Fragata (1962) – Fenomenologia e problema crítico

Júlio Fragata S. I.
Professor da Faculdade de Filosofia de Braga

Problemas da Fenomenologia de Husserl
Edições Livraria Cruz
Braga 1962

1.— Posição do problema crítico — O problema crítico, relativo à objetividade do conhecimento humano, foi posto, com nitidez, a partir de Kant, mas surgiu através de uma evolução histórica, em que podemos distinguir três momentos fundamentais.

O primeiro equivale á questão: Onde está a verdade? Foi de todos os tempos e é a primeira preocupação explícita, no estabelecimento de qualquer ciência e no impulso filosófico de saber. Pode, porém, apresentar-se com maior ou menor acuidade, e foi precisamente o crescimento das exigências críticas, por ele levantadas, que levou ao chamado « problema critico».

No estado de reflexão inicial, a questão da busca da verdade, não examina as nossas persuasões mais espontâneas, como a existência do mundo exterior, nem, muito menos, a própria capacidade da inteligência na busca da verdade. Estas persuasões, só pelo fato de serem tão profundamente espontâneas, consideravam-se inevitavelmente verdadeiras. Levantar qualquer dúvida sobre elas, equivaleria a pôr o problema se é de dia ou de noite, quando se está ao sol. Sendo assim, somos mesmo tentados a perguntar se a acuidade do problema crítico não será tão fútil como a de algumas questões de certos escolásticos decadentes, exprobrada por defensores da posição do problema crítico.

No entanto, temos de reconhecer a legitimidade das exigências críticas, à medida que a nossa reflexão, no decurso dos tempos, se. vai tornando também mais explícitas e mais amplas.

Não há dúvida que Descartes contribuiu pura a introdução de maiores exigências, na fundamentação da verdade. Contudo, a sua mentalidade não ultrapassa ainda o âmbito deste primeiro momento, a que nos estamos referindo: O seu impulso fundamental está orientado pela mera busca da verdade, embora radicalizasse as exigências para a estabelecer, serviu-do-se do processo duma «dúvida metódica», urgida o mais universalmente possível. Algumas das persuasões espontâneas, como a existência do mundo exterior, começaram já a entrar em questão. Estas tornaram a adquirir consistência através dum processo dedutivo, a partir do cogito; mas não se averiguaram as condições que legitimam esse cogito.

O segundo passo foi dado por Locke. Pode formular-se deste modo: Como se atinge a verdade? Há o perigo de considerar esta questão como uma psicologia do conhecimento, da qual se ocuparam já amplamente a filosofia grega e a medieval. No entanto, Locke não teve em vista uma investigação meramente psicológica da atividade consciente. Estudou a origem do próprio conhecimento, para o fundamentar. Mesmo quando se manteve no plano da Psicologia, o impulso que o moveu foi sempre o seguinte: Para saber onde está a verdade, é preciso, em primeiro lugar, investigar como se obtém, ou seja, legitimar a formação das ideias, onde ela se encerra. Ultrapassou, pois, os limites de uma mera teoria psicológica da formação das ideias, e preparou o caminho para o último momento.

Este surgiu com Kant, e pode exprimir-se do modo seguinte: É possível atingir a verdade?

Aqui, o problema atinge a acuidade reflexa duma autocrítica radical da verdade, pondo-se a questão relativamente à verdade em si mesma e não só em relação a qualquer objeto possivelmente verdadeiro. Para Kant, a busca sincera da verdade também não se contenta com o estudo do modo como se adquire. É preciso ir mais longe, até à investigação daquilo que se exige para que ela se apresente como rigorosamente objetiva, ou seja, como absolutamente válida. Tal verdade ultrapassará o âmbito de qualquer persuasão individual, desde o momento que se verifique em conformidade com as exigências requeridas para que a mente a possa atingir com esse rigor.

Pôr a mesma verdade em questão equivale, portanto, a uma crítica da própria capacidade da mente para a atingir. «A priori», isto é, antes de começarmos a investigação, não se exclui ainda a hipótese da impossibilidade de determinar essas condições. Mas, no caso dessa impossibilidade, teríamos as portas abertas a um cepticismo radical. Na realidade, Kant julgou encontrar a solução numa síntese entre as determinações sensíveis, ou fenômenos, e as formas mentais, ou categorias. Mas tal síntese não implica o conhecimento do mundo exterior, nem se verifica no âmbito da Metafísica: Esse mundo, ou «númeno», é apenas «pensado»; não, «conhecido». Ficaram, assim, excluídas, do campo do nosso conhecimento objetivo, uma persuasão espontânea, que é a existência do mundo exterior, e, ao mesmo tempo, todas as outras objetividades «transcendentes» à experiência, como Deus e a alma.

