Júlio Fragata S. I.
Professor da Faculdade de Filosofia de Braga
Problemas da Fenomenologia de Husserl
Edições Livraria Cruz
Braga 1962
I. — O desenvolvimento científico, originado no Renascimento, trouxe consigo, dum modo candente, o problema da coordenação e fundamentação das ciências que preocupou os filósofos mais eminentes da Filosofia Moderna, como Descartes, Leibniz e Kant.
Descartes, olhando para o edifício científico do seu tempo, considerava-o «mal construído» e sem fundamentos suficientemente seguros. Numa atitude audaz, pareceu-lhe preferível « destruí-lo inteiramente e construir outro novo», pois não queria imitar os artistas medíocres que se contentam com fazer acomodações.
Recorreu assim à característica « dúvida metódica » que, enquanto o levou a prescindir de todos os elementos científicos até então em voga, apresentava a eficácia demolidora por ele preconizada; mas, ao mesmo tempo, era ela que devia permitir a construção do novo edifício da Filosofia universal que se ergueria, com a clarividência das deduções matemáticas, sobre a base insofismàvelmenle segura do ego cogito, capaz de resistir à mesma dúvida.
Leibniz não se preocupou tão directamente com o problema da fundamentação radical das ciências. A sua doutrina da Mathesis universalis revela, contudo, as preocupações de fundamentação enquanto pretende desenvolver e coordenar o saber humano dum modo rigidamente baseado numa dedução cuja evidência transpareça com a clareza do cálculo matemático.
Kant havia de dar um passo mais profundo e directamente impulsionado pela ânsia da fundamentação radical das ciências. Para isso dedicou-se à investigação das condições da possibilidade do conhecimento objectivo, mas não conseguiu encontrar aquelas que justificassem o conhecimento metafísico e, portanto, estritamente filosófico.
2. — Cerca de três séculos depois de Descartes, Husserl pretende chamar a atenção para uma crise científica e, num novo empreendimento cartesiano, procura analisar as suas causas e remediar o mal. Admira o progresso das ciências matemáticas e experimentais que em meados do século passado — tempo em que viveu a sua juventude — atingiram notável apogeu. Este apogeu entrara, porém, em declínio, em fins do século passado e princípios do presente século, como salientava Husserl em 1911, no célebre artigo Filosofia como ciência de rigor: As ciências, com a sua infinidade de problemas ainda por solucionar e com «vários defeitos na sua doutrina já formada», apresentavam-se então ao seu espírito com muitas obscuridades e deficiências sistemáticas.
Mais tarde, em 1936, numa obra precisamente intitulada A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental, o caracter deficiente das ciências em geral é de novo posto em relevo: «A genuína cientificidade de todas as ciências, salienta Husserl, tornou-se problemática». Perdeu-se a fé numa filosofia universal que abraçaria coordenadamente todas as ciências, porque se perdeu a fé no valor da razão ; e impunha-se, portanto, uma fundamentação de todas elas para que pudessem ostentar-se num crescimento coordenado e solidamente progressivo.
E que «o conceito de ciência, esclarecera ele, já antes, nas Investigações lógicas, não implica um mero saber». A ciência multiplica, sem dúvida, os nossos conhecimentos, mas «não nos dá apenas uma multiplicidade». Pelo facto de possuirmos um grupo isolado de conhecimentos químicos, não temos ainda uma «ciência química». «Requer-se evidentemente alguma coisa mais: uma conexão teorético-sistemática», o que só se pode obter por meio de uma coordenação íntima que implica uma fundamentação adequada. O «conhecimento científico é, como tal, conhecimento a partir do fundamento». Deste impulso de clarificação, ou fundamentação no sentido estrito, é que brota a unidade essencial das verdades duma ciência.
Ao estabelecimento desta fundamentação dedicará Husserl toda a actividade filosófica.
3. — A preocupação pelos problemas mais radicais coadunava-se já com o seu temperamento sedento de rigor. Encetara o curso universitário estudando Astronomia. Na ânsia de tudo conhecer desde os últimos fundamentos, viu que a Astronomia não podia prescindir da Matemática. E começou a dedicar-se a esta disciplina pela qual, como Descartes, teve particular predileção. Mas o que nela o preocupou foi o problema da sua fundamentação : Quais as bases desta ciência que se apresentava como a «ciência rigorosa» por excelência?… Na busca deste fundamento deparou-se naturalmente com a Lógica. Esta seria uma «teoria das ciências» a ensinar-nos o processo metódico de atingir a verdade científica. Mas a Lógica precisava também de ser fundamentada. Tal incumbência, reconhece Husserl, pertence ao filósofo «a quem compete investigar a essência e possibilidade intrínseca das teorias».
