GA64:111 – O que meço ao medir o tempo?

Borges-Duarte

Que implica o facto de o ser-aí humano se ter proporcionado um relógio com anterioridade a todos os relógios de bolso e de sol? Será que eu tenho à minha disposição o ser do tempo e que, no agora, me viso conjuntamente a mim? Serei eu mesmo o agora e o meu ser-aí o tempo? Ou será que, afinal, é o tempo, ele mesmo, que proporciona, em nós, o relógio? Santo Agostinho, no livro XI das Confissões, levou a questão até ao ponto de (perguntar) se o espírito não será ele mesmo o tempo. E aí parada deixou Santo Agostinho a questão. “In te, anime meus, tempora metior; noli mihi obstrepere: quod est; noli tibi obstrepere turbis affectionum tuarum. In te, inquam, tempora metior; affectionem quam res praetereuntes in te faciunt, et cum illae praeterierint manet, ipsam metior praesentem, non eas quae praeterierunt ut fieret: ipsam metior, cum tempora metior.”1 Parafraseando: “Em ti, espírito meu, meço ο tempo; a ti meço, ao medir o tempo. Não me venhas com a pergunta: como é isso? Não me leves a desviar-me de ti com uma falsa questão. Não te interponhas no meu caminho até ti, enredando o que pode dizer-te respeito. Em ti, sempre o repito, meço o tempo; as coisas que, passageiramente, vêm ao (teu) encontro afectam-te de maneira permanente, enquanto elas desaparecem. É a afectividade que eu meço no ser-aí actual, e não as coisas, que sendo passageiras, lhe deram origem. O que meço – repito -, ao medir o tempo, é o meu mesmo sentir-me afectado.”2 (p. 31,33)

Robles

McNeill

Original

  1. Santo Agostinho, Confessiones, Liber XI, cap. 27, resp. 36. Sancti Aurelii Augustini opera omnia, post Lovaniensium theologorum recensionem. Editio novissima, emendata et auctior, accurante Migne. Parisiis, 1841. Tomus I, p. 823 sq.[↩]
  2. Heidegger verte muito livremente o texto agostiniano, introduzindo a conhecida terminologia de Ser e Tempo. Destaca-se a tradução de affectio pelo neologismo Befindlichkeit – termo que aparece aqui pela primeira vez publicamente e só reaparecerá nas lições de 1925, Prolegómenos à história do conceito de tempo (GA 20, 1979, 351-352) – reunindo pregnantemente os sentidos activo e passivo do termo: a “afeição” e o “ser e estar afectivamente afectado”. O paralelismo encontrado com o alemão corrente sich befinden parece marcar in statu nascendi a nova designação: o encontrar-se numa certa situação afectiva e, portanto, diriamos em português fluente, o “sentir-se” afectado de uma ou outra maneira por algo, o estado anímico (afectivo) a que Agostinho de Hipona se referia. Daí a decisão de traduzir Befindlichkeit por “afectividade” – enquanto “estar afectivamente” envolvido (activa e passivamente) em e com algo que “nos afecta” – e a forma verbal originária, sich befinden, como “sentirse afectado”. Por isso, mein Mich-befimden selbst verte-se como “o meu mesmo sentir-me afectado”.[↩]
  3. Agustín, Confessiones, Liber XI, cap. 27, resp. 36. Sancti Aurelii Augustini opera omnia, post ‘ovaniensium theologorum recensionem. Editio novissima, emendata et auctior, accurante Migne. Parisiis 1841, Tomus I, p. 823 sq. (NEA)[↩]
  4. La traducción de Heidegger es, efectivamente, una paráfrasis. Más literalmente, el pasaje agustiniano dice: “En ti, alma mía, mido los tiempos; no quieras interrumpirme, esto es, no quieras interrumpirte a ti misma con tus impresiones turbulentas. En ti, digo, mido los tiempos; la impresión que las cosas que pasan hacen en ti, y que permanece cuando aquéllas se han ido, ésa misma es la que, estando presente, mido, no las cosas que pasan y produjeron esa impresión: ésa es la mido, cuando mido los tiempos.” En la versión de Heidegger, se destaca sobre todo la interpretación de affectio como Befindlichkeit, “encontrarse (dispuesto)”.[↩]
  5. Augustine, Confessions, book XI, ch. 27. Sancti Aurelii Augustini opera omnia, post Lovaniensium theologorum recensionem. Editio novissima, emendata et auctior, accurante Migne. Parisiis 1841. Tomus I, p. 823 sq. TN: Notably, Heidegger translates the Latin anima by Geist (spirit), and the term affectio by Befindlichkeit (disposition, or finding oneself disposed). A more conventional translation reads: ‘Tis in thee, O my mind, that I measure my times. Do not thou interrupt me now, that is, do not interrupt thine own self with the tumults of thine own impressions. In thee, I say, it is, that I measure the times. The impression, which things passing by cause in thee, and remains even when the things are gone, that is it which being still present, I do measure: not the things which have passed by that . this impression might be made. This do I measure, whenas I measure times.’ (Tr. William Watts. London: Harvard University Press/Heinemann, 1912)[↩]
  6. Augustinus, Confessiones. Liber XI, cap. 27, resp. 56. Sancti Aurelii Augustini opera omnia, post Lovaniensium theologorum recensionem. Editio novissima, emendata et auctior, accurante Migne. Parisiis 1 841. Tomus I, Sp. 825 sq.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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