2.— HUSSERL PERANTE O PROBLEMA CRÍTICO — Procuremos, agora, enquadrar Husserl neste movimento crítico.

O fundador da fenomenologia, partiu, de si, do impulso que caracterizou Descartes na busca da verdade. Situa-se, portanto, inicialmente, no âmbito do primeiro momento a que nos referimos. Onde está a verdade? — eis a preocupação inquietante que dominou toda a sua atividade filosófica. A resposta fundamental foi a seguinte: A verdade está onde se apresentar com uma evidência tal que exclua absolutamente qualquer dúvida. Pretendeu, porém, ser mais radical do que o próprio Descartes e pôs em questão a mesma existência do cogito: Aquilo que se apresenta «apoditicamente» é o «cogito puro», com os seus objetos «puramente pensados», e não o «cogito a existir», nem a existência exterior dos seus conteúdos. Aqui encontramos a razão profunda da sua «epoché», ou suspensão universal relativamente ao mundo externo e a qualquer caráter de existência em si, independentemente do sujeito.

Este radicalismo implica também uma espécie de psicologia do conhecimento, que Husserl nos apresenta sobretudo nos dois primeiros volumes de Ideen, onde nos descreve a «consciência pura» ea formação, ou «constituição», do objeto de consciência.

Ao mesmo tempo, toca-se, inevitavelmente, o terceiro momento, relativo à capacidade para atingir a verdade. O modo de resolução é, porém, diferente do adoptado por Kant. Não se buscam, primariamente, as condições de validez do nosso conhecimento objetivo. Isto implicaria, para Husserl, um processo dedutivo, contrário às aspirações da sua fenomenologia. O método husserliano apresenta um caráter analítico-intuitivo e, por isso mesmo, mais concreto. Podemos resumi-lo da seguinte maneira: Aquilo que se manifesta com « evidência apodíctica» não pode deixar de ser verdadeiro. Portanto, se alguma coisa se apresenta com essa evidência, é sinal claro que se verifica tudo aquilo que se requer em ordem à capacidade da mente para atingir a verdade.

O segredo da fenomenologia está precisamente, segundo Husserl, em colocar-nos numa posição apta para ver, e em admitir só aquilo que se vê. Por isso é que o mundo exterior e a própria existência de qualquer coisa, mesmo do sujeito pensante, fica « entre parênteses ». O que se vê é apenas o « fenômeno » de tudo isso.

Podemos, desde já, tirar duas conclusões, uma que coincide, outra que diverge de Kant. A primeira é que Husserl, como Kant, deixa de considerar filosoficamente o «conhecimento» da persuasão espontânea do mundo enquanto exterior. A segunda, em contraposição a Kant, é que o nosso conhecimento permanece válido relativamente a objetividades ultra-sensíveis, enquanto estas podem constituir também, de fato, um conteúdo de consciência. Kant, porque só admitiu a validez do conhecimento na síntese com o «fenômeno» relacionado com o «númeno» ou existência em si, considerou esses conteúdos simplesmente ilegítimos, e portanto negou a validez da Metafísica. Husserl, porque pretendeu desconectar o «fenômeno» da existência em si,suprimiu o problema da ilegitimidade desses mesmos conteúdos; por isso, também não negou a Metafísica, embora lhe desse uma interpretação diferente.

O problema do condicionalismo da objetividade do conhecimento foi posto por Husserl só secundariamente e num plano diferente do de Kant. Desenvolvendo a fenomenologia num âmbito inicialmente individualista, surgiu ao seu espírito uma dificuldade: Não será este âmbito também relativista, e portanto não terá a «evidência apodíctica» um valor apenas subjectivo? A fim de a resolver, recorreu a uma análise das condições de conhecimento objetivo para cada sujeito individual. Não as investigou, porém, como Kant, a partir duma analítica da síntese cognoscitiva, no plano meramente individual. Admitindo o princípio de que o conhecimento objetivo tem de ser válido para iodos, concluiu que tal conhecimento estaria fenomenologicamente evidenciado quando o sujeito fenomenológico o atingisse como comum a todos os outros sujeitos. Assim formulou a teoria da «intersubjetividade», cujas dificuldades, no próprio sistema de Husserl, são patentes e já tivemos ocasião de salientar neste volume.

