1.— Vida e obras: — Edmund Husserl nasceu em Prossnitz, na Morávia (antigo império Austro-Húngaro, hoje Checoslováquia), a 8 de Abril de 1859. Descendente de família judaica, foi, contudo, educado sem instrução religiosa. Fez os estudos secundários em Olmutz e interessou-se sobretudo pela Matemática e pelas Ciências Naturais. Em 1876, começou a frequentar a universidade de Leipzig, no intuito de se dedicar a Astronomia. Como esta disciplina exigia um aprofundamento da Matemática, resolveu continuar os estudos na universidade de Berlim, onde ensinavam os mais afamados matemáticos da época. Em 1891 é já Viena a sua cidade universitária; aqui se doutorou em Ciências Matemáticas, com a tese Contribuições para o cálculo das variações (Beiträge zur Variationsrechnung), apresentada em 1882, mas que não chegou a publicar. A seguir, foi novamente para Berlim, como assistente do matemático K. Weierstrass. A preocupação de fundamentar a Matemática levou-o a aprofundar a Filosofia, e voltou a Viena onde, durante dois anos (1884-1886), foi aluno de F. Brentano. Por esta altura, recebeu o batismo, numa igreja luterana.
O contato com Brentano marcou nele uma fase nova e decisiva:
Entusiasmado pela Filosofia, resolveu dedicar-se exclusivamente a ela, mas no impulso veemente de lhe encontrar uma fundamentação, capaz de sustentar também todas as outras ciências. Por conselho de Brentano, foi para a universidade de Halle, como assistente do psicólogo Karl Stumpf, e apresentou, em 1887, o trabalho de «habilitação» (concurso), Sobre o conceito de número (Über den Begriff der Zahl). As ideias deste opúsculo desenvolveu-as, numa obra mais ampla, Filosofia da Aritmética (Philosophie der Arithmctik), da qual só escreveu a I parte, publicada em 1891. A partir deste momento, começou Husserl a desiludir-se da eficácia do psicologismo, que pretendia fundamentar a Lógica e a Filosofia na Psicologia Experimental, e pelo qual, até então, se deixara iludir. A ruptura com o psicologismo é marcada por uma das suas obras mais fundamentais. Investigações lógicas (Logische Untersuchungen), publicada em 2 volumes, respectivamente nos anos de 1900 e 1901 (na 2a edição, um pouco remodelaria por Husserl, cujo 1 vol. apareceu em 1913, o II vol. saiu dividido em dois). Em 1906 foi nomeado catedrático de Filosofia em Göttingen. Aqui começa uma nova fase, no desenvolvimento da sua fenomenologia, determinada por um curso dado em 1907 e publicado pòstumamente, em 1950, com o título: A ideia da fenomenologia (Die Idee der Phanomenologie). Esta ideia domina já um artigo, publicado cm 191 1, na revista «Logos», intitulado Filosofia como ciência de rigor (Philosophie als strenge Wissenschaft), de que possuímos uma tradução portuguesa (Filosofia como ciência de rigor, trad. de A. BEAU, Atlântida, Coimbra, 1052). Um desenvolvimento amplo é apresentado na obra mais importante: Ideias para uma fenomenologia pura e uma Filosofia fenomenológica (Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie), cujo I volume apareceu em 1913 1. Em 1916, foi Husserl transferido para Friburgo, na Alemanha. Aqui publicou, em 1929, uma obra importante, Lógica formal e transcendental (Formale und transzendentale Logik), em que o impulso fundamentador das Investigações lógicas é retomado num nível superior, em conformidade com o desenvolvimento da fenomenologia. A esta obra está particularmente ligada outra, publicada só postumamente, em 1939, e redigida, em grande parte, pêlo seu assistente, L. Landgrebe, Experiência e juízo (Erfahrung und Urteil). Aposentado em 1928, sucedeu-lhe, na cadeira de Filosofia, M. Heidegger, seu antigo discípulo. Em 1929, deu em Paris duas célebres conferências, cujo desenvolvimento originou uma das mais conhecidas obras de Husserl, Meditações cartesianas (Cartesianische Meditationen), publicada primeiro em tradução francesa, em 1931, e, no original alemão, só depois da morte do autor, em 1950. Dedicou-se, em seguida, a uma nova revisão e sistematização do seu pensamento, elaborando a obra A crise das ciências europeias e a Fenomenologia transcendental (Die Krisis der Europaischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie), da qual, em vida, só publicou a I parte, em 1936; em 1954 foi editado o manuscrito na íntegra. Husserl trabalhava ainda nela quando faleceu, em Friburgo, a 26 de Abril de 1938.
O seu estilo é, em geral, difuso e implicado, através das inúmeras obras, por muitas repetições. Revela, no entanto, grande impulso de rigor e seriedade, aliado a uma notável penetração analítica. Na sua vida particular, Husserl foi crente e honesto. Sobretudo nos últimos anos, mostrou particular simpatia pela Igreja católica, na qual contudo não chegou a entrar oficialmente. Sua esposa veio depois a converter-se ao catolicismo.