Poderá a Filosofia desempenhar esta incumbência, se, na opinião de Husserl, nem sequer se apresentava ainda como «ciência imperfeita»? Em ordem a esse fim, precisará de ser ela mesma elevada ao nível de verdadeira ciência. Exige-se, portanto, uma fundamentação da Filosofia para com ela adquirirem consistência a Lógica e as outras ciências.
Deste modo, o problema da fundamentação das ciências reduziu-se à busca do último fundamento da Filosofia — a ciência racional por excelência — para assim ficar cientificamente sustentada a Filosofia como ciência universal que abraça todo o saber humano.
Qual esse fundamento ?. . .
4. Numa época em que a Psicologia começava a dar os primeiros passos de emancipação, e por isso mesmo a atrair a atenção de todos, Husserl julgou encontrar nela a solução. Afinal, a Lógica, a Filosofia e qualquer outra ciência são inconcebíveis sem pensamento, sem actividade consciente e portanto sem actos psíquicos. A Psicologia deveria portanto caber a honra de apresentar o último fundamento do saber humano. Nesta orientação escreveu as obras Sobre o conceito de número e Filosofia da Aritmética, publicadas em fins do século passado.
Cedo porém se desiludiu. As dúvidas começaram já, quando escrevia a segunda das obras citadas, como ele mesmo nos esclareceu : As análises psicológicas mostravam-se fecundas quando se tratava de explicar a conexão dos actos de pensamento. Mas quando se passava ao conteúdo ideológico desses actos, o insucesso era flagrante («A função da análise psicológica pareceu-me clara e fecunda quando se tratava da origem dos representações matemáticas ou da formação dos métodos práticos, que de facto está psicologicamente determinada. Mas quando se passava das conexões psicológicas do pensamento para a unidade lógica do conteúdo de pensamento (da unidade da teoria) já não se manifestava nenhuma clareza nem verdadeira continuidade»). Todo o I volume das Investigações lógicas, uma das obras filosóficas mais revolucionárias do nosso século, é uma crítica sagaz do psicologismo que, errando lamentavelmente, reduzia o conteúdo de conhecimento ao acto de conhecer. A Psicologia refere-se exclusivamente ao acto, ao passo que a Lógica, tem como objecto o conteúdo do acto, a unidade ideal de significação. Querer fundar a Lógica, e com ela a Filosofia e todas as ciências na Psicologia, é pretender buscar um fundamento empírico, e por isso mesmo contingente, para aqueles ramos do saber que, como a Filosofia e a Lógica, por sua mesma natureza prescindem da experiência e devem possuir um valor de ordem absoluta. «Os pressupostos psicológicos ou componentes da afirmação duma lei não se podem confundir com os elementos lógicos do seu conteúdo».
A Psicologia Experimental é uma ciência empírica, uma ciência de factos e, por isso, contingente segundo a sua mesma natureza; não pode ser portanto um fundamento absoluto. Um recurso à Matemática ilustra esta diferenciação. Sem contar não teríamos números ; sem somar, somas ; sem multiplicar, produtos. E contudo, as leis matemáticas puras não são «partes ou ramos da Psicologia». Os números, as somas, os produtos… distinguem-se dos actos de contar, somar, multiplicar. Assim, por exemplo, o número cinco não é o acto de contar cinco. Se a Psicologia Experimental pretendesse arvorar se em fundamento radical, todo o saber humano ficaria inconsistente e as portas abrir-se-iam a um contraditório cepticismo universal.
O fundamento primordial da Filosofia, da Lógica, de todas as ciências, só será possível se possuir um caracter «a priori» que o liberte da contingência dos factos, isto é, uma validez absoluta e, ao mesmo tempo, evidente, que lhe permita ser também um auto-fundamento.
Temos assim Husserl à busca dum fundamento absolutamente garantido por uma «evidência apodíctica».
