fundar

gründen

A relação originária da liberdade para com o fundamento, nós a denominamos o fundar. Fundando, ela dá liberdade e toma fundamento. Este fundar radicado na transcendência está, porém, disperso numa multiplicidade de modos. Deles há três: 1. O fundar como erigir (stiften). 2. O fundar como tomar-chão (Boden-nehmen). 3. O fundar como o fundamentar (begründen). Se estes modos de fundar fazem parte da transcendência, então as expressões “erigir”, “tomar-chão”, não podem ter certamente um significado vulgar ôntico, mas devem ter um significado transcendental. Em que medida, porém, é o transcender do ser-aí um fundar segundo os modos mencionados?

Propositadamente é citado o “erigir” como “primeiro” entre os três modos. Não como se produzisse de si os outros. Também não é o fundar primeiramente conhecido, nem o mais das vezes reconhecido. Contudo, cabe a ele justamente uma primazia, que se mostra no fato de que já a clarificação precedente da transcendência, não pôde evitá-lo. Este “primeiro” fundar não é outra coisa que o projeto do em-vista-de. Se este deixar imperar livremente mundo foi determinado como transcendência, se ao projeto de mundo como fundar, porém, também pertencem necessariamente os outros modos de fundar, então resulta que, até agora, nem a transcendência nem a liberdade foram levadas à sua plena determinação. Não há dúvida de que no projeto de mundo do ser-aí reside sempre o fato de que retorna ao ente na e pela ultrapassagem. O em-vista-de, projetado no ante-(pro)-jeto, aponta de volta para o ente em sua totalidade que pode ser desvelado neste horizonte do mundo. Ao ente pertence sempre, seja em que níveis de distinção e graus de expressividade for: ente como ser-aí e ente que não possui o caráter de ser-aí. Mas, no projeto de mundo, este ente, contudo, não está revelado em si mesmo. Sim, deveria permanecer velado, se o ser-aí projetante como projetante não estivesse já também, em-meio àquele ente. Este “em-meio-a…” não significa nem ocorrer entre outros entes, nem também: orientar-se para este ente, tendo um determinado comportamento face a ele. Este estar-em-meio-a… faz muito antes parte da transcendência. Aquilo que ultra-passa e que assim se alteia deve, como tal, estar situado em meio ao ente. Enquanto assim situado, o ser-aí é ocupado pelo ente de tal maneira que, pertencendo ao ente, é por ele perpassado pela disposição. Transcendência significa projeto de mundo, mas de maneira tal que aquele que projeta já é também perpassado pela disposição por obra do ente, que ele ultrapassa. Com uma tal ocupação (Eingenommenheit) pelo ente, a qual faz parte da transcendência, o ser-aí tomou-chão (assento) em meio ao ente, conquistou “fundamento”. Este “segundo” fundar não surge após o “primeiro”, mas é com ele “simultâneo”. Com isto não se quer dizer que eles existem no mesmo agora, mas: projeto de mundo e ocupação pelo ente fazem, como modos de fundar, respectivamente, parte de uma temporalidade, na medida em que constituem sua temporalização (Zeitigung). Mas, do mesmo modo como o futuro precede “no” tempo, mas somente se temporaliza na medida em que justamente tempo, isto é, também passado e presente se temporalizam na específica unidade-do-tempo, assim também os modos de fundar que se originam na transcendência mostram esta conexão. Esta correspondência, porém, subsiste porque a transcendência radica na essência do tempo, isto é, em sua constituição ek-stático-horizontal (A interpretação temporal da transcendência fica total e intencionalmente de lado nesta consideração).

O ser-aí não poderia, enquanto ente, ser pelo ente perpassado pela disposição e, em consequência, por exemplo, ser por ele cercado, por ele ocupado e por ele atravessado – faltar-lhe-ia, aliás, espaço para isso -, se esta ocupação pelo ente não fosse acompanhada por uma irrupção de mundo, ainda que fosse um mundo apenas crepuscular. Mesmo que o mundo desvelado tenha pouca ou nenhuma transparência conceitual; mesmo que mundo seja até interpretado como um ente entre outros; pode faltar um saber expresso em torno do transcender do ser-aí; a liberdade do ser-aí, que traz consigo o projeto de mundo, pode estar apenas desperta – o ser-aí é, contudo, ocupado pelo ente, apenas como ser-no-mundo. O ser-aí funda (erige) mundo apenas enquanto se autofunda em meio ao ente.
No fundar com o caráter de erigir, como projeto da possibilidade de si mesmo, reside, entretanto, o fato de o ser-aí sempre se exceder (überschwingt). O projeto de possibilidade é, segundo sua essência, sempre mais rico que a posse que repousa naquele que projeta. Mas uma tal posse é própria do ser-aí, porque se encontra situado, como projetante, em meio ao ente. Com isto já estão subtraídas ao ser-aí certas outras possibilidades – e isto simplesmente através de sua própria faticidade. Mas somente esta subtração (privação) de certas possibilidades de seu poder-ser-no-mundo, decididas na ocupação pelo ente, traz para o ser-aí, como seu mundo, as possibilidades “realmente” acessíveis do projeto de mundo. A privação justamente consegue, para a obrigatoriedade do ante-(pro)-jeto que permanece projetado a força de seu imperar no âmbito existencial do ser-aí. A transcendência é, conforme aos dois modos de fundar, ao mesmo tempo, aquilo que excede e que priva. Que o projeto de mundo, cada vez se excedendo, somente se torne poderoso e posse na privação, é, ao mesmo tempo, um documento transcendental da finitude da liberdade do ser-aí. Será que não se manifesta nisto, até mesmo, a essência finita da liberdade em geral?

