Gadamer (1993:C1) – da episteme à ciência

Antônio Luz Costa

Deve-se esclarecer o completo alcance daquilo que, com as ciências empíricas e as ideias sobre método, se colocou ao mundo. Quando se diferencia “a ciência” do saber geral de outrora, que vinha de uma herança antiga e dominava até a Alta Idade Média, vê-se que tanto o conceito de teoria como o de práxis sofreram, ambos, alterações. O uso do saber na práxis naturalmente sempre existiu, tanto que se denominava “ciências e artes” (epistemai e technai). A “ciência”, em geral, era apenas a elevação extrema do saber, o qual guiava a práxis. Mas ela entendia a si mesma como uma pura theoria, quer dizer, como um saber procurado como valor em si mesmo e não pelo seu significado prático. Foi precisamente a partir desse entendimento que se intensificou, primeiro, quer dizer, na ideia grega de ciência, a relação com a práxis como problema. Enquanto o saber matemático dos geômetras egípcios ou mesmo dos astrônomos babilônicos nada mais foi do que um tesouro de sabedoria, que se tinha reunido da práxis para a práxis, os gregos transformaram esse ser-capaz-de-fazer e saber em um saber de causas e, com isso, em um saber demonstrável, do qual as pessoas desfrutavam em virtude de seu próprio sentido, levadas, por assim dizer, por uma curiosidade originária. Dessa maneira, surgiu a ciência grega, tanto a matemática como também o movimento iluminista da filosofia natural grega e, no mesmo espírito, apesar de toda a sua referência essencial à práxis, também a medicina grega. Assim, acontece, pela primeira vez, a dissociação da discussão sobre ciência e sobre sua aplicação prática, sobre teoria e práxis.

Contudo, é difícil comparar com isso a relação moderna de teoria e práxis, resultante da ideia de ciência do século XVII. Pois a ciência não é mais a essência do saber sobre o mundo e o ser humano, como havia sido elaborado e articulado, na forma comunicativa da linguagem, pela filosofia grega, seja ela como filosofia natural ou como filosofia prática. O fundamento da ciência moderna é, em um sentido totalmente novo, a experiência, já que, com a ideia do método unitário do conhecimento, como o formulou, por exemplo, Descartes em suas “Regras”, o ideal da certeza torna-se critério de todo o conhecimento. Como experiência é válido somente aquilo que é controlável. Assim, no século XVII, a própria experiência volta a se tornar uma instância de aprovação, da qual se permite aprovar ou refutar a validade de princípios matemáticos pré-delineados. Galileu, por exemplo, não descobriu o limite da queda livre através da experiência, mas, como ele mesmo afirma: mente concipio, quer dizer, eu concebo-a em minha mente. Aquilo que Galileu concebeu dessa maneira, como a ideia da queda livre, não foi, de fato, um objeto da experiência. O vácuo não existe na natureza. Entretanto, o que ele reconheceu, exatamente através dessa abstração, foram princípios no interior da rede de relações causais, que na experiência concreta se encontram entrelaçadas uma na outra sem a possibilidade do seu desemaranhamento. A mente, ao isolar cada relação e, com isso, medir e pesar sua parte exata, abre a possibilidade para que se possa, voluntariamente, introduzir fatores causais. De modo que não é insensato afirmar que a ciência natural moderna — salva do puro interesse teórico que a estimula — não tem tanto em vista o saber enquanto ser-capaz-de-fazer, quer dizer, a práxis, de acordo com B. Croce em sua Logica et Practica. Parece-me, no entanto, mais certo afirmar que a ciência possibilita um saber direcionado a uma capacidade de fazer, um domínio sabedor da natureza, quer dizer, a técnica. E isso não é exatamente práxis, pois não é um saber obtido como soma de diversas experiências da prática de situações da vida e de circunstâncias de ações, mas trata-se de um saber, que, por seu lado, possibilita, antes, uma nova e específica relação de práxis, a saber, aquela da aplicação construtivista. Pertence à metodologia do seu procedimento realizar, em todas as áreas, a abstração que isole cada uma das relações causais. Com isso, ela tem de considerar a inevitável particularidade de sua competência. Porém, o que, com isso, entrou na vida foi “a ciência”, trazendo consigo um novo conceito de teoria e de práxis. Esse é um grande acontecimento na história da humanidade, que conferiu à ciência um novo perfil social e político.

Marianne Dautrey

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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