Júlio Fragata S. I.
Professor da Faculdade de Filosofia de Braga
Problemas da Fenomenologia de Husserl
Edições Livraria Cruz
Braga 1962
1. — Ao tratar do problema de Deus em Husserl, é conveniente, logo de início, afastar um possível equívoco, proveniente da confusão de duas questões distintas. A primeira refere-se à atitude de Husserl, como homem, perante Deus. A segunda investiga até que ponto se apresenta conciliável com uma doutrina de Deus o pensamento filosófico de Husserl, ou seja, a sua fenomenologia.
Depois de nos referirmos sumariamente ao primeiro aspecto, deter-nos-emos, mais pormenorizadamente, no segundo. Se Husserl, como homem, acreditou em Deus, também não poderá negá-lo, como filósofo, se quiser manter-se integralmente lógico consigo mesmo. Mas com isto não fica ainda determinado o problema de Deus, no âmbito da sua filosofia. Várias hipóteses é possível excogitar, mesmo antes de começar a investigação mais em concreto.
Poderá acontecer que Husserl, sob o influxo preconcebido de não tratar filosoficamente o problema de Deus, chegue insensivelmente a uma filosofia incompatível com a afirmação de Deus, ou, pelo menos, dificilmente com ela conciliável. De facto, segundo mentalidade comum entre os teólogos protestantes, o problema de Deus restringe-se exclusivamente ao campo teológico. Heidegger, aderiu a esta doutrina em Marburg, sob o influxo de Bultmann. É natural que também Husserl por ela se tivesse deixado contaminar, mais ou menos conscientemente, como adiante salientaremos.
É também possível que Deus, embora não excluído, fique, pelo menos, comprometido perante um modo insuficiente, talvez mesmo contraditório, de conceber u sua existência. Se o conceito de realidade adquire um sentido em que filosoficamente se torna inútil a consideração da sua existência natural, é claro que o objeto do conhecimento reveste uma modalidade dificilmente compatível com a existência em si de qualquer coisa independentemente do ato de conhecer, e portanto com a existência de Deus. Veremos ate que ponto a fenomenologia de Husserl encarna precisamente esta dificuldade. E, nesta suposição, teremos o cuidado de distinguir o que a origina daquilo que continua perfeitamente compatível com a existência de Deus.
2. — Husserl nasceu duma família judaica, que tinha abandonado todas as práticas de piedade, e por isso não recebeu em casa nenhuma instrução religiosa. Só no início dos estudos universitários, em Leipzig, por volta dos 17 anos, tomou contacto com a Bíblia, ficando profundamente impressionado com a leitura do Novo Testamento. Desejou mesmo fazer-se cristão, mas só veio a receber o baptismo 10 anos mais tarde, em Viena, numa igreja luterana. Sentia, nesta altura, veemente entusiasmo por Cristo, todo ele porém contaminado pela mentalidade naturalista e racionalista da época. Como autores predilectos no campo religioso, lia sobretudo Strauss e Renan; o as pessoas cujo convívio pessoal mais influenciou a sua formação religiosa foram preponderantemente Masaryk, futuro fundador da República da Checoslováquia, e Franz Brentano, seu professor predileto, — ambos apóstatas da igreja Católica.