2. — Fim em vista: — Numa época em que Marx se impressionava sobretudo pela miséria social, Husserl, mais intelectualista, ficou admirado perante a miséria intelectual, manifestada pela diversidade de opiniões, em especial no campo da Filosofia. O seu grande ideal foi o da fundamentação radical de todas as ciências para o quê se impunha, em primeiro lugar, estabelecer um fundamento capaz de elevar a Filosofia à dignidade de «ciência no sentido rigoroso». O impulso é de inspiração nitidamente cartesiana, como reconhece o próprio Husserl; mas o modo de realização pretende efetuá-lo com maior radicalismo, para que o triunfo fique garantido: «Desenvolveremos as nossas meditações dum modo cartesiano, como filósofos que principiam pelos fundamentos mais radicais; procederemos, naturalmente, com uma prudência muito mais crítica e prontos a introduzir qualquer modificação no antigo cartesianismo. Teremos também que esclarecer e evitar certos erros aliciantes em que caíram Descartes e os seus continuadores» 2.
Fundamentação
3. — Características da verdadeira fundamentação: — Podemos compendiá-las nas exigências seguintes:
1) Deve ser «a priori», isto é, independente da experiência, uma vez que a Filosofia, que se pretende fundamentar, é uma ciência teorética e absoluta que prescinde da experiência, ou dos fatos, sempre contingentes. Este caráter «a priori» tem de ser ainda mais radical do que o «ego cogito» de Descartes. Veremos, no decurso do desenvolvimento, o grau de depuração a que Husserl pretendeu elevá-lo.
2) Esta aprioridade implica, desde já, uma plena ausência de pressupostos. Temos que proceder com inteira liberdade, sem nos deixarmos influenciar por qualquer opinião dominante, quer científica, quer filosófica, para nos orientarmos exclusivamente pelas coisas: «Não é das filosofias que deve partir o impulso da investigação, mas sim das coisas e dos problemas» 3. O apelo às «coisas», pelas quais temos que nos orientar exclusivamente, é um dos pontos em que Husserl mais insiste, e há de determinar o radicalismo absoluto a que chegou.
3) Finalmente, o fundamento radical tem que ser evidente por si mesmo: «É patente que eu, em consequência de ser um filósofo que pretende começar pelos fundamentos, …. não posso admitir ou ter como válido nenhum juízo se o não haurir da evidência» 4. Esta evidência não pode ser qualquer: Não basta que exclua praticamente a dúvida; tem de a excluir dum modo absoluto, ou seja, deve ser uma «evidência apodíctica». Tal evidência é, ao mesmo tempo, auto-justificativa, como se exige num fundamento sem fundamento, pois possui um caráter imediato e plenamente reflexo. Este caráter, que domina todo o impulso fundamentador de Husserl, é designada por uma palavra de difícil tradução, Selbstbesinnung, que é uma «auto-reflexão» radical, plenamente esclarecedora do «sentido» (Sinn) da coisa.
4. — Psicologismo e anti-psicologismo: — As ciências experimentais atingiram, na última metade do século XIX, um apogeu que provocou entusiasmo geral. Entre elas, começou a atrair a atenção a Psicologia Experimental que, devido ao seu método de reflexão introspectiva, naturalmente se propunha também à particular consideração dos que se dedicavam à Filosofia. O próprio Brentano, professor de Husserl, desenvolvia o seu pensamento profundamente influenciado pela Psicologia Experimental. Husserl, com muitos outros pensadores da época, começou a ver nela o fundamento radical da Matemática, da Lógica, da Filosofia e de todas as ciências. Foi nesta orientação que escreveu a Filosofia da Aritmética: «Partira da convicção dominante de que tanto a Lógica em geral, como a Lógica das ciências dedutivas deveriam esperar a sua clarificação filosófica da Psicologia» 5. Com efeito, qualquer ciência, mesmo puramente teorética, implica sempre uma atividade psíquica, de que se ocupa precisamente a Psicologia.
Mas, já enquanto escrevia a Filosofia da Aritmética, notou Husserl que uma ciência experimental nunca poderia satisfazer às condições teoréticas duma fundamentação radical. O I volume das Investigações lógicas ê uma crítica cerrada do psicologismo e exerceu, no ambiente filosófico da época, um influxo decisivo. Husserl chama a atenção para a diversidade entre «ato» e «conteúdo do ato», descurada pelos psicologistas: Não pode haver um «conteúdo do ato» sem um «ato»; daqui porém não se segue que as leis de um sejam as leis do outro. Para que a Psicologia Experimental fosse a ciência absolutamente fundamentadora, teríamos que reger o «conteúdo», que encerra o elemento ideal ou teorético, pelas leis que regulam o «ato». Neste caso, a verdade, que se refere ao «conteúdo», ficaria dependente do processo psicológico, que se refere ao «ato», e seríamos inevitavelmente levados a um puro subjetivismo e relativismo da verdade. Ora esta é, por sua natureza, objetiva e absoluta.
Husserl continua a sua argumentação afirmando que se dá precisamente o contrário: As ciências práticas e empíricas é que dependem das teoréticas ou racionais, e não vice-versa. O «ato» depende pois das leis do «conteúdo», como o funcionamento duma máquina de calcular tem de estar em conformidade com as leis fundamentais da matemática, embora a sua estrutura, e portanto as leis mecânicas que regulam o seu funcionamento, devam variar com os diferentes modelos de máquina. A conclusão inevitável é esta! A ciência radicalmente fundamentadora só pode estar do lado do «conteúdo», isto é, tem de ser independente da experiência e de caráter puramente teorético ou racional.