O problema crítico em Husserl, relativo á capacidade da mente em ordem á verdade objetiva, e, em particular, ao conhecimento do mundo na sua existência exterior, conserva, portanto, o seu enigma. Será possível, apesar de tudo, uma solução fenomenológica do problema crítico, ou, pelo menos, não terá a fenomenologia uma função essencial nesta investigação?… Este o assunto que pretendemos esclarecer aqui.

3.— O fenômeno husserliano como ponto de partida na solução do problema crítico

O início mais radical do filosofar, e portanto o fundamento do qual temos de partir, em ordem à solução do problema crítico, deve possuir a maior evidência a que nos é possível aspirar. De outro modo, teríamos um sinal claro de que deveríamos radicalizar ainda mais a reflexão. Neste ponto estamos de acordo com Husserl.

A nossa coincidência pode ser levada mais longe: Aquilo que apresenta este supremo grau de evidência é precisamente o que se vê com toda a clareza, que é o conhecido, enquanto conhecido, — o « fenômeno » da fenomenologia de Husserl. Chegamos, portanto, a uma conclusão: A fenomenologia husserliana, enquanto apela para a evidência do cogito, seja qual for a origem do conteúdo deste e, portanto, mesmo enquanto conserva «entre parênteses» qualquer caráter existencial, é o início necessariamente primordial.

Significa isto que admitimos a fenomenologia de Husserl como insofismável fundamento último do saber humano e, por conseguinte, da solução do problema crítico?… Estamos perante uma pergunta equívoca que depende do sentido que se der ao conceito de «fundamento último».

Se por «fundamento último» entendemos um apoio de caráter ontológico, de tal maneira que essa atitude, pela qual tudo se considera «entre parênteses», se torna definitiva, sem admitir a possibilidade do levantamento dos «parênteses» para sair como que fora de si, então afigura-se-nos claro que a fenomenologia de Husserl não oferece as garantias exigidas pelo «último fundamento». Já tivemos ocasião de mostrar, noutros trabalhos aqui publicados, como tal interpretação—que se nos apresenta genuinamente husserliana — nos leva ao contra-senso duma construção de significações puras que, ultimamente, não podem admitir significação, por falta de consistência ôntica.

Mas se por «fundamento último» queremos significar o início da investigação, cuja análise reflexiva exige a necessidade de quebrar os « parênteses », a fim de discernir aquilo sem o que essa mesma evidência inicial se tornaria insustentável, então admitimos ser o «fenômeno» husserliano um verdadeiro início radical. Neste caso, porém, adquire o sentido dum ponto de partida concreto e imediato, sem o qual seria impossível proceder, em ordem a investigações ulteriores; trata-se dum fundamento último de caráter «psicológico», ou metodológico, embora necessário, e não ainda ontológico.

Não equivalerá esta concepção ao regresso a uma espécie de psicologismo? Expliquemo-la mais em pormenor.

Quando temos consciência de conhecer com evidência, estamos perante um «fato» que se desenvolve no espírito cognoscente, ao qual, por isso mesmo, podemos chamar «psicológico». Como este «fato psicológico» é, por hipótese, evidente, não pode ser negado, e tem de implicar tudo aquilo, sem o que, teria de ser negado. Este condicionalismo é precisamente o fundamento ontológico radical. Verifica-se aqui um caso semelhante ao que acontece com uma máquina: O que ela produz implica um funcionamento necessário e este, por sua vez, uma constituição fundamental. Aquilo em que primordialmente se cai na conta pode ser o seu funcionamento produtivo; mas é claro que seria absurdo negar-lhe uma estrutura explicativa do funcionamento, bem como tudo aquilo que se exige para que ela possa entrar em ação. Assim também, atingindo o fenômeno, caímos na conta da atividade cognoscitiva da mente. E não há dúvida de que isto é aquilo de que explicitamente primeiro caímos na conta. Se pretendemos ficar só no fenômeno, de modo nenhum investigamos o mais radicalmente possível. Para além da atividade cognoscitiva do fenômeno, temos de admitir uma estrutura da mente e o que se exigir para que esta entre em ação, em ordem à formação do fenômeno. Só assim atingimos o fundamento ontológico da sua mesma evidência. Foi este aspecto que Husserl, a nosso ver, descurou. Respondendo à questão inicial do interesse da fenomenologia, relativamente à solução do «problema crítico», podemos dizer o seguinte: A fenomenologia, tal qual foi apresentada por Husserl, não oferece meios suficientes para essa solução, em virtude de considerar como antifilosófica a «atitude natural» e de admitir exclusivamente a «atitude transcendental», que pára no mero « fenômeno», ou na mera função cognoscitiva enquanto tal. Mas o fenômeno husserliano apresenta-se-nos como o único ponto de partida para uma investigação sincera do problema crítico. Isto significa que a fenomenologia de Husserl, no seu núcleo essencial, que é o «fenômeno puro», precisa de ser como que ampliada e completada dum modo diferente, mas em virtude da sua mesma essência. Só nesta ampliação adquire eficácia decisiva e se manifesta depurada do «idealismo fenomenológico» que a corrompe.