A atitude racionalista perdurou em Husserl durante dezenas de anos, mas a crença em Deus ficou nele profundamente arraigada. O contacto com as obras de Bolzano, sacerdote católico que desenvolveu a sua filosofia com acento nitidamente teísta e que Husserl começou a ler em 1885, é natural que tivesse exercido um «influxo decisivo» não só no campo da Lógica, particularmente no que diz respeito ao caracter absoluto da verdade, mas também em relação à verdade por excelência que é Deus . Husserl simpatizou profundamente com este autor a quem tece, nas Investigações Lógicas, o mais rasgado elogio, considerando-o «um dos maiores lógicos de todos os tempos». A leitura das obras de Kierkegaard, com as quais tomou contato, ao que parece, nos primeiros anos a seguir à guerra de 1914, introduziram-no no paradoxo do Homem-Deus; Husserl porém, nesta altura, não o aceitou: para ele, Cristo continuava a ser uma personalidade em tudo extraordinária, mas de modo nenhum divina. A um discípulo, que o encontrou a ler Kierkegaard, declarou: «Concordo com ele em tudo, exccplo no que diz relação ao paradoxo» . Mais profunda impressão causou na sensibilidade religiosa de Husserl a adesão ao Cristianismo de discípulos que lhe eram particularmente queridos. O primeiro foi Adolf Reinach, que do judaísmo evolucionou até à adesão a Cristo, Homem-Deus, e veio a falecer, vitimado pela primeira guerra europeia, apenas com 33 anos, em 1917. Recebera o baptismo um ano antes, conferido por um pastor protestante ; mas, posteriormente, tornara-se cada vez mais nítida a sua inclinação para a Igreja Católica na qual haviam de ingressar sua esposa com muitos dos mais íntimos parentes e amigos. Husserl manifestou a sua simpatia e sentimentos para com este discípulo predileto em dois artigos publicados respectivamente no «Jornal de Frankfurt» (Frankfurter Zeitung), em Dezembro de 1917, e na revista de Berlim, «Kant-Studien», em 1918.
Mais impressionante foi ainda a conversão da sua assistente e antiga discípula, Edith Stein, judia de origem, que abraçou a religião católica comovida pela Autobiografia de Sta. Teresa de Jesus, recebendo o baptismo em 1922, aos 30 anos. A estima de Husserl pela sua assistente não ficou, por isso, diminuída. Conta-se mesmo que quis também experimentar a leitura do livro que contribuíra para essa inesperada transformação. E quando, 12 anos mais tarde, em Abril de 1934, Edith Stein recebia o hábito, no carmelo de Colônia, quis associar-se a esta festa íntima felicitando-a com um telegrama.
No ano seguinte, assistia pessoalmente, comovido até as lágrimas, aos votos religiosos do outra antiga discípula, Aldegundes Jaegerchundt ao priorado beneditino de Santa Lioba, em Friburgo. Neste mosteiro experimentou ele grandes emoções religiosas: « Aqui estamos noutro mundo, num mundo situado à parte, fora do mundo perverso, quase no paraíso» . Após as cerimônias, confessou sentir-se invadido por uma alegria que mal podia suportar. A irmã Aldegundes, amiga íntima da família, há de depois acompanhá-lo na última doença.
Foi patente em Husserl, à medida que avançava em idade, uma crescente simpatia pela igreja Católica e um esforço de compreensão, cada vez mais intenso, pelo mistério do Deus-Homem. Num banquete, em que tomaram parte muitos professores católicos da universidade de Friburgo, incidiu a conversa sobre a Igreja Católica. A propósito, comentou Husserl: «Sim, vós, católicos, estais sentados à mesa de um banquete». Observando-lhe o teólogo Engelbert Krebs: — «Então porque não se senta também conosco». Respondeu: — « Oh ! não é tão fácil ! . . . » . Nos últimos anos, chegou mesmo a afirmar que, se tivesse menos 40 anos, se resolveria a abraçar o Catolicismo; « mas agora, nesta idade, eu, que sempre procurei fazer tudo tão conscienciosamente, precisava pelo menos de cinco anos para refletir sobre cada um dos dogmas, e quantos anos não teria de viver ainda para chegar ao fim ! ».