5. — Um recurso à evidência, como último fundamento, implica necessariamente o recurso à consciência e, portanto, a uma experiência consciente. Não eqüivalerá a recair no psicologismo que se pretende evitar ? — Husserl vê a dificuldade e, por isso, um dos seus repetidos esforços é precisamente distinguir esta sua atitude experimental, ou fenomenológica, duma atitude meramente psicológica. A sua experiência não só não se referirá ao mundo exterior ou «transcendente», mas nem mesmo considerará o mundo interiormente vivido como actividade psíquica. Será uma «experiência pura», uma apreensão ou puro ver do mero conteúdo interior da actividade consciente. O filósofo poderá duvidar da existência do mundo e da própria existência mundana ou natural de si mesmo. Mas é absolutamente certo que, se penso, existe a relação «consciência de alguma coisa», sujeito-objecto no seu sentido absolutamente puro e indubitável, em que o objecto se considera não como existente em si mesmo fora do sujeito, mas como conteúdo meramente intencional ou unidade inteligível de consciência e, por isso, dum modo que Husserl caracteriza como «transcendental» cm oposição ao mundo exterior, ou mesmo interior psicológico, que é chamado «transcendente».
Os lermos tem nítido sabor kantiano, embora Husserl os use em sentido diverso. O mundo «transcendente» não fica aniquilado ou destruído, mas simplesmente posto «entre parênteses», ou «fora de circuito»; portanto, continua a valer como vale o que está entre parênteses. Este «meter entre parênteses» é precisamente «reduzir» à «consciência transcendental». O instrumento desta «redução» é a «epoché transcendental» ou suspensão radical que, em parte, substitui a dúvida metódica de Descartes. A «epoché» é assim uma espécie de instrumento de depuração que nos dará o âmago de tudo, o «sentido do mundo» e de todas as coisas, encerrando-nos nas riquezas inexauríveis da «consciência transcendental», onde tudo transparece imediatamente e com plena evidência.
O filósofo, e o cientista em geral, devem recorrer a esta «atitude transcendental», à luz da qual poderão guiar-se exclusivamente pelas coisas, que assim se apresentam com evidência, e portanto proceder com plena segurança no estabelecimento das suas conclusões. A sua tarefa será descrever aquilo que à luz desta evidência se deparar. É assim que a fenomenologia se apresenta não só como um fundamento, mas simultaneamente como um método.
De facto, um fundamento primordial que dê consistência e coesão à Filosofia e, por meio dela, a todas as ciências, tem que acompanhar, explícita ou implicitamente, o desenvolvimento científico, pois de outro modo teria que renunciar ao mesmo caracter de fundamento universal. A fenomenologia, enquanto é um apelo a evidência, é um fundamento ; enquanto esta evidência deve orientar continuamente o processo científico exigindo a descrição fiel do que se vê, é um método caracteristicamente descritivo.
6.—Se Husserl, na sua busca do fundamento último das ciências, não fez mais que apelar para a evidência que deve ser descrita com fidelidade, o que encontramos de novo no seu impulso de fundamentação? — Não é propriamente nem o apelo à evidência nem o método descritivo, mas qualquer coisa que afecta ambos os aspectos.
No apelo à evidência, Husserl caracteriza-se pelo modo como pretende levar á evidenciação através dessa «epoché» radical que nos dá o «fenômeno puro», ou seja, o «pensado como pensado» (não só o «penso», como em Descartes) de cuja evidência não se pode duvidar. Mas de que nos vale ter a evidência do meio «pensado», do «objecto intencional», se não lhe corresponde a evidência do aspecto exterior». Não será esta atitude uma concessão ao idealismo ? — Husserl caracterizou, de facto, a sua posição como um «idealismo transcendental fenomenológico», idealismo sem dúvida peculiar de caracter preponderantemente melódico, como já salientámos (p. 35), mas que deixa por evidenciar a realidade transcendente à consciência pura. Ora esta realidade, se existe, interessa necessariamente ao filósofo e, portanto, a uma Filosofia que pretenda ser fundamental.
A evidência do puro conteúdo de consciência só bastaria para resolver plenamente o problema da fundamentação da Filosofia, se esta tivesse como objecto exclusivo esse conteúdo. E o que Husserl, de facto, supõe, mas não consegue provar. Se esse conteúdo, ou pensado como meramente pensado, é apenas um meio em ordem ao conhecimento dum objecto em si, então o problema da fundamentação da Filosofia implicará também o estudo das condições de validez desse conteúdo em relação ao «em si» transcendente. Neste ponto, temos de reconhecer que Kant viu o problema dum modo mais preciso, na medida em que exigiu, para a evidenciação do problema do conhecimento, a consideração filosófica de dados provenientes do «em si» do objecto transcendente e portanto se viu na necessidade de admitir filosoficamente a existência do númeno.