Poderá dizer-se que, neste caso, já não nos mantemos numa «fenomenologia husserliana». E verdade. Mas também não há dúvida que aproveitamos a sugestão fenomenológica de Husserl naquilo que ela tem de mais central que é a concepção de «fenômeno puro», e lhe damos apenas uma orientação diferente, em ordem à sua eficácia.

Perante a evidência do «fenômeno», temos uma conclusão inevitável: o problema da capacidade da mente, em ordem a uma evidência, pelo menos psicológica, está, de um modo concreto, ou onticamente, resolvido em nós; caso contrário, essa evidência não poderia transparecer. Falia nos contudo — e é o trabalho mais difícil — investigar como está resolvido em nós. Partindo, portanto, da evidência do fenômeno husserliano, refletiremos sobre as suas implicações para ver se, através delas, encontramos uma justificação ontológica e, com ela, uma consolidação da mesma evidência que assim ficará objetivamente fundamentada, revelando-se a superação do seu caráter meramente psicológico ou subjectivo.

Queremos, além disso, salientar que esta investigação se efetua não só a partir do fenômeno na sua acepção mais rigorosamente evidente, que admitimos verificar-se no «fenômeno puro» de Husserl, mas também nas suas aplicações mais vastas que se referem, em conformidade com a própria mente de Husserl, ao conhecimento de coisas quer materiais, quer imaterial, ou supra-sensíveis. Deste modo, transparecerá uma justificação do nosso conhecimento em geral, por mais vasto que seja o âmbito cognoscitivo.

4. — Natureza finita da evidência do fenômeno — Julgamos necessário começar por uma determinação da própria natureza da evidência do fenômeno, tal qual se apresenta para a inteligência humana. Este ponto é importante, pois tratamos da fundamentação, não de qualquer conhecimento, mas do nosso conhecimento.

A nota fundamental que se manifesta é a seguinte: Estamos perante um conhecimento que não é absoluto. Já Husserl o admitiu, sem discussão. Um conhecimento absoluto tem de ser plenitude; portanto, não pode admitir variantes nem de intensidade, nem de multiplicidade. Ora é fenomenologicamente evidente que o nosso conhecimento se desenvolve num fluxo de variações incessantes. O seu caráter deficiente, finito, é inegável, e não temos que insistir mais em evidenciá-lo. E inevitavelmente a partir deste ponto que devemos explicitar todas as outras implicações da manifestação da evidência, ou do fenômeno, quaisquer que sejam as vantagens ou desvantagens que este aspecto de finitude acarrete.

Comecemos por salientai uma consequência de caráter geral que, desde já, nos parece oportuna: Se o nosso conhecimento é finito, ou deficiente, u nossa evidência nunca pode ser absoluta. Haverá sempre, na nossa reflexão, por mais radical que seja, um fundo de irreflexão. Portanto, nem a maior evidência que possuímos, que é a evidência do fenômeno, nem, muito menos, aquilo que nela se implica pode satisfazer-nos de tal modo que se imponha com plena isenção de sombras.

Este pormenor leva-nos a compreender a ânsia de Husserl por urna evidência cada vez mais perfeita e que continuamente se afastava como ideal inacessível. Daqui, a sua preocupação inquietante de verdade que não conseguiu acalmar. E que o próprio sentimento concreto de finitude, sempre vivido, embora nem sempre reflexamente considerado, gera em nós um desejo espontâneo de mais, que nunca podemos completar, porque não é possível renunciar à própria finitude. A «evidência absoluta» apresentou-se, portanto, para Husserl, e com razão, como um ideal inatingível, mas que, ao mesmo tempo, tem de nos orientar. Só nos resta contentarmo-nos com uma evidência apenas suficiente, ou seja, na expressão de Husserl, pela qual se veja, dum modo insofismável, que o contraditório não pode ser.