O seu respeito e interesse pela Sagrada Escritura continuaram também sempre num entusiasmo crescente. «Aqui está o meu Novo Testamento, dizia a um discípulo que o visitava; tenho-o sempre na minha mesa de trabalho, mas não o abro. Se começasse a lê-lo, teria que deixar a Filosofia». Para Husserl, a leitura dos Evangelhos constituía, nesta altura, uma tentação a que ele não queria ceder: vir a apaixonar-se tanto por eles que descurasse a Filosofia. Contudo, gostou que Edith Stein lhe lesse algumas passagens, durante uma enfermidade, e manifestou desejo, à irmã Aldegundes, de que lhe fizesse o mesmo na última doença, ao entrar na Eternidade». Satisfez-se-lhe a vontade. Mas já antes, no tempo da perseguição nazista, costumava fazê-lo sozinho, com grande emoção : «Hoje, dois sóis brilharam em mim», exclamava em 1936, depois duma leitura do Evangelho, sentado ao sol. Este Sol brilhou para ele particularmente na última doença, decorrida num ambiente não só cristão, mas católico. Quando a irmã Aldegundes lhe sugeria : « O céu e a terra encontram-se verdadeiramente em Jesus. Deus toca o homem em Cristo », Husserl, quase sem poder falar, respondeu que «sim », que está de acordo . Os seus últimos sentimentos expressaram suficientemente a crença naquele paradoxo que antes lhe parecera inadmissível — o paradoxo do Homem-Deus. Porem, a entrada oficial na Igreja Católica não se deu. Entrou nela sua esposa, pouco depois da morte dele.
Temos diante de nós o desenrolar duma vida desde a pura indiferença religiosa até ao limiar do Catolicismo. Podemos dizer que foi a ânsia exagerada de fundamentação rigorosa, característica do seu temperamento e flagrantemente manifestada através da sua elaboração filosófica, que o impediu também de dar o último passo no campo religioso. Foi esta mesma ânsia que o levou a pôr-se à margem do problema de Deus no desenvolvimento da sua Filosofia, e o colocou numa posição que a ele mesmo causou preocupações.
3. — Introduzamos agora o problema de Deus no impulso filosófico de Husserl. Este impulso culmina na «atitude transcendental fenomenológica», a partir da qual se devia tornar possível o estabelecimento duma Filosofia genuína. O verdadeiro filósofo precisa de superar a «atitude natural», — em que todos os objetos do conhecimento se encaram dum modo ingênuo, como existentes em si, fazendo parte dum mundo exterior ou «transcendente» à consciência, — para subir à «atitude transcendental», em que o «objeto» se considera como significação pura, como fruto da «intencionalidade» ou do poder significativo da consciência. Só assim julgou Husserl possível a obtenção duma evidência suficientemente apodíctica, como base insofismável da Filosofia e de todo o saber humano. Este trânsito efetuou-se por meio da «suspensão» ou «epoché» radical relativamente a todo o caracter existencial que implicasse a consideração da existência de qualquer objeto, independentemente da consciência.
Esquivar-se-á Deus a esta «suspensão»> O problema é posto explicitamente por Husserl que opta, com toda a clareza, pela resposta negativa. O § 58 de Ideen I tem como título: «A transcendência de Deus posta tora de circuito». Deus e paia Husserl o «Absoluto», uma transcendência especial num polo oposto ao mundo; mas «é claro, continua, que estendemos a redução fenomenológica a este ‘Absoluto’ e ‘Transcendente’».
Estando Deus atingido pela «epoché fenomenológica», é evidente que também Ele se apresenta como meramente significado, como fruto da consciência intencional: «Também Deus é para mim o que é, a partir da minha atividade consciente (Bewusstseinsleistung); e, neste ponto, não devo ter medo duma suposta blasfêmia, mas encarar o problema como ele é», Husserl quer ser intransigentemente fiel à sua «epoché» radical. No entanto, está persuadido, como o próprio texto citado dá a entender, de que esta fidelidade não implica a negação de Deus, tal como a Religião o concebe. De outro modo, não estaríamos apenas perante uma «suposta blasfêmia». De facto, a «atitude transcendental» não nega a «atitude natural », mas apenas deixa de a considerar. Por isso continua válida a crença em Deus, Criador do mundo e dos homens, para quem se coloca no plano meramente «natural», próprio de qualquer religião positiva. O filósofo não põe em dúvida esta doutrina; mas, como se lhe apresenta «enigmática», ou seja, sem « evidência apodíctica », tem que a superar na « atitude transcendental» em que se conserva, com plena segurança, apenas a consciência de tudo isso.