Para a explicitação do diverso fundar da liberdade é primeiramente essencial ver a unidade dos modos de fundar, até aqui examinados, vinda à luz na harmonia transcendental de excesso e privação.

O ser-aí, entretanto, não é um ente que apenas se acha situado em meio ao ente; ele se relaciona também com o ente e, desta maneira, consigo mesmo. Este relacionar-se com o ente é, primeiramente e o mais das vezes, equiparado à transcendência. Mesmo que isto revele um desconhecimento da essência da transcendência, contudo, deve ser examinada como problema a possibilidade transcendental do comportamento intencional. E se, realmente, a intencionalidade é um privilegiado elemento constituinte da existência do ser-aí, não pode ser omitida numa clarificação da transcendência.

O projeto de mundo possibilita, certamente – o que aqui não pode ser mostrado -, a prévia compreensão do ser do ente, mas ele mesmo não é referência do ser-aí ao ente. Do mesmo modo, a ocupação que faz o ser-aí situar-se em meio ao ente (e, na verdade, nunca sem desvelamento do mundo) e ser por ele disposto não é um comportamento em face do ente. Mas ambos são – na sua unidade que caracterizamos – a possibilitação transcendental da intencionalidade, e isto de maneira tal que, como modos de fundar, temporalizam juntamente com eles um terceiro modo: o fundar como fundamentar. Neste a transcendência do ser-aí assume a possibilitação da revelação do ente em si mesmo, a possibilidade da verdade ôntica.

“Fundamentar” não será tomado aqui no estreito e derivado sentido do demonstrar de proposições ôntico-teoréticas, mas numa significação fundamentalmente originária. De acordo com isto, fundamentação significa tanto como possibilitação da questão do porquê em geral. Tornar visível o caráter próprio originariamente fundador do fundamentar, quer dizer, conforme isso, clarificar a origem transcendental do porquê como tal. Procurados não são, portanto, os motivos da irrupção fática da questão do porquê no ser-aí, mas procura-se a possibilidade transcendental do porquê em geral. Por isso deve ser interrogada a transcendência mesma, na medida em que foi determinada através dos dois modos de fundar até aqui examinados. O fundar que erige antecipa, como projeto de mundo, possibilidades de existência. Existir significa sempre: situado em meio ao ente, comportar-se em face dele – do ente que não possui o caráter do ser-aí, de si mesmo e de seu semelhante – de tal maneira que neste comportamento situado sempre esteja em mira o poder-ser do ser-aí. No projeto de mundo é dado um excesso de possível, em vista do qual e no ser perpassado pelo imperar do ente (real), que de todos os lados nos cerca no sentimento de situação brota o porquê.

Mas, pelo fato de os dois modos de fundar, primeiro examinados, fazerem parte de uma unidade na transcendência, é a origem do porquê transcendentalmente necessária. Com sua origem o porquê também já se diversifica. As formas fundamentais são: por que assim e não assado? Por que isto e não aquilo? Por que afinal algo e não nada? Neste porquê, seja de que modo for expresso, já reside, porém, uma pré-compreensão, ainda que pré-conceitual, do que-ser, como-ser e ser (nada) em geral. Isto, porém, quer dizer: já contém a resposta primordial, primeira e última para todo o questionar. A compreensão do ser dá, como resposta que a tudo precede simplesmente, a primeira e última fundamentação. Nela a transcendência é fundamentante enquanto tal. Porque nisso ser e constituição de ser são desvelados, chama-se o fundamentar transcendental verdade ontológica.