O caráter não-absoluto da evidência explica dois pontos, que convém frisar: Em primeiro lugar, compreende-se a possibilidade de emitir um juízo de dúvida, mesmo quando se vê com evidência, — possibilidade que, para a Inteligência perfeitamente absoluta, ou infinita, seria absurda. Daqui segue-se que não podemos dar ouvidos a essa impressão de dúvida, desde o momento que a evidência se manifeste como suficiente. Repudiar esta conclusão seria aderir a uma atitude negativista que só atende ao escuro sem querer ver o claro. Ora, os dois aspectos são evidentes: Porque há sombras, a evidência não é perfeitamente absoluta; mas porque há luz, e na medida em que a há, a evidência é suficiente.

Mais difícil se torna determinar especulativa mente essa suficiência. Notemos, porém, que esta determinação especulativa é também vivida, e portanto não perde inteiramente o seu caráter prático: Apresenta-se como a diferença que existe entre a luz e as sombras. E preciso ter cautela em não afirmar como claro o que é obscuro, ou duvidoso; nem, como duvidoso, o que é suficientemente claro. Tal suficiência é relativa à própria evidência e exclui, por isso, o contraditório, o poder ser de outro modo. Segue-se daqui quo o nosso conhecimento, apesar ile nflo ser ciai idade pura, nem, por esse motivo, deixa de se manifestar, em virtude dessa suficiência, como absolutamente seguro.

O segundo aspecto que convém salientar é o seguinte: Se a evidência possuísse um caráter absoluto, isto é, tal que não pudesse excogitar-se mais intensa, o problema crítico não poderia ser posto. Essa evidência excluiria qualquer possibilidade de dúvida; seria plenamente aquietante e não daria fundamento para pôr em questão fosse o que fosse. A sua mesma lucidez absoluta afastaria qualquer possibilidade de erro, dum modo perfeitamente decisivo.

Quisemos chamar a atenção para estes aspectos a fim de, por um lado, compreendermos, desde já, a dificuldade da solução deste problema e, por outro, não cairmos na tentação de o julgar insolúvel.

Partindo do caráter finito da nossa atividade cognoscitiva, e precisamente porque essa atividade se mostra finita, é que temos de procurar fundamentá-la, encontrar as suas raízes justificadoras. Só assim poderemos afirmar que a evidência do fenômeno ultrapassa os limites duma evidência psicológica, ou relativa, e adquire um valor absoluto, ou objetivo.

Em ordem a este fim, entremos em novas considerações.

5.— Primeira implicação da evidência finita: caráter existencial do sujeito — Em primeiro lugar, um conhecimento finito não pode ser perfeita identidade consigo mesmo. Portanto, encerra uma dualidade que separará necessariamente cognoscente e conhecido. Isto não só implica uma dependência do cognoscente relativamente ao conhecido — o que, de modo nenhum se dá no conhecimento absoluto — mas revela também o caráter deficiente do sujeito que conhece. Poderia alguém julgar que essa deficiência se explica exclusivamente pela dependência do conhecido. Se assim fosse, cognoscente-conhecido formariam uma dualidade em si mesma absoluta. Mas isto é absurdo, porque o absoluto perfeito não pode admitir dualidade. Segue-se, portanto, que o cognoscente tem de estar dependente de qualquer coisa que esteja para além da dualidade cognoscente-conhecido. Esse «qualquer coisa» é o Ser absoluto.

Ora, ser dependente dum Ser absoluto é existir em si, possuir uma existência ôntica, « transcendente », no sentido husserliano da palavra. E este caráter é uma exigência necessária da relação cognoscente conhecido, uma vez que esta não suprime a dualidade real. Chegamos a uma conclusão decisiva c importante: O filósofo, se quer levar a sua reflexão o mais longe possível, não pode considerar a existência do próprio eu « entre parênteses», sem admitir o caráter em si dessa existência. O aparecimento do «fenômeno», porque revela um conhecimento deficiente, exige um sujeito cognoscente, na sua existência «natural». O «eu puro» de Husserl fica portanto ultrapassado, exigindo o seu caráter ôntico de existência, independente da mera correlação eu-objeto.

