1.— Vida e obras: — Edmund Husserl nasceu em Prossnitz, na Morávia (antigo império Austro-Húngaro, hoje Checoslováquia), a 8 de Abril de 1859. Descendente de família judaica, foi, contudo, educado sem instrução religiosa. Fez os estudos secundários em Olmutz e interessou-se sobretudo pela Matemática e pelas Ciências Naturais. Em 1876, começou a frequentar a universidade de Leipzig, no intuito de se dedicar a Astronomia. Como esta disciplina exigia um aprofundamento da Matemática, resolveu continuar os estudos na universidade de Berlim, onde ensinavam os mais afamados matemáticos da época. Em 1891 é já Viena a sua cidade universitária; aqui se doutorou em Ciências Matemáticas, com a tese Contribuições para o cálculo das variações (Beiträge zur Variationsrechnung), apresentada em 1882, mas que não chegou a publicar. A seguir, foi novamente para Berlim, como assistente do matemático K. Weierstrass. A preocupação de fundamentar a Matemática levou-o a aprofundar a Filosofia, e voltou a Viena onde, durante dois anos (1884-1886), foi aluno de F. Brentano. Por esta altura, recebeu o batismo, numa igreja luterana.
O contato com Brentano marcou nele uma fase nova e decisiva:
Entusiasmado pela Filosofia, resolveu dedicar-se exclusivamente a ela, mas no impulso veemente de lhe encontrar uma fundamentação, capaz de sustentar também todas as outras ciências. Por conselho de Brentano, foi para a universidade de Halle, como assistente do psicólogo Karl Stumpf, e apresentou, em 1887, o trabalho de «habilitação» (concurso), Sobre o conceito de número (Über den Begriff der Zahl). As ideias deste opúsculo desenvolveu-as, numa obra mais ampla, Filosofia da Aritmética (Philosophie der Arithmctik), da qual só escreveu a I parte, publicada em 1891. A partir deste momento, começou Husserl a desiludir-se da eficácia do psicologismo, que pretendia fundamentar a Lógica e a Filosofia na Psicologia Experimental, e pelo qual, até então, se deixara iludir. A ruptura com o psicologismo é marcada por uma das suas obras mais fundamentais. Investigações lógicas (Logische Untersuchungen), publicada em 2 volumes, respectivamente nos anos de 1900 e 1901 (na 2a edição, um pouco remodelaria por Husserl, cujo 1 vol. apareceu em 1913, o II vol. saiu dividido em dois). Em 1906 foi nomeado catedrático de Filosofia em Göttingen. Aqui começa uma nova fase, no desenvolvimento da sua fenomenologia, determinada por um curso dado em 1907 e publicado pòstumamente, em 1950, com o título: A ideia da fenomenologia (Die Idee der Phanomenologie). Esta ideia domina já um artigo, publicado cm 191 1, na revista «Logos», intitulado Filosofia como ciência de rigor (Philosophie als strenge Wissenschaft), de que possuímos uma tradução portuguesa (Filosofia como ciência de rigor, trad. de A. BEAU, Atlântida, Coimbra, 1052). Um desenvolvimento amplo é apresentado na obra mais importante: Ideias para uma fenomenologia pura e uma Filosofia fenomenológica (Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie), cujo I volume apareceu em 1913 1. Em 1916, foi Husserl transferido para Friburgo, na Alemanha. Aqui publicou, em 1929, uma obra importante, Lógica formal e transcendental (Formale und transzendentale Logik), em que o impulso fundamentador das Investigações lógicas é retomado num nível superior, em conformidade com o desenvolvimento da fenomenologia. A esta obra está particularmente ligada outra, publicada só postumamente, em 1939, e redigida, em grande parte, pêlo seu assistente, L. Landgrebe, Experiência e juízo (Erfahrung und Urteil). Aposentado em 1928, sucedeu-lhe, na cadeira de Filosofia, M. Heidegger, seu antigo discípulo. Em 1929, deu em Paris duas célebres conferências, cujo desenvolvimento originou uma das mais conhecidas obras de Husserl, Meditações cartesianas (Cartesianische Meditationen), publicada primeiro em tradução francesa, em 1931, e, no original alemão, só depois da morte do autor, em 1950. Dedicou-se, em seguida, a uma nova revisão e sistematização do seu pensamento, elaborando a obra A crise das ciências europeias e a Fenomenologia transcendental (Die Krisis der Europaischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie), da qual, em vida, só publicou a I parte, em 1936; em 1954 foi editado o manuscrito na íntegra. Husserl trabalhava ainda nela quando faleceu, em Friburgo, a 26 de Abril de 1938.
