Gadamer (1993:C1) – Arte da Medicina

Antônio Luz Costa

(…) Isso tudo possui especial atualidade na área da ciência e da arte médica. Nela já se vacila na designação da disciplina, e a compreensão oferecida, por exemplo, pela história da medicina sobre a tensão da relação desse tipo é especialmente impressionante. Isso se relaciona à peculiaridade da arte de curar, que, de forma mais intensa que as próprias artes da produção do artificial, tem sua tarefa no restabelecimento de algo natural. É exatamente por aqui se tratar, apenas em dimensão limitada, de técnica, quer dizer, do fazer algo artificial (desde sempre na odontologia e surpreendentemente cedo também já na cirurgia), que cabe ainda hoje ao juízo do médico um setor especialmente amplo da sua atividade. Tudo aquilo que chamamos de diagnose é, na verdade, de um ponto de vista formal, a subsunção de um caso dado dentro do aspecto geral de uma doença, mas a verdadeira arte encontra-se precisamente no “conhecer separando”, que é o sentido real da diagnose. Seguramente são necessários também saberes médicos geral e especial. Mas esses não bastam. Erro de diagnose e falsa subsunção não são atribuídos abertamente à ciência, mas à “arte” e, em última instância, ao juízo do médico.

Ocorre que o oficio do médico se caracteriza, sobretudo, não apenas por ter de manter ou restabelecer o equilíbrio natural, como é o caso, por exemplo, da agricultura ou da pecuária, mas por ter como objeto aqui seres humanos que devem ser “tratados”, isso limita novamente a área da competência científica do médico. Nesse aspecto, seu saber é fundamentalmente outro que o saber do artesão, o qual pode defender facilmente sua competência contra a objeção do leigo. Ao ter êxito na realização da sua obra, esse saber e ser-capaz-de-fazer são confirmados. Além disso, o artesão age por incumbência e, em última instância, o uso do seu produto fixa-lhe os critérios do seu trabalho. Enquanto a tarefa for clara, ele possui competência ilimitada e indiscutível. De certo, isso ocorre raramente no caso de arquitetos ou alfaiates, já que o cliente raramente sabe, de fato, o que ele quer. Mas, fundamentalmente, a incumbência de uma tarefa, assim com a sua aceitação, é uma ligação que conecta ambos os contra-entes com suas obrigações e se identifica com a inequivocidade de uma obra produzida.

Para o médico, pelo contrário, não há uma obra demonstrável desse modo. A saúde do paciente não tem essa mesma validade. Embora ela seja, naturalmente, o objetivo da atividade médica, ela não é propriamente “feita” pelo médico. Mas deve-se acrescentar a isso uma outra diferença: o objetivo, a saúde, não é um fato social, ela, bem mais que um fato determinado pelas ciências naturais, é também um fato psicológico-moral. Tudo o que, outrora, fazia do médico um amigo da família, remete a elementos de eficiência médica, dos quais nós hoje, com frequência, sentimos dolorosamente falta. Mas ainda hoje o poder de convicção do médico e a confiança e colaboração do paciente representam um importante fator de cura, que pertence a uma dimensão bem diferente daquela do efeito físico-químico de medicamentos no organismo ou da “intervenção” cirúrgica.