6. — Segunda implicação da evidência finita: o sujeito é determinado extrinsecamente — Vamos agora entrar num segundo ponto, não menos importante, e de mais difícil esclarecimento. Procuremos segui-lo com atenção e sinceridade. O problema é o seguinte: Não implicará também a nossa evidência do fenômeno, precisamente porque não é absoluta, um apoio, ou objeto exterior, sem o qual o mesmo fenômeno se torna absurdo?…

Qualquer sujeito conhece explicitando-se. Por isso, é que o conhecimento é essencialmente uma atividade do sujeito, como que o existir da sua vida, enquanto transparente a si mesma. O «fenômeno» é uma destas explicitações. Não há dúvida, portanto, que é produzido pelo sujeito, que jorra da mesma vitalidade deste. Fiéis ao nosso dever de investigar o que está implicado na própria atividade, precisamos de inquirir ns exigências do aparecimento do «fenômeno», atendendo a que estamos no âmbito dum conhecimento deficiente.

Quando o conhecimento é absoluto e, portanto, o sujeito infinito, porque este é plenitude, é também atividade pura e autodeterminação puramente livre. As explicitações exteriores do seu conhecimento são as coisas no seu existir, — os seres finitos. Seria absurdo exigir uma determinação diversa do próprio poder plenamente auto-determinante do sujeito, porque isso equivaleria a negar a hipótese do Sujeito infinito. O seu conhecimento é, portanto, exclusivamente projetivo e constituinte. A coisa, constituída no seu «em si», porque é também uma explicação do Ser infinito, não aumenta o ser; mas porque se origina uma alteridade, apresenta-se como um novo ser. No entanto, esta novidade tem uma relação absoluta e integral ao Ser infinito, fora do qual não pode encontrar outra razão, nem mesmo parcialmente explicativa.

No conhecimento humano, o fenômeno também é uma explicitação do sujeito; de outro modo, o conhecimento não seria do sujeito e, portanto, não se daria. Por isso é que o conhecer não aumenta a realidade em si. Mas não há dúvida que uma nova «realidade» se opõe fenomenologicamente ao sujeito. Temos de buscar a razão desta oposição. Se a encontrássemos só no sujeito, este transformar-se-ia em sujeito absoluto, o que é contra a própria evidência do conhecimento humano, essencialmente finito, deficiente, não plenamente dominador.

Segue-se daqui que o sujeito finito, ao conhecer, precisamente porque não é autodeterminação pura, tem de ser determinado, necessitado por qualquer coisa que não é ele e que forneça a explicação do aparecimento de determinado fenômeno.

Acabamos de dar um passo importante: Há qualquer coisa, para além do sujeito e do fenômeno, a explicar porque é que o sujeito se explicita precisamente nesse fenômeno, lista conclusão bastaria, de si, como refutação dum sistema filosófico que pretendesse ter atingido uma fundamentação radical parando no « fenômeno puro ». Mas julgamos, pelo menos conveniente, ir mais além e averiguar o que vem a ser esse «qualquer coisa» que determina ab extrinsico, ou exteriormente, o conhecimento humano.

Desde já se impõe que deve possuir uma proporção que explique precisamente a natureza de tal fenômeno. Equivale a dizer que esse «qualquer coisa» tem de ser um exemplar do qual o fenômeno é uma imagem, se n&o inteiramente perfeita, pelo menos fiel. De outro modo o fenômeno ficaria sem a suficiente explicação.

Duas hipóteses, a priori, são excogitáveis: Esse «qualquer coisa » é ou o Ser infinito, ou um ser finito. A primeira hipótese foi rejeitada por Husserl, com suficiente clareza, ao exprobar a Descartes o apelo à veracidade divina para fundamentar a existência do mundo exterior. Apesar de tudo, Descartes não raciocinava mal: Dada a convicção íntima que possuímos do mundo exterior, Deus, que só pode ser concebido como perfeitamente veraz, enganar-nos-ia se nos proporcionasse diretamente as ideias ou permitisse que elas nos fossem impostas por algum «mau gênio», sem os seus equivalentes exteriores. Não é contra o raciocínio cartesiano que Husserl se insurge, mas contra o próprio apelo à veracidade de Deus, que julga fora de propósito, como « deus ex machina ». Portanto, se tivesse investigado explicitamente a exigência de qualquer coisa exterior, ou «transcendente», como fundamento do « fenômeno », é mais natural que tivesse optado antes pela segunda hipótese e, de tal modo que ela excluísse também a possibilidade de um « espírito enganador» a influir no nosso conhecimento. Vejamos se assim deve ser.