O seu estilo é, em geral, difuso e implicado, através das inúmeras obras, por muitas repetições. Revela, no entanto, grande impulso de rigor e seriedade, aliado a uma notável penetração analítica. Na sua vida particular, Husserl foi crente e honesto. Sobretudo nos últimos anos, mostrou particular simpatia pela Igreja católica, na qual contudo não chegou a entrar oficialmente. Sua esposa veio depois a converter-se ao catolicismo.
2. — Fim em vista: — Numa época em que Marx se impressionava sobretudo pela miséria social, Husserl, mais intelectualista, ficou admirado perante a miséria intelectual, manifestada pela diversidade de opiniões, em especial no campo da Filosofia. O seu grande ideal foi o da fundamentação radical de todas as ciências para o quê se impunha, em primeiro lugar, estabelecer um fundamento capaz de elevar a Filosofia à dignidade de «ciência no sentido rigoroso». O impulso é de inspiração nitidamente cartesiana, como reconhece o próprio Husserl; mas o modo de realização pretende efetuá-lo com maior radicalismo, para que o triunfo fique garantido: «Desenvolveremos as nossas meditações dum modo cartesiano, como filósofos que principiam pelos fundamentos mais radicais; procederemos, naturalmente, com uma prudência muito mais crítica e prontos a introduzir qualquer modificação no antigo cartesianismo. Teremos também que esclarecer e evitar certos erros aliciantes em que caíram Descartes e os seus continuadores» 2.
- Fundamentação
- Anti-psicologismo
- Evidência
- Fenomenologia
- Elaboração
- Metodologia
Fundamentação
3. — Características da verdadeira fundamentação: — Podemos compendiá-las nas exigências seguintes:
1) Deve ser «a priori», isto é, independente da experiência, uma vez que a Filosofia, que se pretende fundamentar, é uma ciência teorética e absoluta que prescinde da experiência, ou dos fatos, sempre contingentes. Este caráter «a priori» tem de ser ainda mais radical do que o «ego cogito» de Descartes. Veremos, no decurso do desenvolvimento, o grau de depuração a que Husserl pretendeu elevá-lo.
2) Esta aprioridade implica, desde já, uma plena ausência de pressupostos. Temos que proceder com inteira liberdade, sem nos deixarmos influenciar por qualquer opinião dominante, quer científica, quer filosófica, para nos orientarmos exclusivamente pelas coisas: «Não é das filosofias que deve partir o impulso da investigação, mas sim das coisas e dos problemas» 3. O apelo às «coisas», pelas quais temos que nos orientar exclusivamente, é um dos pontos em que Husserl mais insiste, e há de determinar o radicalismo absoluto a que chegou.
3) Finalmente, o fundamento radical tem que ser evidente por si mesmo: «É patente que eu, em consequência de ser um filósofo que pretende começar pelos fundamentos, …. não posso admitir ou ter como válido nenhum juízo se o não haurir da evidência» 4. Esta evidência não pode ser qualquer: Não basta que exclua praticamente a dúvida; tem de a excluir dum modo absoluto, ou seja, deve ser uma «evidência apodíctica». Tal evidência é, ao mesmo tempo, auto-justificativa, como se exige num fundamento sem fundamento, pois possui um caráter imediato e plenamente reflexo. Este caráter, que domina todo o impulso fundamentador de Husserl, é designada por uma palavra de difícil tradução, Selbstbesinnung, que é uma «auto-reflexão» radical, plenamente esclarecedora do «sentido» (Sinn) da coisa.