Mesmo no âmbito da «atitude transcendental», são conhecidos os esforços de Husserl para salvar a existência das outras pessoas independentemente da consciência do sujeito que as pensa. Deus é a pessoa por excelência, e por isso é natural que Husserl pretenda estender também a Ele esta doutrina. É neste esforço que devemos entender a continuação do último texto citado da Lógica formal e transcendental : «Também aqui, como a propósito do outro-eu, a atividade da consciência não significa que eu crio ou produzo esta altíssima Transcendência». Husserl não explica mais como se dá esta «constituição» de Deus na «consciência transcendental». E o assunto precisava de ser esclarecido. Com efeito, a propósito do outro-eu, o encontro fenomenológico do corpo alheio oferece o fundamento da «intropatia» (Einfühlung) que, na mente de Husserl, é a chave para a constituição do outro como ser que goza dos mesmos privilégios que eu, e por conseguinte deve possuir também uma existência em si, própria dum sujeito transcendental independente. Ora Deus, incorpóreo, não está ao mesmo nível que o eu fenomenológico e, portanto, não se vê, como, relativamente a Ele, seja possível uma «intropatia».
4.— O problema de Deus, inserido no impulso filosófico de Husserl, ou seja, no âmbito da sua fenomenologia, não encontra pois uma solução clara, perfeitamente compatível com a crença do homem religioso. Os que conheceram pessoalmente Husserl e as suas reflexões pessoais, cm grande parte até agora inéditas, testemunham que ele viu claramente esta dificuldade e que procurou resolvê-la. Segundo assevera Van Breda , sobretudo entre 1928 e 1935, viveu interessado na elaboração duma síntese geral do seu pensamento que devia ter como coroa a existência de Deus pessoal. Donde se conclui que, nesta época, o preocupou particularmente a conciliação entre a sua crença religiosa em Deus e a «atitude transcendental » por ele adoptada como filósofo. O facto de esta preocupação surgir precisamente na altura em que o seu pensamento filosófico tinha já atingido a maturidade, mostra que desenvolvera as suas ideias prescindindo do problema religioso de Deus, e portanto influenciado, embora inconscientemente, pela doutrina protestante que considera o assunto só de interesse teológico.
De facto, nas suas obras publicadas, refere-se a Deus apenas de passagem. Em Ideen I, escrita em 1913, bastante antes da sua crise mais aguda sobre o problema de Deus, procura mesmo desviar explicitamente a atenção do caracter existencial ou não existencial de Deus. Assim, a propósito das verdades necessárias, como 2 + 1 = 1 + 2, que são válidas mesmo para a inteligência divina, acrescenta uma nota salientando que não quer, com esta alusão, referir-se ao problema de Deus «no plano da Teologia» e que mesmo o ateu deve admitir este recurso a Deus como limite supremo, para o qual é lícito apelar teoricamente a propósito da evidência cognoscitiva . Neste mesmo impulso, e na ânsia de esclarecer o caracter absoluto da imposição do objeto consciente, chega também a afirmar que não só o homem, mas nem sequer Deus — «como representante ideal dum conhecimento absoluto» — pode intuir um objeto espacial sem o apreender através duma multiplicidade fluente de aparências ou perspectivas. Husserl manifesta-se, nesta passagem, como que obsessionado pelo caracter de evidência, enquanto dependente da presença do objeto. Este deveria ser assim apreendido, em virtude da sua própria essência, mesmo por uma suposta inteligência infinita, ou absoluta, cujo caracter existencial nem se afirma nem se nega. Não se consideram, além disso, os inconvenientes que tal apreensão poderia oferecer em detrimento duma inteligência que, sendo infinita, teria que dominar o objeto na sua totalidade, e portanto independentemente da série de aparências cuja apreensão sucessiva implicaria também um conhecimento deficiente.
Esta inconsideração confirma como o problema de Deus estava filosoficamente posto à margem.
