossa própria opinião sobre ela, insere-se numa nova interpretação de mundo feita na linguagem. Nesse processo de constante avanço do pensamento, em que se respeita o outro em relação a si mesmo, demonstra-se o poder da razão. A razão sabe que o conhecimento humano é e permanece limitado, mesmo quando sabe de seus limites. A reflexão hermenêutica exerce assim uma autocrítica da consciência pensante que retraduz todas as suas abstrações, inclusive os conhecimentos das ciências, para o conjunto da experiência humana de mundo. A filosofia que, expressamente ou não, deve ser sempre uma crítica do pensamento tradicional, é esse exercício hermenêutico que incorpora as totalidades estruturais, elaboradas pela análise semântica, no continuum da tradução e da conceituação, onde existimos e desaparecemos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

Mas a função da reflexão hermenêutica não se esgota no que ela significa para as ciências. Todas as ciências modernas apresentam um estranhamento profundamente enraizado que elas impõem à consciência natural. Já no estágio inicial da ciência moderna, esse estranhamento alcançou uma consciência reflexiva através do conceito de método. A reflexão hermenêutica não pode pretender modificar isso. Mas, à medida que torna transparentes as pré-compreensões que guiam as ciências, pode liberar novas dimensões, prestando assim um serviço indireto ao trabalho metodológico. Além disso, pode trazer à consciência aquilo que realmente dispõe a metodologia das ciências para seu próprio progresso, quais são as cegueiras e abstrações que impõe, pelas quais suplanta e desnorteia a consciência natural. Essa consciência natural, como consumidora das invenções e informações alcançadas pela ciência, acaba seguindo-a sempre. Com Wittgenstein, podemos expressar isso da seguinte forma: Os “jogos de linguagem” da ciência permanecem referidos à metalinguagem representada pela língua materna. Os conhecimentos alcançados pela ciência ingressam na consciência social por meio dos modernos meios de informação e com uma demora pertinente (às vezes também grandemente impertinente) através da escola e da educação. Assim articulam as realidades “sociais da linguagem”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

“O mais importante é a intenção primordial e o ponto de vista central, ou, como dizemos nós, a finalidade do discurso”. Melanchton introduz, assim, um conceito que é determinante na hermenêutica tardia de Flacius e que ele toma emprestado da introdução metodológica à ética aristotélica. É claro que, ao afirmar que os gregos costumavam interrogar desse modo ao iniciar seus livros (sid), Melanchton não se refere ao discurso em sentido estrito. O conhecimento da intenção básica de um texto é essencial, segundo ele, para uma compreensão adequada. Esse ponto é essencial também para a principal teoria exposta por Melanchton, que é sem dúvida sua doutrina sobre os loci comunes. Introduz essa doutrina como parte da inventio, seguindo assim a antiga tradição da tópica. Ele está, porém, plenamente consciente da problemática hermenêutica que nela se aloja. Ele acentua que esses capítulos mais importantes, “que contêm as fontes e o resumo de toda a arte” , não é apenas um grande cabedal de opiniões, cujo conhecimento seria muito proveitoso para o orador e o mestre — porque na verdade uma boa compilação desses loci constituiria a totalidade do saber. Implicitamente, isso significa uma crítica hermenêutica à superficialidade de uma tópica retórica. Ao contrário, busca a justificação de seu próprio proceder. Isso porque Melanchton foi o primeiro a fundamentar a dogmática do protestantismo antigo numa escolha e compilação significativas de passagens decisivas da Sagrada Escritura; os loci precipui editados em 1519. A crítica católica tardia ao princípio bíblico protestante não é totalmente justa quando denuncia uma inconsequência no princípio bíblico dos formadores à luz da apresentação desses enunciados dogmáticos. De certo, toda seleção de textos inclui uma interpretação, apresentando assim implicações dogmáticas, mas o postulado hermenêutico da teologia protestante primitiva consiste justamente em legitimar suas abstrações dogmáticas através da própria Escritura e a intenção desta. Uma outra questão é saber até onde os teólogos reformadores seguiram realmente o princípio da Escritura. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.