GA27:140-142 – ser-um-com-o-outro

Ora, já ouvimos o seguinte: no conceito tradicional de sujeito, o ser junto a… (Sein bei) é deixado de lado. Como ainda veremos, ele não chega a ser tomado nem mesmo como um momento essencial da subjetividade (Subjektivität) quando o sujeito (Subjekt) é considerado como consciência intencional (intentionales Bewußtsein). A intencionalidade (Intentionalität) não conquista sua eficácia verdadeira e central, enquanto ela continua sendo “consciência”, e não é exatamente com o auxílio da intencionalidade que a interpretação dada pelo homem à consciência é calcada. No entanto, na medida em que o sujeito é pensado como que cindido desse ser junto a…, como uma espécie de sujeito parcial, a pergunta acerca do ser-um-com-o-outro (Miteinandersein) [149] e por sua essência também acaba ficando confusa. Como os dois sujeitos (o eu e o outro) estão subdeterminados, para estabelecer uma comunicação entre os dois é preciso buscar um expediente mais rico do que, de acordo com sua essência, seria necessário. A subdeterminação da subjetividade provoca uma superdeterminação da relação (Beziehung) entre sujeito e sujeito. Pois agora temos dois sujeitos — mas esses dois sujeitos se acham inicialmente de uma tal maneira que nenhuma comunicação (Kommunikation) é possível — e o problema se volta então para o modo como esses dois sujeitos parciais podem se encontrar.

O sujeito que acreditamos ter com segurança é o próprio eu, o sujeito-eu (Ich-Subjekt) que certamente não é estabelecido como único em seu estar sozinho; o outro se torna, por isso, o sujeito-tu (Du-Subjekt), ao qual falta igualmente aquela determinação, ou seja, um segundo eu. Assim, coloca-se a pergunta acerca de como um primeiro eu pode chegar a um segundo eu e acerca de como pode surgir um um-com-o-outro (Miteinander) a partir da reunião desses dois “eus”. Quando esses dois “eus” estão juntos, abre-se um espaço para que eles possam debater como é que podem se comportar em relação a uma coisa comum lá fora. Em seu ponto de partida, o problema do um-com-o-outro se torna o problema da relação-eu-tu (Ich-Du-Beziehung) e o modo de constituição dessa relação é designado como empatia (Einfühlung); essa empatia é a porta por meio da qual um sujeito que se encontra fechado em uma couraça passa de certo modo para o outro lado.

Mas, na medida em que o um-com-o-outro como problema permanece reduzido ao denominador comum da “empatia” – como quer que essa empatia seja concebida —, não se conquista a intelecção decisiva de que o um-com-o-outro já pertence à essência do ser-aí como tal, de modo que esse ser-aí (Dasein) como tal também já é um ser junto a…

Ser-aí é ser-um-com-o-outro junto a… (Dasein ist Miteinandersein bei) E, assim, se o um-com-o-outro é tomado como algo pertencente à essência de cada ser-aí, então isso não significa que não há mais nenhum problema. Ao contrário, mostramos, sim, como justamente agora precisa ser colocada a pergunta acerca da possibilidade interna do um-com-o-outro, [150] e como essa pergunta encontra sua resposta na elucidação do ser-aí como tal.

Já mostramos ao menos em um aspecto como cada ser-aí é por si mesmo um ser-com (Mitsein). E é somente porquanto cada ser-aí como tal é por si mesmo um ser-com, um um-com-o-outro, que a comunidade e a sociedade humanas, em suas diversas variações, estágios e graus de autenticidade e inautenticidade, duração e fugacidade, são possíveis.

Mas algum dos senhores talvez venha a me dizer: será que o ser junto a… não possui nenhuma primazia? E se é assim: como é possível destacar desse ser junto a… o co-ser-aí (Mitdasein) como o a priori do que é compreendido no ser-com? Nunca se consegue mostrar senão como um outro é onticamente conhecido como tal. Todavia, mesmo no que concerne a essa possibilidade, o caminho husserliano é impraticável. Em primeiro lugar, porque Husserl ainda permanece exilado em uma esfera egológica pensada de maneira idealista e obscura; e, em segundo lugar, porque ele está orientado para a apreensão pura das coisas e dos dados, e não para as relações existenciais concretas.

Se tomarmos o ser junto a… de maneira totalmente ampla como ser junto ao “outro”, junto a um ente indiferente que nós mesmos não somos, então justamente essa indiferença não aponta para a indeterminação do espaço vazio, mas para a indeterminação do espaço cheio (Indifferenz nicht die Unbestimmtheit der Leere, sondern der Fülle); já se inclui nesse caso o projeto (Entwurf) que reside no ser-com. É fácil comprovar a primazia do ser-com se tivermos em vista a relação fática segundo a qual o “primitivo” toma o “outro”, e também as coisas, de maneira personificada e viva. (GA27PT:148-150)

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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