7. — No método descritivo, Husserl caracteriza-se pela insistência com que se refere à fecundidade desse recurso, por ele aproveitado com sucesso por vezes extraordinário. Chega mesmo a afirmar que a fenomenologia exclui a dedução. Mas salienta, no mesmo lugar, que o fenomenólogo não pode desprezar a dedução. Pelo contrário, deve também servir-se dela como de um meio que conduz á atitude de ver ou intuir fenomenologicamente: «Fica excluída da fenomenologia …. a formação de teorias dedutivas. Contudo, não se renuncia a conclusões mediata; mas como todos os conhecimentos fenomenológicos têm que ser descritivos e puramente adaptados à esfera imanente, as conclusões, ou seja, quaisquer processos não intuitivos, conservam apenas o caracter metódico de nos levar ás coisas a que uma ulterior intuição directa da essência conferirá o caracter de dado».
De facto, ninguém deduz ou raciocina só para raciocinar, mas para atingir com evidência ou ver a conclusão. Por isso, o método fenomenológico, como Husserl o concebeu, não nos veda ainda necessariamente o acesso às verdades ultra-sensíveis. Se estas ficam comprometidas não é em virtude do caracter descritivo da fenomenologia, mas sim porque, devido á «epoché» radical, se elimina a sua existência em si, como a de todas as coisas materiais.
Já observámos como a insistência no caracter descritivo deste método, que pretende impor-se como exclusivo, implica o perigo dum encerramento no mundo meramente sensível. E que a descrição, no sentido estrito, atém-se àquilo que transparece directamente através da consciência, e portanto restringe-se aos seres materiais cuja essência constitui o objecto directamente proporcionado à nossa inteligência. Para que estes sejam ultrapassados requer-se um principio de ordem racional — o princípio de causalidade — em virtude do qual a consideração do ser sensível postula o ser ultra-sensível. A posse deste princípio supõe, evidentemente, que a consciência humana tem ânsias de ultrapassar o seu objecto directamente proporcionado e per isso implica uma concepção analógica do ser como que inata ou estrutural à mesma consciência.
Essa postulação torna-se assim evidente e, portanto, pode considerar-se uma visão que, como salientámos, Husserl não exclui necessariamente da sua fenomenologia. Mas não há dúvida que foi indirectamente que se tornou possível a presença desse objecto ultra-sensível e que o seu mesmo modo de o conceber nos proporciona, para usar a terminologia de Husserl, uma «intuição» de caracter diverso da «intuição categorical», analisada na VI Investigação lógica. A «intuição categorical» de Husserl não ultrapassa ainda necessariamente os limites do objecto proporcionado à inteligência racional que é a essência dos seres materiais.
Assim Husserl, sem fechar inteiramente o acesso fenomenológico ás verdades meta-sensíveis, particularmente ao Ser infinito, também não considerou fenomenologicamente esses objectos. Cremos mesmo que foi, pelo menos em parte, este perigo que levou Heidegger, discípulo de Husserl, a limitar a sua filosofia ao ser enquanto mundano sem poder elevar-se filosoficamente ao ser na sua universalidade plena que implicaria a existência do Ser infinito. E isto é tanto mais para salientar quanto Heidegger rejeita claramente a «epoché» radical de seu mestre.
8. — O impulso fundamentado da fenomenologia concebida por Husserl, viu-se assim, como em Descartes, condenado ao fracasso. Os filósofos continuaram a reunir-se em congressos, mas a Filosofia não se unificou. As ciências experimentais, impulsionadas pelo progresso contínuo da Matemática e da técnica, conseguiram progredir na despreocupação habitual da sua fundamentação. Husserl confiou demasiado no seu método de evidenciação. Consequentemente, o seu processo descritivo não oferece a segurança que pretendeu atribuir-lhe.
Apesar de tudo, o seu insistente apelo à evidência foi um gérmen de sinceridade, de benéficas consequências sobretudo no campo da Filosofia, e portanto uma nota fundamental em ordem ao estabelecimento mais sólido da Filosofia e das ciências. O seu método descritivo, de fecundas aplicações no campo da Psicologia, incitou, além disso, os pensadores a uma atitude de mais minuciosa análise reflexiva.
Apesar da filosofia de Husserl ser ainda, em parte, uma concessão ao idealismo, conseguiu de facto desviar os filósofos posteriores da linha idealista, introduzida por Kant, e orientá-los num sentido nitidamente realista. Kant, com a redução do «objecto em si» ao mero «númeno» desconhecido, levou á supressão desse débil «em si», e consequentemente ao idealismo; Husserl, com a teoria fenomenológica do «objecto intencional», que é a «coisa» imediatamente apreendida, levou a rejeitar esse objecto enquanto meramente idealizado e a admitir a realidade como existente em si, fora do sujeito, apreendida fenomenologicamente através da actividade cognoscitiva.