A ciência racional por excelência é a Lógica (lagos significa «razão»). É portanto no âmbito da Lógica que reside o último fundamento. É apenas neste sentido que Husserl se pode dizer um «logicista». A Lógica absolutamente fundamentadora não é porém uma Lógica meramente normativa ou regulativa da retidão do pensamento. Tal função, segundo Husserl, nem é especificamente determinativa da Lógica como tal, embora lhe pertença também. A «Lógica da contradição» postula uma «Lógica da verdade», mais profunda e radical. É no domínio desta última que se manifesta o impulso reflexo de evidenciação que nos põe em contato com as «coisas», de modo que aquilo que se vê não possa ser de outra maneira. Este impulso lógico equivale à Selbstbesinnung de que já falamos; será cada vez mais racionalizado, ou radicalizado, à medida que Husserl, na sua evolução filosófica, for depurando também as exigências de fundamentação que o levaram ao estabelecimento da fenomenologia.
5. — Evidência apodíctica: — A depuração do impulso fundamentador de Husserl foi orientada pela busca das «evidências apodícticas». Por isso, torna-se imprescindível referirmo-nos a este assunto, dum modo mais pormenorizado.
l) Noção de evidência: lista noção está relacionada com os conceitos de «intenção» e «intuição». Existe apenas uma «intenção significativa» (Bedeutungsintention), quando «significamos intencionalmente» (meinen) o objeto, sem considerar ainda a sua presença, por exemplo, se temos só em conta o conteúdo significativo de um prado. Esta «intenção» pode ser preenchida pela presença do objeto, por exemplo, se nos colocamos diante do prado; neste caso temos uma «intuição». A intuição é portanto o preenchimento duma intenção. A evidência é a consciência da intuição. Mas como «evidência» e «intuição» mutuamente se implicam, Husserl usa, na prática, indiferentemente as duas palavras.
2) Espécies de evidência: — Husserl diversifica fundamentalmente a evidência não a partir do sujeito, mas do objeto. Os objetos podem ser sensíveis, categoriais e universais; temos assim três modos fundamentais de evidência.
O «objeto sensível» é uma singularidade empírica, por exemplo, o prado que está diante de mim, e determina a intuição sensível.
O «objeto categorial» é, primariamente, aquilo que se afirma (kategoréo significa «afirmar»). Corresponde, portanto, ao conteúdo do juízo. Por exemplo, na afirmação: «o prado está florido», o objeto categorial é «o fato de o prado estar florido». Por certa extensão, consideram-se também como «categoriais» os objetos que admitem qualquer aspecto supra-sensível ou ideal. Os «objetos categoriais» determinam a intuição categorial, típica na filosofia de Husserl e pela qual se supera claramente a tendência empirista que reduzia todos os nossos conhecimentos a imagens.
Finalmente, os «objetos universais», também denominados «essências» (Wesen) e «eidos» (eidos), correspondem aos vulgarmente chamados «conceitos universais» que se verificam invariavelmente em diferentes indivíduos. Tais objetos determinam a intuição eidética, ou ideação. Como aqui se intromete certo aspecto metempírico, a «ideação» é também sempre uma «intuição categorial», no sentido mais lato, a que nos referimos.
Qualquer destes objetos pode ainda ser apreendido dum modo imediato, ou seja, com a presença do objeto por si mesmo, ou «na sua mesma corporeidade» (leibhaft), — e de um modo indireto, isto é, por meio de uma imagem ou recordação. Só no primeiro caso temos uma «intuição originária», chamada também «percepção» (Wahrnehnumg) no sentido estrito. Este pormenor reveste importância peculiar na filosofia de Husserl, pois é claro que a evidência primordial e radicalmente fundamentadora tem de ser uma «percepção».
3) Graus de evidência: — Nas suas diferentes modalidades especificativas, a evidência pode ainda ser mais ou menos perfeita. Admite portanto graus que Husserl não deixou de esclarecer, para se orientar, no seu impulso fundamentador, pelo mais perfeito de todos.
Sendo a intuição o preenchimento da intenção, será mais ou menos perfeitamente evidente, segundo a plenitude do preenchimento. Assim, quando uma esfera está presente, o objeto pensado intencionalmente é a «esfera». Mas nem todos os elementos desta intenção se encontram preenchidos, pois não podemos observar mais que a metade exterior da esfera. Isto acontece com todos os objetos externos: «As partes do reverso invisível, do interior, etc, estio, sem dúvida, significadas, dum modo mais ou menos determinado, pois estão simbolicamente indicadas através do que aparece primariamente, mas elas mesmas não pertencem ao conteúdo intuitivo (perceptivo ou imaginativo) da percepção» 6. O objeto pode atingir-se também dum modo mais ou menos claro, conforme a distância, luminosidade, etc. Dum modo geral, a riqueza do preenchimento varia segundo há mais ou menos elementos meramente imaginativos a suprir o aparecimento imediato do objeto ou de qualquer aspecto dele. O supremo grau de intuição só se verificaria na plena adequação entre intencionado e intuído; teríamos então, no sentido perfeitamente rigoroso, uma evidência apodíctica.
