Fuchs (2018:56-58) – Memória situativa

Consideremos uma vez mais o exemplo de uma perturbação do habitual — um quadro que falta na parede, uma reestruturação do mobiliário, que faz com que eu bata em algo, onde eu normalmente seguia de maneira óbvia meu caminho. Nós vemos, com isto, que a memória corporal está orientada por situações, nas quais nós nos encontramos. Por isto, trata-se ao mesmo tempo de uma memória espacial. Ela nos auxilia a nos movermos no espaço do apartamento, da vizinhança, da terra natal. Experiências corporais ligam-se de uma maneira particular com espaços internos, e, quanto mais frequentemente isto acontece, tanto mais esse espaço é preenchido por referências latentes ao passado, por uma atmosfera de familiaridade. Morar e hábito estão fundados os dois na mesma medida na memória corporal.

Situações, porém, também são mais do que constructos espaciais; elas são unidades totais, indecomponíveis, de percepção corporal, sensível e atmosférica: um jogo de futebol em um estádio em delírio, uma viagem de barco em um mar encapelado, um passeio por uma cidade grande iluminada à noite. Estar familiarizado com tais situações que retornam de maneira semelhante por meio do hábito é aquilo, então, que designamos como ser experiente. O experiente reconhece com um olhar escolado o essencial ou característico de uma situação; ele desenvolve, por fim, um “sétimo sentido”, um faro ou uma intuição para ela. O goleiro tem o “nariz” para situações que envolvem perigo de gol na pequena área. O marinheiro pressente o mais sutil indício do despontar de uma longínqua tempestade. O criminalista experiente reconhece em um caso a “marca” de um criminoso. Ou tomemos um exemplo do âmbito médico: o psiquiatra experiente se orienta no diagnóstico não apenas pelos sintomas particulares, pelos resultados (56) e pelos dados do transcurso, mas também pela impressão conjunta, que ele obtém de um paciente e de uma situação de vida. E quanto mais cresce sua experiência, tanto mais fácil se torna já no primeiro contato reconhecer o adoecimento existente. Nenhum filme ou manual pode substituir essa vivência própria de um diagnóstico e de seu colorido particular.

Quem é experiente consegue julgar uma conjuntura complexa, obscura, não reconhecível em todas as suas particularidades intuitivamente, a partir de uma percepção do todo. Ele reconhece sua fisionomia particular e vê padrões familiares, onde outros só ficam irritados. Ele sabe mais instintivamente do que explicitamente como lidar com ela. Experiência não é nenhum saber teórico, mas um saber prático, um conhecer e um poder fazer, que se transformou para nós em obviedade, que se converteu em “carne e osso”. Esta é a realização da memória corporal. Ela sempre sabe mais do que nós conseguimos dizer exatamente. Ela não contém esquemas perceptivos isolados ou programas de movimentos, mas antes uma sensibilidade para situações, para a “melodia” familiar da percepção e dos transcursos do comportamento. O saber fazer corporal, por exemplo, saber dançar valsa, atualiza-se, na medida em que se entra no ritmo familiar do movimento e se experimenta sua afinação particular. No encontro com um paciente depressivo vibram concomitantemente experiências atmosféricas prévias, ressoam sentimentos e vivências, que tomam possível reconhecer o típico do paciente, mas que não têm como ser analisadas em momentos particulares. É possível, por isto, transcrever o saber corporal implícito apenas com a expressão “tal como é…” ou “tal como se sente…”, por exemplo, “tal como é dançar valsa”, “tal como é falar com um paciente depressivo”, “tal como se precisa sentir o tom ao virar”, “tal como cheirava lá em casa no natal” etc. Nunca é possível enunciar completamente tal saber. Por isto, não é possível intermediar discursivamente nem a habilidade de um artesão experiente nem a intuição diagnostica de um médico ao que está aprendendo — ele precisa por si mesmo experimentar “no próprio corpo”, na medida em que imita (57) o experiente, a saber, assume uma postura corporal que lhe é semelhante na lida com o objeto.

(FUCHS, Thomas. Para uma psiquiatria fenomenológica: Ensaios e conferências sobre as bases antropológicas da doença psíquica, memória corporal e si mesmo ecológico. Tr. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita, 2018)

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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