5. — Apesar de tudo, Husserl de modo nenhum se conformava com a ideia de que o seu pensamento, desenvolvido muito embora sem ter em mente o Deus da Teologia, excluísse o mesmo Deus como consequência fatal. Estava, como homem religioso, plenamente convencido da existência de Deus e, por outro lado, não podia admitir que a sua fenomenologia, elaborada com um empenho de tanto rigor, deixasse de ser verdadeira. Uma verdade jamais poderia contradizer outra verdade. Esta convicção exprimiu-a claramente numa conversa com um seu discípulo católico: «A vida do homem não é mais que um caminho para Deus. Eu procuro atingir este fim sem provas, métodos ou auxílios teológicos, isto é, atingir a Deus sem o auxílio de Deus. Preciso, de certo modo, de eliminar a Deus do meu pensamento científico para indicar o caminho para Fé àqueles que não têm, como nós, a segurança da fé pela Igreja …. Sei que um tal método seria perigoso para mim se não tivesse profundos laços de união com Deus e a fé em Cristo». Husserl estava pois convencido de que a sua fenomenologia preparava o caminho para uma « prova inconfessional» da existência de Deus a que várias vezes se refere nas suas reflexões pessoais, ainda inéditas. Tal prova é para ele uma consequência inevitável de qualquer Filosofia que se apresente sem preconceitos, como fora já a de Aristóteles e pretende ser a sua. «Uma Filosofia autônoma, como foi a aristotélica e que continua sendo uma exigência perene, chega inevitavelmente a uma teleologia e a uma Teologia filosófica …. como caminho inconfessional para Deus».
Podemos concluir daqui que Husserl não concordava reflexamente com o preconceito protestante, segundo o qual Deus deve ser tratado apenas teologicamente, embora de facto se tivesse deixado influenciar por ele, dum modo como que inconsciente, na elaboração da sua fenomenologia. Em 1926, confessa, porém, que a sua Escola «precisará ainda de cem anos até poder apresentar uma prova exata da existência de Deus». Mas ele mesmo tentou já esta prova, embora a deixasse consignada em reflexões de caracter privado e sempre com desenvolvimento rudimentar.
Uma característica parece apresentar-se como fundamental: a prova da existência de Deus tem que se estabelecer através da intimidade pessoal. De outro modo não revestiria o caracter peculiar da fenomenologia que, por sua mesma natureza, se mantém no “campo da interioridade”. Por vezes Husserl chega mesmo a impressionar-se perante certo sentimento interior de Deus que se atinge sobretudo pela oração: « A imagem de Deus dirige o nosso olhar para fora; mas a relação verdadeiramente atual para Deus é interior, é a atitude íntima de quem reza» . Deturparíamos porém o seu pensamento julgando que se contenta com meros sentimentos. Manifesta-se-nos aqui, mais uma vez, a sua sensibilidade peculiar. No entanto, elo está habituado a superar impulsos meramente sentimentais pura sei levado só pela razão, desprendida de qualquer influxo estranho, a verdade objetiva.
A prova racional que continuamente o atrai é a ideológica. Mesmo em Ideen I, a ideia de Deus é introduzida através da consideração teleológica sugerida não só pelo desenvolvimento da vida e tia história humana, mas sobretudo pela maravilhosa convergência do fluxo vivencial da consciência em ordem à designação do objeto.
Numa reflexão pessoal, não destinada à publicação, o problema é focado mais explicitamente: «A teleologia leva-nos a reconhecer que Deus fala em nós, que Deus fala na evidência das decisões que, através de todos os aspectos do mundo finito, indicam a infinidade» . Esta reflexão é de 1936, dois anos anterior à morte de Husserl. Nela manifesta-se também como uma tal prova se deve manter no âmbito da atitude fenomenológica. Para isso, apela Husserl para a existência dos outros eus: «Todos os bons caminhos me conduzem a Deus, mas passando pelos outros ‘eus’, dos quais eu sou, enquanto eu, inseparável; Deus não é mais que o pólo: o caminho que parle de cada um dos eus … é individual, mas todos estes caminhos conduzem ao mesmo pólo, situado para além do mundo e do homem, — Deus». Assim como através duma comunidade de eus o mundo fenomenológico adquire pleno caracter objetivo, é também por meio desta mesma comunidade, na qual eu me sinto imernado, que a existência de Deus adquire uma consciência que ultrapassa os limites duma mera convicção subjectiva para se impor para além do mundo e do mesmo homem.