Husserl reconhece que esta adequação plena é um estado-limite que de fato nunca se atinge. Mas o filósofo deve procurar, pelo menos, conseguir aquela adequação que lhe mostre, como absolutamente excluída, a possibilidade do contraditório daquilo de que tem evidência. Só deste modo se atingirá um fundamento que não poderá deixar de ser considerado como primordial.
A grande preocupação de Husserl, sempre insatisfeito na ânsia duma evidência cada vez mais plena, será levar-nos a uma atitude em que a adequação de que se falou seja o mais plena possível, para que se comece por um fundamento de consistência insofismável. Tal é a razão da sua fenomenologia.
6. — Noção geral de fenomenologia: — A palavra «fenômeno» (aquilo que aparece; pháinomai significa «aparecer», «brilhar») foi usada na linguagem filosófica já desde Platão e Aristóteles. No decurso da História da Filosofia adquiriu um sentido cada vez mais subjetivo. Em Husserl, desliga-se inteiramente da relação a qualquer objeto exterior à consciência, para se referir ao puro objeto imanente enquanto aparece na consciência.
A palavra «fenomenologia» c de formação mais recente. Parece ter sido usada, pela primeira vez, só cm 176,1, por Lambert que tratou da «fenomenologia, ou doutrina da aparência» 7. Foi depois usada por Kant, e sobretudo por Hegel, mas sempre num sentido diferente daquele que lhe deu Husserl. Como indica a terminação, derivada da palavra lógos (descrição, razão), a «fenomenologia» descreve, ou dá a razão íntima do fenômeno. Em Husserl, adquiriu um sentido peculiar, que a seguir determinaremos, correspondente à sua característica noção de «fenômeno». A fenomenologia husserliana pretende pôr-nos em contato com esses «fenômenos», que são as «coisas» enquanto imediatamente conscientes, e levar-nos portanto à evidência primordial, como se exige numa ciência absolutamente fundamentadora, Para Husserl, «a fenomenologia é também e principalmente um método e uma atitude (Denkhaltung): a atitude especificamente filosófica, o método especificamente filosófico» 8. Temos assim naturalmente indicadas duas partes: A primeira refere-se à elaboração da fenomenologia que determina a «atitude filosófica»; a segunda esclarecerá o caráter metodológico da fenomenologia.
7. — A elaboração da fenomenologia: — Através duma depuração rigorosa de tudo o que não oferecer as garantias suficientes duma evidência apodíctica, Husserl leva-nos ao «objeto» enquanto meramente consciente, acerca do qual não poderá existir dúvida alguma. Este objeto é o «fenômeno puro», constituído na consciência pura intersubjetiva. Sigamo-lo, resumidamente, nesta elevação.
1) Epoché ( èpoché ) e redução: — Espontaneamente vivemos na «atitude natural» (naturliche Einstellung), em que consideramos as coisas como exteriores, e portanto o mundo como existente em si, independentemente da consciência. Ora estas coisas do mundo nunca se apresentam com evidência apodíctica: É sempre através dum complexo sucessivo de aparências ou «perspectivas» (Abschattungen) que chegamos à conclusão da existência das coisas exteriores. Dá-se, sem dúvida, uma admirável convergência dessas «perspectivas» que nos leva a acreditar na existência exterior e a tê-la, praticamente como certa. Mas o filósofo não pode contentar-se com certezas práticas; busca certezas absolutas, garantidas por uma «evidencia apodíctica». Ora, quem nos garante apodicticamente a existência exterior das coisas, uma vez que estas se atingem sempre dum modo inadequado? Quantas vezes nos vemos na necessidade de corrigir aquilo que, à base de experiências anteriores, considerávamos como certo!
Há qualquer coisa mais evidente do que o objeto exterior: É a própria consciência do objeto exterior. Esta impõe-se apodicticamente: é certa ainda mesmo que tal objeto não exista, ainda mesmo na hipótese de Deus aniquilar tudo o que é exterior. Portanto, o começo absoluto tem que estar no objeto enquanto consciente. Em relação às coisas enquanto existentes exteriormente, o filósofo deve «suspender» o seu juízo.
Tal «suspensão» designou-a Husserl pela equivalente palavra grega, «epoché» (èpoché). Os antigos pirrônicos usaram-na também corno fundamento do cepticismo que defenderam. Husserl, porém, de modo nenhum quer aderir ao cepticismo. Não pretende duvidar de nada. Praticando a «epoché», não se põe em questão o mundo exterior, mas apenas se «reduz» à consciência, para assim ser possível começar por aquilo que é insofismável. Nada se perde; «apenas se trata duma modificação: permanecendo (a tese do mundo) em si mesma o que é, colocamo-la, no entanto, ‘fora de ação’, ‘fora de circuito’, ‘entre parênteses’ » 9.
Temos assim, por um lado, a realidade transcendente que corresponde às coisas enquanto existentes fora ou para além da consciência; por outro lado, a realidade transcendental que se aplica às «coisas», enquanto reduzidas à consciência. Ambos os mundos são reais (wirklich), porque nenhum deles é ilusório. O primeiro é porém real (real) num sentido «natural», ou meramente prático, que não interessa ao filósofo; o segundo é «real» (reell) num sentido primordial e apodíctico.
2) Redução psicológica e redução transcendental: — A «redução» à consciência operou-a Husserl através duma série de «epochés» cada vez mais radicais, na qual podemos distinguir duas fases fundamentais.