Anti-psicologismo
Evidência
Fenomenologia
Elaboração
Metodologia
9. — Conclusão: — Com a sua fenomenologia quis Husserl estabelecer o fundamento radical da Filosofia e de todo o saber humano. Internado na «atitude fenomenológica» ou «transcendental», que é uma certa mentalidade crítico-reflexiva, deverá o filósofo, e o cultor das ciências em geral, desenvolver fenomenologicamente a Filosofia e qualquer disciplina científica. Este trabalho deixou-o Husserl à posteridade. A elaboração da fenomenologia é já, sem dúvida, uma Filosofia, mas não é, evidentemente, toda a Filosofia. A Lógica conseguiu Husserl interná-la no próprio impulso fundamentador, de tal maneira que «Lógica pura» e «fenomenologia pura» vieram, praticamente, a identificar-se. A Ética foi uma disciplina filosófica que o preocupou já antes de escrever as Investigações lógicas e sobre a qual deu, pelo menos, 16 cursos, entre 1891 e 1924. Contudo, nas suas obras publicadas refere-se a ela poucas vezes e muito de passagem 18. Não sem certo humor, declarava em 1930, com mais de 70 anos, que «se lhe fosse concedida a idade de Matusalém», poderia ainda aspirar à elaboração duma Filosofia e tornar-se assim verdadeiro «filósofo». Mas teve de se contentar com ser apenas um contínuo «principiante», vendo, apesar de tudo, «diante de si estendida a ‘terra prometida’, a terra da verdadeira Filosofia» 19.
Husserl teve, de fato, muitos entusiastas do método fenomenológico; nenhum, porém, integralmente na linha por ele traçada. É que a elaboração da sua fenomenologia e, consequentemente, o método fenomenológico de evidenciação, está longe de se impor com a evidência que ele mesmo exigia. Daqui a sua preocupação inquietante em repisar as suas ideias, numa insatisfação contínua até a morte. Nem deixou de experimentar a pungente desilusão de quem vê frustrado o ideal mais querido: «Filosofia como ciência, como ciência séria, rigorosa, apodicticamente rigorosa — sonho que se desfez» 20, Podemos dizer que foi vítima da sua mesma ânsia de evidenciação que o levou a um exagero radical, equivalente a uma falta de radicalismo. Pôr tudo rigorosamente «entre parênteses», a fim de parar na mera significação, equivale a afirmar que se significa, ultimamente, aquilo que não existe, e portanto aquilo que não se pode significar. Husserl exigiu o «nóema» para explicar o sentido do «objeto intencional»; porque não exige, com igual direito, o objeto exterior existente em si para justificar o próprio «nóema»? De outro modo, qualquer coisa fica por fundamentar, no impulso husserliano de fundamentação: os «elementos materiais», necessários como determinantes específicos do «nóema».
A «atitude natural» tem de ser, sem dúvida, elevada a um estado de eliminação de todos os preconceitos e depurada numa séria crítica reflexiva; mas não tanto que se suprima a base essencial da reflexão humana que é a existência exterior à mesma consciência reflexa. Assim concebida, a «atitude natural» não é «ingênua», mas verdadeiramente «científica» e, como tal, exigência concreta duma última fundamentação rigorosa. Os inconvenientes da «atitude transcendental» foram já salientados por Heidegger ao próprio Husserl, quando, em nota ao artigo fenomenologia, escrito por Husserl para a «Encyclopaedia Britanica», frisava a incompreensão do «eu absoluto», resultado da «epoché» radical, e diferente do «eu fáctico», ou «antural», ainda não reduzido 21. Outro discípulo de Husserl, N. Hartmann, reconheceu também a necessidade de depurar a fenomenologia do «idealismo transcendental» 22. O método husserliano de evidenciação, que obrigava o filósofo, e o cientista em geral, a manter-se na «atitude transcendental», não encontrou seguidores que o prolongassem em ordem à elaboração duma «Filosofia rigorosa» e de um sistema científico plenamente fundamentado, como Husserl ambicionava.
Pelo contrário, a fenomenologia como método «descritivo» teve ampla aplicação, sobretudo no âmbito da Psicologia 23, e foi adotada por quase todos os filósofos que se costumam enquadrar na corrente existencialista 24. Se Kierkegaard sugeriu ao Existencialismo muitos dos seus temas prediletos, Husserl forneceu-lhe o processo de desenvolvimento. Uma Filosofia do concreto devia naturalmente simpatizar com um método de exposição analítico-reflexivo. Mas também não deixou de se manifestar, nesta aplicação, o perigo da fenomenologia descritiva, já anteriormente salientado: Muitos destes filósofos não chegaram a ultrapassar o âmbito do ser imediatamente conhecido, circunscrito aos limites do espaço e do tempo, encerrando-se num plano meramente finito. Jaspers e Marcel sentiram mesmo a necessidade de renunciar à fenomenologia, pelo menos na medida em que pretenderam estender as reflexões filosóficas a uma implicação do Infinito no finito.