6. — Não podemos duvidar que Husserl, apesar de pretender manter-se na «atitude transcendental», tem em mente atribuir a Deus uma existência pessoal objetiva, ou seja, independente da consciência. Mas, por outro lado, não vemos como esta «existência » ultrapasse a mera consideração ideal, se queremos conservar todas as consequências implicadas numa «epoché» radical, em que o próprio Deus também deve considerar-se apenas como correlato de consciência, como pura significação.
Assim, o problema da existência de Deus na «atitude transcendental» — que é para Husserl a única genuinamente filosófica — participa do caracter enigmático dessa mesma atitude. Não poderemos dizer que a fenomenologia de Husserl negue a Deus, pois afirma-o, pelo menos como conteúdo de consciência; mas é também verdade que, no plano estritamente fenomenológico, não transparece a sua existência em si como independente. Para resolver esta objecção, teríamos que renunciar à «atitude transcendental». Husserl caiu na conta desta dificuldade; daqui, as dúvidas angustiosas a que já nos referimos. Na esperança de poder conciliar as duas alternativas — existência de Deus corno independente da consciência e «atitude transcendental» — chegou a lamentar que os tomistas do seu tempo «temessem entrar no inferno do cepticismo total», aceitando a «redução fenomenológica». «Têm medo, continua, se lhes pedimos que suprimam na sua mente, ainda que seja só por alguns momentos, a Revelação e o próprio dogma de Deus».
Se esta supressão fosse provisória, não amedrontaria os tomistas. Uma tal supressão sempre se praticou na Filosofia escolástica e na Teologia católica. Mas a fenomenologia husserliana não parece exigir só isto, se quer manter-se fiel à «atitude transcendental». Acreditamos que Husserl estivesse convencido de que o problema teria solução. Mas não basta. Já salientamos como se apresenta enigmática, na sua fenomenologia, a existência das outras pessoas, enquanto seres independentes da consciência individual. Deus, na sua excelência absoluta e independente, ficaria igualmente enigmático, e uma verdade tão fundamental tem de estar para além de qualquer enigma.
Não foram só os tomistas que puseram reservas à «atitude transcendental»,como já referimos. Nenhum filósofo subsequente, mesmo entre aqueles que mais devedores se reconheceram a Husserl, admitiu este radicalismo extremo. Alguns, como Heidegger e N. Hartmann, rejeitaram-no até dum modo explícito, com grande desprazer do próprio Husserl: conservaram o método analítico-reflexivo de evidenciação, depurando-o precisamente do «idealismo transcendental ». Mesmo neste caso, a mera descrição tende a coarctar-nos ao campo imediatamente experimental, e é claro que Deus transcende o âmbito da experiência. Cremos mesmo que foi o método fenomenológico, seguido com este rigor descritivo, que levou Heidegger a não ultrapassar filosoficamente o âmbito do ser finito. E Sartre, partindo da negação de Deus, veio a encontrar na fenomenologia o método adequado duma filosofia explicitamente ateia.
Por outro lado, Edith Stein, A. Reinach, M. Scheler, conseguiram manter-se fieis a uma fenomenologia profundamente influenciada por Husserl aliando-a a uma posição nitidamente teísta. Não se vê portanto repugnância em estabelecer uma evidenciação da existência de Deus através dum processo analítico-reflexivo, contanto que esta análise não exclua uma ilação causal.
7. — Como conclusão, podemos salientar, dum modo mais concreto, qual a atitude do Tomismo atual perante a fenomenologia de Husserl. Esta questão vem particularmente a propósito, porque o Tomismo, quer no campo filosófico, quer no campo teológico, busca primordialmente salvaguardar a existência de Deus como ser pessoal e independente. Se vimos que esta independência fica, pelo menos em parte, comprometida na fenomenologia de Husserl, é natural que o juízo tomista sobre este filósofo lenha particularmente em conta este compromisso.
