(Gadamer2003)
A minha análise da posição de Dilthey pretende mostrar que a sua autocompreensão com relação às ciências não é verdadeiramente consoante com a sua posição fundamental em termos da Lebensphilosophie. O que Misch e Dilthey chamaram de “distância livre em direção a si mesmo” (freie Ferne zu sich selbst), isto é, a possibilidade humana do pensamento reflexivo, não coincide em verdade com a objetivação do conhecimento através do método científico. Este último requer uma explicação que lhe é própria. Ela se encontra na conexão entre “vida”, que sempre implica consciência e reflexividade (Besinnung), e “ciência”, que se desenvolve a partir da vida como uma das suas possibilidades. Se este é o verdadeiro problema, ele coloca a fundação das Geisteswissenschaften no centro da filosofia.
Isto é claramente evidente no pressuposto filosófico de Heidegger. Embora eu tenha contornado a intenção filosófica de Heidegger, quer dizer, a retomada do “problema do ser”, torna-se não obstante claro que somente uma viva tematização da existência humana enquanto “ser-no-mundo” revela as implicações plenas do Verstehen como possibilidade e estrutura da existência. As ciências humanas adquirem assim uma valência “ontológica” que não poderia permanecer sem consequências para a sua autocompreensão metodológica. Se o Verstehen é o aspecto fundamental do in-der-Welt-sein humano, então as ciências humanas encontram-se mais próximas da autocompreensão humana do que as ciências naturais. A objetividade destas últimas não é mais um ideal de conhecimento inequívoco e obrigatório.
As ciências humanas contribuem para a compreensão que o homem tem de si mesmo, embora não se igualem às ciências naturais em termos de exatidão e objetividade, e se elas assim o fazem é porque possuem, por sua vez, o seu fundamento nessa mesma compreensão.
Algo essencialmente novo aqui se evidencia: o papel positivo da determinação pela tradição (Traditionsbestimmtheit), que o conhecimento histórico e a epistemologia das ciências humanas compartilham com a natureza fundamental da existência humana. É verdade que os preconceitos que nos dominam frequentemente comprometem o nosso verdadeiro reconhecimento do passado histórico. Mas sem uma prévia compreensão de si, que é neste sentido um preconceito, e sem a disposição para uma autocrítica, que é igualmente fundada na nossa autocompreensão, a compreensão histórica não seria possível nem teria sentido. Somente através dos outros é que adquirimos um verdadeiro conhecimento de nós mesmos. O que implica, entretanto que o conhecimento histórico não conduz necessariamente à dissolução da tradição na qual vivemos; ele pode também enriquecer essa tradição, confirmá-la ou modificá-la, enfim, contribuir para a descoberta de nossa própria identidade. A historiografia das diferentes nações constitui uma ampla prova disso.
Essa situação leva necessariamente a um ganho em clareza se ousarmos analisar a formação da ciência nos tempos modernos. Tal é de fato uma das primeiras coisas que Aristóteles me levou a reconhecer: apreender os entrelaçamentos particulares do ser e do conhecimento; determinação através do devir próprio do indivíduo, hexis, identificação do bem em uma situação, e logos. Quando, no sexto livro da Ética a Nicômacos, Aristóteles distingue do conhecimento teórico e técnico o modo do conhecimento prático, ele exprime, a meu ver, uma das maiores verdades que permitem ao pensamento grego trazer à luz a “mistificação” científica da sociedade moderna em que reina a especialização. Além disso, o caráter científico da filosofia prática é, a meu ver, o único modelo metodológico concebível da compreensão que as ciências humanas possuem delas mesmas, se se quer liberá-las da espúria restrição de perspectiva imposta pelo modelo das ciências da natureza. Ele confere uma justificativa científica à razão prática que sustenta toda a sociedade humana e que é ligada, há milênios, à tradição da retórica. Aqui o problema hermenêutico torna-se central; somente a concretização do geral lhe proporciona o seu conteúdo próprio.