Temos, primeiramente, uma redução psicológica pela qual «suspendemos» o juízo relativamente à existência de tudo o que é exterior ao sujeito: Coisas e pessoas, seres materiais e imateriais, sem excluir o próprio Deus. Fica apenas em consideração o próprio sujeito cognoscente com os seus atos conscientes. Até aqui, segundo opinião do mesmo Husserl, chegara também Descartes que, praticando a «dúvida metódica», atingiu o ego cogito, o sujeito na sua atualidade pensante. É preciso, porém, ser mais radical.
Husserl exige, por isso, uma redução transcendental. Na «redução psicológica» não se põe ainda «entre parênteses» a existência «natural» ou «mundana» do eu nem dos seus atos, ou «vivências» (Erlebnis) que conservam um caráter psicológico. Precisamos de atingir a «consciência transcendental», a «consciência pura», pondo «entre parênteses», ou praticando a «epoché» relativamente a essas existências psicológicas: A fenomenologia «põe fora de circuito á realidade da natureza, mesmo a realidade do céu e da terra, dos homens e dos animais, do próprio eu e do eu alheio, mas retém, por assim dizer, a alma, o sentido de tudo isso» 10.
Na «consciência puta» ou «transcendental», à que nos elevamos por esta «redução transcendental», as vivências perdem inteiramente o seu caráter psicológico e existencial para conservarem apenas a relação pura do sujeito plenamente purificado ao objetivo enquanto consciente, que é o objeto meramente significado. O «eu», assim depurado, adquire um novo estado, caraterístico do filósofo que pretende começar pelo que há de mais primordial. Este estado é designado como ((atitude fenomenológica», ou «transcendental», em oposição à «atitude natural». O «eu puro» apresenta-se nela como um «espectador desinteressado», ou «imparcial», apto a apreender, sem perigo de erro, todo o que se lhe apresentar como «fenômeno» da consciência.
Descartes chegara ao ego cogito, mas não entrara nele, porque não operou a «redução transcendental». Por isso, teve que deduzir tudo o mais a partir da realidade natural do eu. Husserl explorará as riquezas insondáveis deste «eu puro», só inteligível na explicitação do seu conteúdo interno. O fundamento inicial será portanto não apenas o ego cogito, mas o ego cogito cogitatum.
3) Objeto intencional: — O processo caracteristicamente descritivo da fenomenologia aplica-o Husserl a uma investigação analítica da «consciência pura», na qual e pela qual se «constitui» o objeto enquanto pensado, que é o «fenômeno puro», no sentido plenamente rigoroso. Esta «constituição» é um complemento necessariamente implicado na «redução transcendental»: «A fenomenologia transcendental é fenomenologia da consciência constituinte 11.
Como fundo, ou elementos primordiais, nesta «constituição» e designação do objeto, temos os «elementos materiais», ou «hiléticos» (hyle significa «matéria»), que correspondem aos «dados sensíveis», e são, por exemplo, a cor e a dureza. Estes apresentam-se numa sequência temporal e segundo diferentes «perspectivas». O tempo exerce portanto uma primeira síntese unificadora. Mas esta unificação só pode efetuar-se mediante um novo elemento unificante da própria dispersão temporal. Tal elemento é o «eu puro». Husserl não viu, logo de início, a exigência desta identidade subjetiva. Na primeira edição das Investigações lógicas julgava ainda poder prescindir dela. Depois, mudou decididamente esta opinião que corrigiu também na segunda edição da obra citada. Tornou-se mesmo um defensor intransigente do «eu puro» come sujeito idêntico. Sem este elemento, a sua fenomenologia teria, sem dúvida, adquirido um sentido e desenvolvimento essencialmente diverso. O «eu puro» é intemporal através da temporalidade e, por isso, identicamente pressente a cada momento do fluxo de consciência que assim se unifica num «presente vivo», no qual e pelo qual se manifesta a identidade do objeto.
Em ordem a esta manifestação, requer-se ainda um «elemento formal» que confira à consciência precisamente o sentido do objeto. Esse elemento é a «intencionalidade», conceito que Husserl tomou de Brentano e este da Filosofia Escolástica. Husserl dá-lhe porem uma modalidade característica, restringindo-o no âmbito da «consciência transcendental».
A «intencionalidade» parte do «eu» e invade temporalmente os «dados materiais», em ordem à designação do objeto enquanto meramente consciente, ou significado. Informando os «dados materiais», dá origem, em união com eles, à vivência subjetivamente considerada a que Husserl chama «nóesis» (noesis; noeo significa «compreender», «ter um sentido»). A «nóesis» é o elemento «real» (reell) da vivência. Informando os «dados materiais», projeta-os também, em ordem à designação do objeto, e origina a vivência objetivamente orientada, a que Husserl chama «nóema» (noema). O «nóema» é o elemento «irreal» (irreell), ou «intencional» da vivência. Não é, porém, ainda o «objeto intencional»; encerra apenas o sentido dele: «Cada nóema tem um ‘conteúdo’, ou seja, o seu ‘sentido’, através do qual se relaciona com o ‘seu’ objeto» 12.
No «nóema» há também elementos que acompanham apenas os especificamente designativos, por exemplo, o fato de um objeto ser imaginado ou recordado, e mesmo a «crença» espontânea da sua existência exterior: São os chamados «caracteres noemáticos».