Este fundamentar está “à base” de todo o comportamento em face do ente, de tal modo que somente na claridade da compreensão do ser o ente pode ser revelado em si mesmo (isto é, enquanto o ente que ele é e como o é). Porque, entretanto, todo o revelar-se do ente (verdade ôntica) é, de antemão, perpassado transcendentalmente pelo imperar do fundamentar que caracterizamos, por isso, devem, todo o descobrir e revelar ônticos, ser à sua maneira “fundantes”, isto é, devem legitimar-se. Na legitimação se realiza a adução do ente exigida respectivamente pelo que-ser e como-ser do referido ente e do modo de desvelamento (verdade) que lhe é próprio; um tal ente então, por exemplo, se manifesta como “causa” e “motivo” (Beweggrund) para uma já revelada conexão de entes. Pelo fato de a transcendência do ser-aí, enquanto projeta e está situada, enquanto elabora compreensão de ser, fundamenta, e pelo fato de este fundar ser co-originário com os dois primeiros citados, na unidade da transcendência, isto é, pelo fato de brotar da liberdade finita do ser-aí, por isso pode o ser-aí, em suas legitimações fáticas e justificações, desembaraçar-se das “razões”, sufocar o apelo a elas, transtorná-las e encobri-las. Em consequência desta origem da fundamentação e, por conseguinte, também da legitimação, fica, em cada situação, entregue à liberdade, até que ponto a legitimação é exercida e se ela consente na fundamentação propriamente dita, isto é, no desvelamento de sua possibilidade transcendental. Ainda que ser sempre esteja desvelado na transcendência, não é necessária, contudo, uma formulação ontológico-conceitual. Assim, pois, de resto, a transcendência pode ficar oculta como tal e somente ser conhecida numa explicitação “indireta”. Mas mesmo então ela está desvelada, pois, ela justamente deixa irromper o ente na constituição fundamental do ser-no-mundo, em que se manifesta o auto-desvelamento da transcendência. Propriamente se desvela, porém, a transcendência como origem do fundar, quando este é levado a eclodir em seu originar-se, na sua triplicidade. De acordo com isto, fundamento quer dizer: possibilidade, chão, legitimação. Apenas o fundar da transcendência, triplamente disperso, causa, enquanto originariamente unifica, o todo em que o ser-aí sempre deve poder existir. Liberdade é, neste tríplice modo, liberdade para o fundamento. O acontecer da transcendência como fundar é o formar-se do espaço em que pode irromper o respectivo manter-se fático do ser-aí fático em meio ao ente como totalidade.

Reduzimos, por conseguinte, o tradicional número quatro de fundamentos a três, ou coincidem os três modos de fundar com as três modificações do prõton hóthen em Aristóteles? Tão extrinsecamente não se pode fazer a comparação; pois é característica própria da primeira exposição dos “quatro fundamentos” que, ao se fazê-lo, não se distingue ainda fundamentalmente entre os fundamentos transcendentais e as causas especificamente ônticas. Aqueles são apenas os “mais gerais” com relação a estas. A originariedade dos fundamentos transcendentais e seu caráter específico de fundamento ficam ainda encobertos sob a caracterização formal de “primeiros” e “supremos” princípios. Por isso também lhes falta a unidade. Ela somente pode subsistir na co-originariedade da origem transcendental do tríplice fundar. A essência “do” fundamento não se deixa nem procurar e muito menos achar pelo fato de se perguntar por um gênero universal que deveria surgir como resultado pela via de uma “abstração”. A essência do fundamento é a tríplice distribuição do fundar em projeto de mundo, ocupação no (pelo) ente e fundamentação ontológica do ente que brota transcendentalmente.

E somente por isso já o mais antigo interrogar pela essência do fundamento mostra-se imbricado com a tarefa de uma clarificação da essência de ser e verdade.

Não se poderá, porém, perguntar, contudo, ainda agora, por que estes três elementos determinantes da transcendência que fazem parte de uma unidade são designados com a mesma expressão “fundamentos”? Subsiste aqui apenas ainda uma comunidade verbal artificial e forçada e que se reduz a jogo de palavras? Ou são os três modos de fundar, contudo, ainda idênticos numa perspectiva – ainda que isto seja, em cada caso, diferente? A pergunta deve realmente receber resposta positiva. A clarificação do significado, porém, com respeito ao qual os três modos inseparáveis de fundar se correspondem unitariamente e, contudo, diversificados, não se deixa concretizar ao “nível” da presente consideração. Baste, como alusão, a indicação de que o erigir, tomar-chão e legitimação brotam, cada um a seu modo, do cuidado pela estabilidade e consistência, o qual, por sua vez, somente é possível como temporalidade. (MHeidegger SOBRE A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO)