GA27:146-147 – Dasein neutro e os sexos

Casanova

Em sua essência, o ente que nós mesmos respectivamente somos, o homem, é um neutro. Denominamos esse ente: o ser-aí 1. Todavia, faz parte da essência desse ente neutro o fato de ele, contanto que exista, a cada vez, de maneira fática, necessariamente romper a sua neutralidade. Ou seja: como um ente fático, o ser-aí sempre é, a cada vez, masculino ou feminino, ou seja, ele é um ser sexuado; esse fato encerra em si um um-com-o-outro e um um-em-relação-ao-outro totalmente determinados. Os limites e a amplitude da atuação desse caráter sempre são a cada vez faticamente diversos; não se pode aqui senão mostrar que possibilidades da existência humana não são determinadas pela relação de sexos ou pela relação de gêneros 2. Por si só, justamente essa relação de sexos (relação de gêneros) só é possível porque o ser-aí já é determinado em sua neutralidade metafísica pelo um-com-o-outro. Se todo e qualquer ser-aí, sendo sempre a cada vez faticamente masculino ou feminino, já não estivesse um-com-o-outro segundo sua essência, então essa relação de sexos ou essa relação de gêneros permaneceria puramente impossível como relação humana.

(156) Por isso, o contra-senso mais tosco que se pode imaginar é tentar explicar inversamente o um-com-o-outro como determinação essencial do ser-aí a partir da relação de sexos ou a partir da relação de gêneros. Em sua cega e insuficiente oposição ao idealismo alemão, Ludwig Feuerbach levou esse erro a termo. Hoje se tenta renová-lo. No entanto, ele não passa a ser verdade porque procuramos tornar mais palatáveis os materialismos toscos de Feuerbach com o auxílio da fenomenologia atual. A tese fundamental da antropologia feuerbachiana, de sua doutrina do homem, é a seguinte: o homem é aquilo que come 3. Essa tese tem algo de correto. Contudo, sempre que algo semiverdadeiro é declarado um princípio universal, o resultado não é outro senão confusão.

À essência do homem pertence essa neutralidade rompida de sua essência. Todavia, isso significa que essa essência só pode ser problematizada primariamente a partir dessa neutralidade e somente com relação a essa neutralidade é possível a quebra da neutralidade mesma. Nesse problema, a questão do sexo ou do gênero é apenas um momento e, com efeito, não o momento primário (o estar-jogado). Na medida em que o ser-aí existe agora como ser-aí corpóreo, a apreensão fática do outro por um ser-aí e de um ser-aí pelo outro se acha submetida a condições determinadas. As relações corporalmente co-condicionadas de apreensão mútua entre os seres-aí não constituem, porém, o um-com-o-outro, mas o pressupõem e são, por sua vez, determinadas por ele.

Para deixar claro desde o começo que o um-com-o-outro nem chega a termo primariamente por meio do caminho que leva para além de um eu individualizado, nem pode ser esclarecido a partir da relação eu-tu, a análise foi iniciada no ser junto a um ente por si subsistente. Mas, se o ser junto a… é um momento essencial do um-com-o-outro, então o ser junto a… também precisa continuar (157) sendo determinante para as diversas possibilidades fáticas do um-com-o-outro, ou, a título de exemplo, da comunidade.

McNeill

Original

  1. Heidegger vale-se aqui do fato de o substantivo Dasein em alemão ser do gênero neutro, isto é, não ser nem masculino nem feminino. (N. do T.)[↩]
  2. Heidegger joga aqui com uma ambiguidade constitutiva do termo alemão Geschlecht. Esse termo designa em alemão tanto sexo quanto gênero. Para acompanhar essa ambiguidade do termo alemão, traduzimos acima a expressão Geschlechts-Verhältnis por “relação de sexos ou relação de gêneros”. Com isso, o “ou” é para ser entendido nesse contexto como uma explicitação e não como uma disjunção. Jacques Derrida discutiu minuciosamente as reticências heideggerianas presentes no texto acima em seu excelente De L’esprit. Heidegger et la question que em português recebeu o título Da questão. (N. do T.)[↩]
  3. A sentença acima contém uma homofonia entre os verbos ser e comer em alemão que não tem como ser traduzida de maneira similar para o português: Der Mensch ist, was er isst. (N do T.)[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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