Os elementos especificamente designativos formam uma parte central do «nóema»,— o «núcleo noemático»; ou «sentido objetivo»; é neles, e por eles que o objeto se encontra significado como objeto consciente. Este núcleo varia continuamente através da sucessão temporal e das diferentes «perspectivas», e pode, apesar de tudo, designar o mesmo objeto. O «objeto intencional» está, portanto, no prolongamento do «sentido objetivo» e, por isso, transcende, em certo modo, a vivência, num pólo oposto ao «eu puro». Esta «transcendência» efetua-se, porém, na imanência. O «objeto intencional» difere portanto do objeto existente em si, exteriormente à consciência. De «evidência apodíctica» é só a consciência do objeto, que brota da apreensão imediata do «sentido noemático». A existência exterior do objeto foi precisamente o que se pôs «entre parênteses»; não se duvida dela, mas também não se considera filosoficamente.
Husserl chegou assim, como ele mesmo se exprime, a um «idealismo» transcendental fenomenológico». Este «idealismo» mantém-se, contudo, apenas na «atitude transcendental». Na «atitude natural», a realidade é concebida como existente em si, independentemente da consciência: «É evidente que o mundo é o que é, em si e por si, quer vivamos ou morramos, quer conheçamos ou não» 13. Mesmo na «atitude transcendental», «o idealismo fenomenológico não nega a verdadeira existência do mundo real» 14. Não se trata portanto de um idealismo real, à maneira de Berkeley, como se o mundo exterior ficasse reduzido a uma «ilusão subjetiva». É antes um idealismo metódico: «Por uma razão de método…. tomamos como norma a redução fenomenológica» 15. A realidade exterior apenas deixa de se ter em conta e considera-se a sua mera significação imanente, para não ultrapassar os limites do que se impõe com «evidência apodíctica». Podemos dizer que se trata antes duma idealização, pois se considera o aspecto meramente ideal da realidade conhecida. E este aspecto coincide com o «objeto intencional» da fenomenologia de Husserl.
4) Intersubjetividade — Atingida esta depuração «transcendental», um problema inquietou ainda o espírito insatisfeito de Husserl: Oferece a «evidência apodíctica», determinada pela presença do «objeto intencional», uma garantia absoluta. Por outras palavras: Porque motivo essa evidência fundamental é válida não só para um indivíduo que conhece, mas para qualquer sujeito cognoscente? Só neste último caso adquire uma validez absoluta, e portanto objetiva, no sentido mais rigoroso. Um conhecimento objetivo tem de ser inevitavelmente inter-subjetivo. Deste modo, Husserl viu-se na necessidade de tratar da questão do «outro-eu» e da constituição do objeto para uma pluralidade de sujeitos.
Quando a objetividade se fundamenta pela relação a um objeto exteriormente imposto, basta provar esta imposição como necessária, independentemente das condições individuais do sujeito, para garantir a sua validez. Mas se o objeto se considera como meramente significado, depende, como tal, apenas da atividade do sujeito. O único modo de garantir o seu caráter absolutamente válido é esclarecer que o conhecimento dele não é, apesar de tudo, meramente subjetivo, mas necessariamente intersubjetivo. Assim fica afastada a hipótese duma anomalia individual.
Ora, segundo Husserl, graças a uma espécie de sentimento interior, ou «intropatia» (Einfuhlung), constituem-se, na consciência transcendental, outros eus, como sujeitos cognoscentes, idênticos a mim mesmo. O sujeito fenomenológico eleva-se então a um grau superior, apresentando-se como um entre muitos. Atinge-se assim uma espécie de «nós transcendental», e é para esta pluralidade que o sujeito individual cognoscente apreende o objeto como válido. O «objeto intencional», constituído intersubjetivamente, é, para Husserl, o «fenômeno» no seu pleno grau de «evidência apodícta». Chegou-se à clarificação máxima que nos é possível obter, onde não falta nem clareza pela visão do objeto imediatamente presente à consciência, nem objetividade pela sua validez geral para uma multidão de sujeitos, a que se confere caráter absoluto.
8. — O caráter metodológico da fenomenologia: — A atitude reflexiva a que Husserl pretendeu elevar-nos com a elaboração da sua fenomenologia, que culmina na consciência transcendental intersubjectiva, deve invadir o desenvolvimento filosófico e o de todas as ciências, para que estas adquiram uma consolidação insofismável. É sob este aspecto que se apresenta o caráter metodológico da fenomenologia, o qual reveste duas modalidades.
Em primeiro lugar, a fenomenologia é um método de evidenciarão, O apelo à evidência foi sempre de todos os filósofos. Mas só Husserl pretendeu fundar uma ciência destinada a colocar o filósofo numa atitude reflexiva de evidenciação, pondo «entre parênteses», dum modo radical, tudo o que não tivesse a transparência da própria presença do objeto, enquanto meramente pensado. Neste sentido, o «método fenomenológico» adquire um interesse especificamente filosófico e husserliano. A fenomenologia, assim concebida, foi designada por Husserl como «Filosofia primeira», ou ciência primordialmente fundamentadora. É o resultado imediato do esforço de Husserl, na elaboração da fenomenologia.