Não foi só o método descritivo, ou analítico-reflexivo, que encontrou amplo acolhimento. O impulso de evidenciação e seriedade, deixado por Husserl, influenciou profundamente a mentalidade filosófica posterior. Dele brotou, em grande parte, um ambiente de maior respeito e compreensão mútua entre as diversas correntes filosóficas e, particularmente, entre escolásticos e não escolásticos.
O apelo filosófico, lançado nas Investigações lógicas, conseguiu não só destronar o Psicologismo, que pretendia colocar a Filosofia ao nível das ciências experimentais, mas, sobretudo, orientar o pensamento contemporâneo numa direção preponderantemente realista. Este último aspecto não está diretamente em conformidade com a mente de Husserl, no ulterior desenvolvimento da fenomenologia; mas é uma consequência lógica do mesmo impulso de evidenciação e sinceridade que, até a morte, acompanhou as suas reflexões filosóficas. Apresenta-se, assim, Husserl como um autor fundamental que marca um ponto decisivo no decurso da História da Filosofia.
- Os dois volumes seguintes, o último dos quais foi alterado por Husserl em relação ao plano primitivo, saíram postumamente, em 1952, na série das Obras completas, «Husserliana», a cargo dos «Arquivos de Husserl em Lovaina» e editada pela livraria M. Nijhoff, de Haia.[
]
- Cart. Medit., «Husserliana» I, Haia, 1950, § 2, p. 48.[
]
- Fil. como ciência de rigor, p. 72[
]
- Cart. Medit., § 5, p. 55.[
]
- Log. Unters., I, prol., Halle, 1922, p. VI[
]
- Ib., III, Halle, 1921, 5 14, p. 56[
]
- Phänomenologie, oder Lehre des Scheins) (A. LALANDE, Vocabulaire de la Philo., Paris, 1951, pp. 768-769)[
]
- Idee der Phän., «Husserlinnn» II, Haia, 1950, p. 23[
]
- Ideen I, «Husserlinna» III. Haia, 1950, § 51, p. 65[
]
- Ms. F I 17, Idee der Phän. und ihre Methode (curso dado cm Göttingen em 1909), pp. 75.76.[
]
- Ms. B II 1, p. 25a, cit. por W. BIEMEL, Hasserls Encycl.-Britanica Artikel, em “Tijdschrift voor Philosophie», Lovaina, 12 (1950) 263[
]
- Ideen I, 5 § 129, p. 516[
]
- Kant und die Idee de Transzendentalphän., «Husserliana» VII, Haia, 1956. p. 245.[
]
- Nachwort, «Husserliana» V, Haia, 1952, p. 152[
]
- Ideen I, § 64, p. 152[
]
- Ib., § 59, p. 141[
]
- Cart. Medit, § 13, p. 69[
]
- Entre os manuscritos de Husserl, sobretudo na secção F, encontram-se muitos apontamentos sobre Ética. A. ROTH sistematizou as ideias destes escritos numa obra recentemente publicada: Edmund Husserls ethische Untersuchungen, M. Nijhoff, Haia. 1960.[
]
- Nachwort, p. 161[
]
- Krisis, «Husserliana» VI, Haia, 1954, Beil. XXVIII, p. 508[
]
- Cfr. W. BIEMEL, artigo citado anteriormente, p. 268.[
]
- N. HARTMANN, Grundzuge einer Meth. der Erkenntnis, Berlim, 1925, pp. 164-168[
]
- A propósito, cfr. F. J. J. BUYTENDIJK, La signification de la phénoménologie husserlienne pour la Psychologie actuelle, em «Husserl et la pensée moderne», Haia, 1959, pp. 98-114 (publica-se também o origina] alemão: pp. 78-98).[
]
- Sobre as fenomenologias de Husserl. Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty escreveu uma série de três artigos P. THÉVENAZ, Qu’est-ce que la phénoménologie, em «R. de Théologie et de Philosophie», Lausanne, 2 (1952) 9-30, 126-140, 294-316.[
]