GA45:160-162 – indigência [Not]

Casanova

A indigência compele para o “íntimo entre” desse caráter indecidido. Ela ejeta pela primeira vez o decidível desse caráter indecidido. Na medida em que essa indigência se abate sobre o homem, ela o transpõe para o interior desse “entre” do ente ainda indecidido enquanto tal, do não-ente enquanto tal. Por meio dessa transposição, porém, o homem não sai apenas inalterado de um lugar em que ele se encontrava até aqui para um outro novo, como se ele fosse uma coisa que poderia ser empurrada de um local para o outro. Ao contrário: essa transposição coloca o homem pela primeira vez no interior da decisão das relações mais decisivas com o ente e o não-ente. Essas relações lhe emprestam o traço fundamental de uma nova essência. Essa indigência transpõe o homem para o início de uma fundação de sua essência. Nós dizemos, com cuidado, de uma fundação, porque nunca podemos dizer que ela seria a fundação absoluta.

Não obstante, o que é chamado aqui de transposição é o caráter essencial daquilo que conhecemos sob o nome de tonalidade afetiva ou de “sentimento”. Um hábito há muito enraizado na experiência e no dizer traz consigo o fato de interpretarmos os sentimentos e as tonalidades afetivas – assim como a vontade e o pensamento – em termos psicológico-antropológicos como ocorrências e transcursos junto a e em um corpo vivo, como vivências anímicas, como vivências que temos ou não temos. Também achamos, por isso, que seríamos “sujeitos” em si presentes à vista , que são transpostos para tal e tal tonalidade afetiva, uma vez que a “acolhemos” – quando, ao contrário, é a tonalidade afetiva que nos transpõe para tal e tal relação com o mundo, para tal e tal transfiguração ou encobrimento do mundo, para tal e tal decisão e fechamento6 de nosso si mesmo, que é essencialmente um ser-no-mundo.

A indigência compele na medida em que afina, e o afinar é um transpor, de tal modo que nos encontramos ou não nos encontramos de maneira determinada, afinados de tal e tal modo em relação ao ente, nos dispondo nós mesmos de tal e tal modo7. Se interpretarmos isso “psicologicamente” como “vivência”, tudo se perde. É por isso também que tudo aquilo que diz respeito aos gregos – sobretudo ao início – nos é tão dificilmente acessível: porque buscamos aí, de imediato, “vivências”, “traços pessoais” e “cultura”, o que não havia de modo algum naquele tempo igualmente breve e grandioso. É em virtude disso, também, que nos vemos tão completamente alijados de uma compreensão efetivamente real, por exemplo, da tragédia grega ou da poesia de Píndaro: porque as lemos e ouvimos, imediatamente também, de maneira cristã. Quando o grego fala, por exemplo, do αἰδώς, do pudor, que acomete o homem ousado e apenas ele, ou da χάρις, a graça doadora e protetora, que é em si o rigor (todas essas não passam de traduções lastimáveis e impertinentes), não está denominando nenhuma vivência do ânimo, que despontaria em um corpo vivo e que alguém poderia ter ou não. O que o grego tem em vista é indicado pelo fato de que ele denomina “deusas”, “semideusas”. Mas já estamos uma vez mais de posse de nossa explicação psicológica, na medida em que dizemos agora que ainda se trataria, de qualquer modo, da “vivência” mítica. E o mito? Uma forma determinada da vivência, do irracional.

Rojcewicz

Original

  1. Befindlichkeit — vgl. »Sein und Zeit«.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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