O Tomismo em geral, a Filosofia escolástica e a Teologia católica reconhecem o influxo benéfico de Husserl em ordem ao desejo sincero duma compreensão dos problemas de que se ocupam, em particular relativamente à questão da existência de Deus.
Husserl mostrou-se várias vezes sincero admirador do Tomismo. Em 1933, quatro a cinco anos antes da morte, declarava a um sacerdote, professor de Filosofia, a quem concedera uma entrevista: «Naturalmente, é tomista; é feliz. O Tomismo é, na verdade, um edifício belo» (ein schönes Gebäude) . Compreendemos assim que ele tenha defendido a Lógica aristotélico-escolástica como injustamente atacada e minimizada pelo espírito apaixonado do Renascimento, e que lamente o facto de a incredulidade crescente ler desviado a humanidade do ideal, que surgiu na Idade Média, em ordem a uma perfeita harmonia entre a fé e a ciência.
Três anos antes da morte, em 1935, proferiu mesmo estas significativas palavras : «Sempre acreditei — e agora não só acredito, mas vejo claramente — que a minha fenomenologia, e só ela,é a Filosofia que a Igreja pode utilizar: só ela converge para o Tomismo e prolonga o Tomismo».
O caracter enigmático, que o problema de Deus encerra na sua fenomenologia, mostra suficientemente a ilusão de Husserl. No entanto, o Tomismo reconhece-lhe também o impulso de sinceridade e de evidenciação que introduziu uma mentalidade mais sadia entre os filósofos não escolásticos, orientando-os, inclusivamente, para uma posição epistemológica mais realista, e isto apesar de o mesmo Husserl não ter conseguido renunciar inteiramente a todos os preconceitos idealistas. Admite, além disso, a fenomenologia como método analítico-reflexivo e apenas rejeita nela o «idealismo transcendental», implicado na «époché» ou «suspensão» radical introduzida pela ânsia dum radicalismo, que veio a manifestar-se claramente exagerado. Não se segue daqui que todo o processo filosófico deve ser necessariamente descritivo, se esta descrição se refere apenas aos dados imediatos da experiência sensível. Tal atitude levaria, pelo menos, a um semi-empirismo que cortaria o acesso às verdades metempíricas, e portanto ao mesmo Deus. Nem Husserl pretende manter a sua fenomenologia neste exclusivismo. Um impulso dedutivo torna-se, de qualquer modo que seja, necessário, pelo menos como antecedente ou como consequente à própria analítica reflexiva, e foi também explicitamente admitido por Husserl.
Sobretudo nos assuntos em que se exige uma descrição daquilo que se observa, quer no domínio interior, como acontece na Psicologia, quer mesmo no exterior, como na analítica dos problemas econômicos, sociais e religiosos, o método fenomenológico apresenta-se particularmente fecundo e encontrou eco favorável da parte dos filósofos e teólogos católicos. Não é que se reconheça este método como inteiramente novo. Mas salienta-se justamente que o esforço de Husserl conseguiu impulsionar-nos, com maior insistência, a esta analítica, e dum modo mais Intimamente reflexo, numa atitude de quem se esforça por reparar melhor.
Nesta sequência, não têm faltado tentativas de integração do movimento fenomenológico no pensamento católico. Em 1951, A. Dondeyne publicava Fé cristã e pensamento contemporâneo em que, sob o influxo da fenomenologia existencialista, se salienta a importância da fé e do Cristianismo perante o pensa mento contemporâneo. Em 1953, aparecia o pequeno, mas sugestivo opúsculo de M. Vancourt. A fenomenologia da fé , em que se penetra na essência da religião e do ato de fé por meio deste processo analítico-reflexivo que se serve da «intencionalidade» como elemento perscrutador. Mais recentemente, a XV reunião do «Centro de Estudos Filosóficos de Gallarate», celebrada em 1960, foi dedicada ao «Problema da experiência religiosa»; juntamente com a perspectiva psicológica e filosófica desta questão, agitou-se também a «fenomenologia da experiência religiosa».