GA3: § 38. – A questão da essência do homem e o resultado verdadeiro da instauração kantiana do fundamento

Parece mais e mais claro que não chegaremos a cingir o verdadeiro resultado da instauração kantiana enquanto nos mantivermos a apresentá-lo sob forma de definição ou de tese acabada. A maneira de filosofar própria a Kant só nos será acessível se nos abstemos, com ainda maior determinação que antes, a examinar aquilo que Kant expôs literalmente, para investigar aquilo que se realiza no curso de sua instauração. A explicitação original da Crítica da Razão Pura, tal qual a apresentamos acima, não tem outra meta que desvelar esta realização.

Qual é o verdadeiro resultado da instauração kantiana? Não é que a imaginação transcendental aí se torne o fundamento estabelecido, nem que esta instauração se transforme em uma questão sobre a essência da razão humana, mas antes de tudo que Kant, enquanto desvela a subjetividade do sujeito, tem um movimento de recuo diante do fundamento que ele mesmo estabeleceu.

Este recuo não faz parte do resultado? E o que então se realiza nele? É uma simples inconseqüência, que daria lugar a uma crítica a Kant? Este recúo e esta refutação de ir ao limite são puramente negativos? De maneira alguma. É ao contrário manifesto que Kant, a medida que persegue sua instauração, solapa ele mesmo o fundamento sobre o qual, no início, apoiava sua crítica. O conceito de razão pura e unidade de uma razão pura sensível tornam-se problemas. A investigação aprofundada que Kant leva sobre a subjetividade do sujeito, a “dedução subjetiva”, nos conduz à obscuridade. Não é somente porque a antropologia kantiana é empírica e não pura que Kant não se refere a ela, é porque o curso da instauração torna contestável a própria maneira de se interrogar sobre o homem.

Não a resposta dada à questão da essência do homem que se trata de investigar: trata-se antes de tudo de se perguntar como, em uma instauração do fundamento da metafísica, é possível pôr o homem em questão, e como esta colocação em questão é necessária.

O caráter contestável da interrogação relativa ao homem é precisamente aquilo que é tornado claro na realização da instauração kantiana. Parece agora que o recuo de Kant diante do fundamento que ele mesmo desvelou, quer dizer diante da imaginação transcendental, não é outro – relativamente a sua intenção de salvar a razão pura, de manter o fundamento que propunha – que o movimento do pensamento filosófico que torna manifesta a ruína deste fundamento e nos coloca assim diante do abismo da metafísica.

É por este resultado que a explicitação original da instauração kantiana, precedentemente realizada, adquire sua justificação e funda sua necessidade. Todos os esforços desta interpretação foram inspirados não pela vã preocupação de levar sempre adiante a investigação ou de saber sempre mais a fundo, mas unicamente pela intenção de atualizar o movimento mais íntimo da instauração, e assim, sua problemática própria.

Mas se a instauração não quer nem afastar a questão da essência do homem nem lhe fornecer uma resposta límpida, se quer somente tornar perceptível o caráter problemático, que sucede à quarta questão posta por Kant, questão à qual deveria se conduzir a metaphysica specialis e, com ela, o verdadeiro pensamento filosófico?

Só chegamos a propor esta quarta questão de uma maneira conveniente se a desenvolvemos enquanto questão a partir da interpretação, tal qual ela está presentemente fixada, do resultado da instauração, e se renunciamos à qualquer resposta prematura.

Trata-se de se perguntar por que as três questões (1. Que posso saber? 2. Que devo fazer? 3. Que me é permitido esperar?) “se deixem relacionar” à quarta. Por que “tudo isto pode ser posto na conta da antropologia”? Que há em comum entre estas três questões, sob qual aspecto, capaz de reduzi-las a única quarta questão, elas são uma? Como, esta quarta questão deve se formular para que possa englobar, portar em sua unidade, as três outras?

O interesse mais profundo da razão humana forma a ligação das três questões consideradas. Elas põem em jogo um poder, um dever e uma esperança da razão humana.