Em segundo lugar, a fenomenologia é um método descritivo. Uma vez atingida essa atitude reflexa, o filósofo, e o cientista em geral, só têm que contemplar e descrever aquilo que se lhes depara na consciência transcendentalmente pura. Nesta acepção, a fenomenologia é, para Husserl, uma «disciplina puramente descritiva que explora, pela intuição pura, o campo da consciência transcendentalmente pura» 16.
A dedução não é inteiramente rejeitada, mas desempenha apenas um papel acessório enquanto pode contribuir para colocar o fenomenólogo na presença intuitiva do objeto. O método fenomenológico, neste segunda modalidade a que nos referimos, é, porém, de si, rigorosamente analítico. Enquanto Descartes investiga o que se conclui do cogito, Husserl pretende exclusivamente levar-nos a averiguar o que nele se inclui: «Ao contrário de Descartes, nós dedicamo-nos à exploração do campo infinito da experiência transcendental» 17.
Este método descritivo apresenta-se como um complemento necessário da atitude de evidenciação, no decurso do desenvolvimento da Filosofia e das Ciências. Substituí-lo pela dedução, seria renunciar à «evidência apodíctica» que, por sua mesma natureza, tem de ser imediata. Na mente de Husserl, não fecha inevitavelmente o acesso às verdades metempíricas, pois o «fenômeno» husserliano estende-se também para além do objeto meramente sensível. Mas é inegável o perigo duma restrição a este nível.
O caráter descritivo do método fenomenológico, ao contrário do método de evidenciação, não é exclusivamente filosófico, pois pode usar-se fora deste âmbito, nem tipicamente husserliano. A descrição analítico-reflexiva foi de todos os tempos, dum modo mais ou menos acentuado. Mas Husserl insistiu particularmente neste processo analítico e ninguém se lembrou, antes dele, de o elevar ao plano da «atitude transcendental».
9. — Conclusão: — Com a sua fenomenologia quis Husserl estabelecer o fundamento radical da Filosofia e de todo o saber humano. Internado na «atitude fenomenológica» ou «transcendental», que é uma certa mentalidade crítico-reflexiva, deverá o filósofo, e o cultor das ciências em geral, desenvolver fenomenologicamente a Filosofia e qualquer disciplina científica. Este trabalho deixou-o Husserl à posteridade. A elaboração da fenomenologia é já, sem dúvida, uma Filosofia, mas não é, evidentemente, toda a Filosofia. A Lógica conseguiu Husserl interná-la no próprio impulso fundamentador, de tal maneira que «Lógica pura» e «fenomenologia pura» vieram, praticamente, a identificar-se. A Ética foi uma disciplina filosófica que o preocupou já antes de escrever as Investigações lógicas e sobre a qual deu, pelo menos, 16 cursos, entre 1891 e 1924. Contudo, nas suas obras publicadas refere-se a ela poucas vezes e muito de passagem 18. Não sem certo humor, declarava em 1930, com mais de 70 anos, que «se lhe fosse concedida a idade de Matusalém», poderia ainda aspirar à elaboração duma Filosofia e tornar-se assim verdadeiro «filósofo». Mas teve de se contentar com ser apenas um contínuo «principiante», vendo, apesar de tudo, «diante de si estendida a ‘terra prometida’, a terra da verdadeira Filosofia» 19.
Husserl teve, de fato, muitos entusiastas do método fenomenológico; nenhum, porém, integralmente na linha por ele traçada. É que a elaboração da sua fenomenologia e, consequentemente, o método fenomenológico de evidenciação, está longe de se impor com a evidência que ele mesmo exigia. Daqui a sua preocupação inquietante em repisar as suas ideias, numa insatisfação contínua até a morte. Nem deixou de experimentar a pungente desilusão de quem vê frustrado o ideal mais querido: «Filosofia como ciência, como ciência séria, rigorosa, apodicticamente rigorosa — sonho que se desfez» 20, Podemos dizer que foi vítima da sua mesma ânsia de evidenciação que o levou a um exagero radical, equivalente a uma falta de radicalismo. Pôr tudo rigorosamente «entre parênteses», a fim de parar na mera significação, equivale a afirmar que se significa, ultimamente, aquilo que não existe, e portanto aquilo que não se pode significar. Husserl exigiu o «nóema» para explicar o sentido do «objeto intencional»; porque não exige, com igual direito, o objeto exterior existente em si para justificar o próprio «nóema»? De outro modo, qualquer coisa fica por fundamentar, no impulso husserliano de fundamentação: os «elementos materiais», necessários como determinantes específicos do «nóema».
A «atitude natural» tem de ser, sem dúvida, elevada a um estado de eliminação de todos os preconceitos e depurada numa séria crítica reflexiva; mas não tanto que se suprima a base essencial da reflexão humana que é a existência exterior à mesma consciência reflexa. Assim concebida, a «atitude natural» não é «ingênua», mas verdadeiramente «científica» e, como tal, exigência concreta duma última fundamentação rigorosa. Os inconvenientes da «atitude transcendental» foram já salientados por Heidegger ao próprio Husserl, quando, em nota ao artigo fenomenologia, escrito por Husserl para a «Encyclopaedia Britanica», frisava a incompreensão do «eu absoluto», resultado da «epoché» radical, e diferente do «eu fáctico», ou «antural», ainda não reduzido 21. Outro discípulo de Husserl, N. Hartmann, reconheceu também a necessidade de depurar a fenomenologia do «idealismo transcendental» 22. O método husserliano de evidenciação, que obrigava o filósofo, e o cientista em geral, a manter-se na «atitude transcendental», não encontrou seguidores que o prolongassem em ordem à elaboração duma «Filosofia rigorosa» e de um sistema científico plenamente fundamentado, como Husserl ambicionava.
