GA45 – abandono do ser

Como ficariam as coisas, porém, se esse abandono do ser do ente fosse um acontecimento apropriativo, que provém do ente na totalidade; e isso de tal modo que precisamente esse acontecimento apropriativo se tornaria o que há de menos visível e experimentável, uma vez que ele é o que há de melhor velado e encoberto e que o progresso de toda maquinação e a certeza de si de todo vivenciar se sabem tão próximos da realidade efetiva e da vida que é difícil imaginar uma proximidade maior? Como ficariam as coisas se o abandono do ser do ente fosse o fundamento e a essência mais velados e mais próprios daquilo que Nietzsche reconheceu pela primeira vez como “niilismo”, interpretando-o platônico-schopen­hauerianamente a partir da “moral”, a partir do “ideal”, mas sem ainda concebê-lo metafisicamente? (Isso quer dizer: sem concebê-lo ainda a partir do acontecimento fundamental do questionamento inicial da filosofia ocidental e, com isso, sem partir, ainda, daquilo que aponta antecipadamente para o âmbito da superação propriamente dita do niilismo, uma vez mais iniciante.) Como ficariam as coisas se o abandono do ser do ente, o fato de que o ente ainda “é” e de que o ser e sua verdade permanecem recusados ao ente e, com isso, ao homem (a recusa, porém, ela mesma como essência do seer), se esse acontecimento apropriativo que provém do todo do ente fosse o fundamento velado da tonalidade afetiva fundamental ainda velada, que nos compelirá para o interior de uma outra necessidade de um outro questionamento e de um outro iniciar originários? Como ficariam as coisas se o abandono do ser do ente fosse acompanhado por aquela indigência inerente ao fato de que a essência da verdade e a questão acerca da verdade ainda não são nenhuma necessidade? Como ficariam as coisas se a indigência da falta de indigência e, de acordo com o seu domínio velado, a época da completa ausência de questionamento tivessem o seu fundamento no abandono do ser do ente? (GA45:§40; tr. Casanova)

Nossa indigência – ela tem raízes tão profundas que não se mostra como indigência alguma para ninguém. A ausência de indigência é o caráter mais agudo dessa indigência única, que vem se preparando há muito tempo na história. Uma vez que essa indigência não se mostra como indigência para ninguém, toda referência a ela permanece, de saída, incompreensível ou, de qualquer modo, amplamente passível de ser mal interpretada. Já designamos a indigência com um nome: o abandono do ser. Explicitamos essa denominação e dissemos: o homem histórico empreende, usa e transforma o ente, experimentando a si mesmo aí como um ente – e o seer do ente não o interessa, como se ele fosse o que há de mais indiferente. Pode-se mesmo seguir em frente, como os progressos e os sucessos o mostram, sem o seer, que apenas assombra, por vezes, como o último resíduo de uma sombra, a mera representação voltada para a ação e para a atuação e, por isso, já irreal. Se esse seer é tão nulo diante do ente palpável que nos acomete imediatamente, e se ele permanece de fora da experiência e do cálculo, mas, contudo, é imprescindível, então não se pode denominar isso abandono do ser. Pois só há abandono lá onde o que é pertinente é subtraído de nós.

Quando falamos de abandono do ser, reportamo-nos tacitamente ao fato de o seer pertencer e precisar pertencer ao ente para que o ente seja essente e o homem mais essente em meio ao ente. Por isso, o abandono do ser do ente só é experimentado como indigência quando alvorece a pertinência do seer ao ente e, com isso, se torna questionável o mero empreendimento do ente. Mas então – assim o parece – também já se superou a indigência ou, de qualquer modo, já se deu o primeiro passo para superá-la. Não. Nesse caso, a indigência apenas se desdobra e conquista aquela agudeza que torna uma decisão, sim, que torna a decisão incontornável: ou se rejeita, apesar da aurora da pertinência do ser ao ente, a questão acerca do seer e, em vez disso, se eleva a dimensões gigantescas, por toda parte, o empreendimento do ente, ou ganha poder e espaço aquele pavor que, a partir de então, não deixa mais que a pertinência do seer ao ente caia em esquecimento e que torna questionável todo mero empreendimento do ente. Mas essa justamente é a indigência da falta de indigência, o fato de permanecer indiferente se se chegará um dia a essa decisão. (GA45:Anexo, 6; tr. Casanova)

 

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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