O exemplo do médico apresenta, porém, com especial clareza, como se agrava a relação entre teoria e práxis sob as condições da ciência moderna. Nisso está, inicialmente, a diagnose, que coloca em jogo hoje uma técnica tão especializada, restando ao médico, normalmente, nenhuma outra alternativa senão expor o paciente ao anonimato do aparato clínico. E algo semelhante acontece também, muito frequentemente, com o tratamento. Isso tem suas consequências para o todo. Em comparação com o médico da família, da antiga linha, a experiência prática do médico clínico, que só assiste o paciente, em geral, no estágio clínico, é inevitavelmente abstrata. Isso também é válido, conforme foi dito, para o médico prático de hoje, mesmo que ele ainda mantenha as consultas domiciliares, ele poderá adquirir apenas um volume reduzido de experiência. Assim, o exemplo nos ensina que a capacitação de técnicas práticas até que, de fato, diminui, momentânea e aparentemente, a distância entre o saber geral da ciência e a decisão certa, mas que, antes, aumenta a diferença qualitativa entre o saber prático e o saber da ciência. Justamente por as técnicas aplicadas serem indispensáveis, tornam-se reduzidas as esferas de juízo e experiência, das quais são tomadas as decisões práticas. Aquilo que a medicina moderna é capaz de realizar é de grande imponência. Mas apesar de todos os progressos trazidos pelas ciências naturais para o nosso saber sobre doença e saúde, e apesar de tudo o que foi aplicado na técnica racionalizada do diagnóstico e do tratamento que se desenvolveu nessa área, a esfera do não-racionalizado nesse campo é especialmente ampla. Isso se torna evidente em razão de, ainda hoje, como sempre o foi, o conceito do médico bom ou ainda do genial ter muito mais daquela ressonância valorativa que pensamos ao caracterizar um artista, do que de um homem de ciência. Assim, aqui, menos do que em qualquer outro aspecto, se poderá negar o caráter insubstituível e indesviável da experiência prática. O apelo à wisdom, a pretensão de ser um médico “sábio”, pode ser sempre, lá onde é exigido, um meio de coação ilegítimo — isso vale em toda a parte, onde se apela à sua “autoridade”. Mas como se revela um estado elevado de cegueira considerar, por causa disso, a própria autoridade como algo ilegítimo, que se devesse antes substituir por formas de decisão “racionais” — como se pudesse em algum dia eliminar o peso da autoridade legítima em alguma forma de organização do convívio humano assim, a parte, através da qual a “experiência” faz a sabedoria, precisamente no caso do médico, mas não somente no seu caso, é tão incomprovável como convincente.

Encontrar-se-á em todas as áreas de aplicação prática de regras, e isto pertence sim a toda “práxis”, o fato de quanto mais alguém “dominar” seu ser-capaz-de-fazer, tanto mais liberdade em relação a este ser-capaz-de-fazer ele possuirá. Aquele que “domina” sua arte não precisa provar para si nem para outros sua superioridade. É uma antiga sabedoria platônica, a de que o verdadeiro ser-capaz-de-fazer também possibilita justamente a tomada de distância dessa capacidade, de modo que um mestre em corridas é também o que pode correr “lentamente” da melhor forma, aquele que sabe é também aquele que mente da maneira mais segura, etc. O que Platão quer dizer, mesmo sem o declarar, é que essa liberdade face ao próprio ser-capaz-de-fazer libera somente para o ponto de vista da verdadeira práxis, a qual ultrapassa a competência do ser-capaz-de-fazer — aquilo que Platão designa como “o bem”, que determina nossas decisões prático-políticas.

Justamente no contexto da arte médica também se fala de “dominar” ainda de um outro modo. O médico “domina” não apenas sua arte (como todo aquele que sabe fazer). Da ciência médica também se diz que ela “domina” determinadas doenças ou aprende a dominá-las. Nisso se manifesta o caráter especial do ser-capaz-de-fazer médico, não que ele “faz” e “produz”, mas que ele contribui para a recuperação do doente. “Dominar” uma doença significa, então, conhecer e poder guiar o seu curso — e não ser senhor da “natureza” a ponto de que se pudesse simplesmente “retirar” a doença. Todavia, também se fala dessa maneira lá onde a medicina mais se aproxima de uma arte técnica: na cirurgia. Mas mesmo o cirurgião sabe que “intervenção é intervenção” e, desta maneira, na “prescrição”, ele terá sempre também de vislumbrar mais além daquilo que a sua competência médica abrange e, quanto mais segurança ele tiver no “domínio” de sua arte, tanto mais livre ele se posicionará em relação a ela, não apenas na esfera de sua própria “práxis” médica.

Marianne Dautrey

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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