Pelo contrário, a fenomenologia como método «descritivo» teve ampla aplicação, sobretudo no âmbito da Psicologia 23, e foi adotada por quase todos os filósofos que se costumam enquadrar na corrente existencialista 24. Se Kierkegaard sugeriu ao Existencialismo muitos dos seus temas prediletos, Husserl forneceu-lhe o processo de desenvolvimento. Uma Filosofia do concreto devia naturalmente simpatizar com um método de exposição analítico-reflexivo. Mas também não deixou de se manifestar, nesta aplicação, o perigo da fenomenologia descritiva, já anteriormente salientado: Muitos destes filósofos não chegaram a ultrapassar o âmbito do ser imediatamente conhecido, circunscrito aos limites do espaço e do tempo, encerrando-se num plano meramente finito. Jaspers e Marcel sentiram mesmo a necessidade de renunciar à fenomenologia, pelo menos na medida em que pretenderam estender as reflexões filosóficas a uma implicação do Infinito no finito.
Não foi só o método descritivo, ou analítico-reflexivo, que encontrou amplo acolhimento. O impulso de evidenciação e seriedade, deixado por Husserl, influenciou profundamente a mentalidade filosófica posterior. Dele brotou, em grande parte, um ambiente de maior respeito e compreensão mútua entre as diversas correntes filosóficas e, particularmente, entre escolásticos e não escolásticos.
O apelo filosófico, lançado nas Investigações lógicas, conseguiu não só destronar o Psicologismo, que pretendia colocar a Filosofia ao nível das ciências experimentais, mas, sobretudo, orientar o pensamento contemporâneo numa direção preponderantemente realista. Este último aspecto não está diretamente em conformidade com a mente de Husserl, no ulterior desenvolvimento da fenomenologia; mas é uma consequência lógica do mesmo impulso de evidenciação e sinceridade que, até a morte, acompanhou as suas reflexões filosóficas. Apresenta-se, assim, Husserl como um autor fundamental que marca um ponto decisivo no decurso da História da Filosofia.
- Os dois volumes seguintes, o último dos quais foi alterado por Husserl em relação ao plano primitivo, saíram postumamente, em 1952, na série das Obras completas, «Husserliana», a cargo dos «Arquivos de Husserl em Lovaina» e editada pela livraria M. Nijhoff, de Haia.[↩]
- Cart. Medit., «Husserliana» I, Haia, 1950, § 2, p. 48.[↩]
- Fil. como ciência de rigor, p. 72[↩]
- Cart. Medit., § 5, p. 55.[↩]
- Log. Unters., I, prol., Halle, 1922, p. VI[↩]
- Ib., III, Halle, 1921, 5 14, p. 56[↩]
- Phänomenologie, oder Lehre des Scheins) (A. LALANDE, Vocabulaire de la Philo., Paris, 1951, pp. 768-769)[↩]
- Idee der Phän., «Husserlinnn» II, Haia, 1950, p. 23[↩]
- Ideen I, «Husserlinna» III. Haia, 1950, § 51, p. 65[↩]
- Ms. F I 17, Idee der Phän. und ihre Methode (curso dado cm Göttingen em 1909), pp. 75.76.[↩]
- Ms. B II 1, p. 25a, cit. por W. BIEMEL, Hasserls Encycl.-Britanica Artikel, em “Tijdschrift voor Philosophie», Lovaina, 12 (1950) 263[↩]
- Ideen I, 5 § 129, p. 516[↩]
- Kant und die Idee de Transzendentalphän., «Husserliana» VII, Haia, 1956. p. 245.[↩]
- Nachwort, «Husserliana» V, Haia, 1952, p. 152[↩]
- Ideen I, § 64, p. 152[↩]
- Ib., § 59, p. 141[↩]
- Cart. Medit, § 13, p. 69[↩]
- Entre os manuscritos de Husserl, sobretudo na secção F, encontram-se muitos apontamentos sobre Ética. A. ROTH sistematizou as ideias destes escritos numa obra recentemente publicada: Edmund Husserls ethische Untersuchungen, M. Nijhoff, Haia. 1960.[↩]
- Nachwort, p. 161[↩]
- Krisis, «Husserliana» VI, Haia, 1954, Beil. XXVIII, p. 508[↩]
- Cfr. W. BIEMEL, artigo citado anteriormente, p. 268.[↩]
- N. HARTMANN, Grundzuge einer Meth. der Erkenntnis, Berlim, 1925, pp. 164-168[↩]
- A propósito, cfr. F. J. J. BUYTENDIJK, La signification de la phénoménologie husserlienne pour la Psychologie actuelle, em «Husserl et la pensée moderne», Haia, 1959, pp. 98-114 (publica-se também o origina] alemão: pp. 78-98).[↩]
- Sobre as fenomenologias de Husserl. Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty escreveu uma série de três artigos P. THÉVENAZ, Qu’est-ce que la phénoménologie, em «R. de Théologie et de Philosophie», Lausanne, 2 (1952) 9-30, 126-140, 294-316.[↩]