Quando um poder é posto em questão e que se quer delimitar as possibilidades, ele manifesta ao mesmo tempo um não-poder. Um ser todo-poderoso não tem que se perguntar: o que posso?, quer dizer: o que não posso? Não somente não tem necessidade de pôr tal questão, mas é contrário a sua natureza poder propô-la. Este não-poder não é uma falha, mas uma ausência de toda falha e de toda “negatividade”. Aquele que se interroga sobre seu poder manifesta uma finitude. E aquele que tal questão toca em seu interesse mais íntimo prova uma finitude no mais íntimo de seu ser.

Aí onde um dever é posto em causa, aquele que se interroga, hesita entre um “sim” e um “não”, encontra-se atormentado pelo que não deve fazer. Um ser que se interessa profundamente a um dever sabe não ser ainda completamente realizado, e o sabe de tal maneira que é levado a se perguntar o que deveria fazer. Esta falha em uma realização, ela mesma ainda indeterminada, revela um ser que, porque o dever é seu interesse mais íntimo, é em seu fundo finito.

Onde uma esperança é posta em jogo, aparece alguma coisa que poderá ser acordada ou refutada àquele que a demanda. Demanda-se o que é permitido e o que não é permitido esperar. Mas toda espera manifesta uma falta, e se esta falta relativa ao interesse mais íntimo da razão humana, esta se reconhece como essencialmente finita.

Assim, por estas questões, a razão humana não trai somente sua finitude, mas ainda manifesta que seu interesse mais íntimo se concentra sobre esta mesma finitude. Logo não se trata de eliminar o poder para ela, o dever e a esperança, e assim de afastar a finitude, mas, ao contrário, de se assegurar desta finitude a fim de aí se manter.

A finitude não é, portanto, uma propriedade acidental da razão humana, mas define através desta a necessidade de se tornar finita, quer dizer a “preocupação” de um poder finito.

Segue-se que a razão humana não somente finita porque ele se propõe estas três questões, mas que, ao contrário, ela se propõe estas questões porque ela é finita, tão radicalmente finita que aí se dá, na sua racionalidade, esta finitude mesmo. É porque estas três questões se indagam a respeito deste único (objeto) que é a finitude, que pode estabelecer-se sua relação à quarta: O que é o homem?

Mas estas três questões não se deixam somente relacionar à quarta; elas não são nelas mesmas nada além que esta mesma questão, quer dizer que elas devem, em sua essência, serem reconduzidas a esta questão. Esta relação, no entanto, apenas se tornará necessária e essencial se a quarta questão se dispa daquilo que tinha inicialmente de muito geral e de indeterminado para adquirir a univocidade de uma interrogação dobre a finitude do homem.

Sob esta forma, esta questão não deve ser subordinada às três primeiras, mas se transforma em problema primeiro do qual os outros decorrem.

Apesar deste resultado, apesar da precisão da questão sobre o homem, ou antes, por causa dela, o problema que propõe esta questão ganha ainda em acuidade. Há agora que se perguntar que espécie de questão é esta questão sobre o homem e se ela pode ainda ser uma questão antropológica. O resultado da instauração kantiana se esclareceu assim a tal ponto que se vê nela uma possibilidade autêntica de repetição.

A instauração do fundamento da metafísica se enraiza na questão relativa à finitude do homem, de tal maneira que esta finitude pode no momento tornar-se ela mesma um problema. A instauração do fundamento da metafísica é uma “dissociação” (analítica) de nosso conhecimento, quer dizer do conhecimento finito, em seus elementos. Kant a denomina um “estudo de nossa natureza íntima” (A 703, B 731). Tal estudo, por conseguinte, só cessa de ser uma curiosidade arbitrária e desordenada tocando o homem para tornar-se “dever do filósofo” (Loc. cit.), se a problemática que o domina se encontra apreendida com suficiente amplitude e originalidade e leva a examinar a “natureza íntima” de “nossa” ipseidade como o problema da finitude do homem.

Quaisquer que sejam a diversidade e a importância dos conhecimentos que a “antropologia filosófica” nos aporte a respeito do homem, ela não pode legitimamente pretender ser uma disciplina fundamental da filosofia pelo simples fato de ser antropológica. Ao contrário, ela arrisca constantemente de nos dissimular a necessidade de desenvolver como problema a questão do homem e de ligar este problema à instauração do fundamento da metafísica.

Não podemos examinar aqui se e como a “antropologia filosófica” – fora do problema da instauração do fundamento da metafísica – possui ainda uma tarefa própria.