7. — Caráter existencial do determinante extrínseco do sujeito — À primeira vista, poderíamos julgar que o Ser infinito, assim como pode produzir todas as coisas, também pode originar em nós a representação daquilo que quiser, mesmo sem a existência em si daquilo que é representado. Foi esta a convicção de Berkeley que, deste modo, julgou poder negar o mundo corpóreo para admitir só o espiritual. Analisemos se estamos perante uma verdadeira possibilidade.

O próprio Ser infinito, apesar da sua onipotência, não pode realizar o contraditório, porque este é precisamente aquilo que de modo nenhum pode ser, ou seja, a mesma negação da explicitação ou imitabilidade do Ser infinito. Ora, a evidência do fenômeno só pode ser originada de tal modo que se explique a sua determinação. Portanto, mesmo o Ser infinito, para o fazer, terá que explicitar-se de um modo determinado, uma vez que se trata de provocar a evidência de determinado fenômeno. Explicitar-se só no fenômeno é absurdo, porque ficaria por explicar a mesma evidência e, então, o fenômeno não poderia aparecer. Explicitar-se só na atividade do sujeito é ainda mais inconcebível, porque, neste caso, o conhecimento não seria do sujeito, uma vez que a atividade nele manifestada seria do Ser infinito.

Só nos testa a hipótese duma modificação interna no mesmo em si do sujeito, para que este, assim modificado, gere a evidência do fenômeno, caindo na conta dessa implicação.

Mas esta tem de ser de tal gênero que explique a própria alteridade que se evidencia no nosso processo cognoscitivo; deve, portanto, estar no sujeito e manifestar-se como diferente dele. Tal diferenciação exige, pois, que essa suposta modificação, introduzida no sujeito, seja fruto duma ação do Ser infinito na medida em que é provocada por alguma coisa já determinada fora do sujeito; de outro modo, talvez houvesse atividade, mas, de modo nenhum, alteridade manifestada. Ora isto equivale precisamente a afirmar que o determinante cognoscitivo do sujeito não pode ser diretamente o Ser infinito, mas só aquilo que conhece; não precisamente enquanto se conhece, mas enquanto tem uma existência pré-dada, explicativa do próprio ato de conhecer.

O sujeito cognoscente tem, portanto, de ser afetado em si mesmo, em virtude duma implicação com aquilo que conhece, mas determinada necessariamente por uma explicitação do Ser infinito diferente quer do fenômeno, quer da atividade do sujeito, quer do mesmo sujeito, lista explicitação, cuja implicação no sujeito adiante esclareceremos melhor, é precisamente um ser criado exterior, que tenha a proporção devida com o aparecimento de tal fenômeno.

Deste modo, a exclusão da hipótese de Berkeley implica não só — podemos dizer a fortiori — o afastamento de um «espírito enganador», mas também a existência de um mundo exterior, como fundamento da própria evidência cognoscitiva. Deus, criando um sujeito cognoscente, tem de lhe criar, necessariamente, o seu mundo cognoscível, como, criando um ser vivo, lhe cria também necessariamente o seu ambiente vital.

Depois deste esclarecimento, atingimos um dos principais fins que tínhamos em vista: Mostrara insuficiência do próprio radicalismo husserliano, uma vez que a «atitude natural» se apresenta como exigência fenomenológica da própria « atitude transcendental ». A existência do mundo «transcendente» não é objeto duma mera convicção espontânea; c uma exigência da reflexão transcendental.

Falta-nos, contudo, mostrar o alcance desta conclusão cm ordem á objetividade do nosso conhecimento e, portanto, em relação á nossa capacidade radical de atingir a verdade dum modo não apenas relativo, mas absoluto, apesar da potencialidade finita do conhecimento humano. Antes, porém, queremos apresentar a prometida explicação da determinação do sujeito relativamente à formação do fenômeno. Como conclusão, não deixaremos de tocar também uma dificuldade que naturalmente nos terá já ocorrido: Como é possível, apesar de tudo, errar?

8. — Implicação e explicitação do objecto no sujeito — Nenhum ser existe inteiramente isolado. Isto significa que os seres, em união com o Ser infinito, do qual derivam, formam uma única comunidade que exprimimos pelo conceito de ser. O perigo está em considerar esta união dum modo demasiado extrínseco. Nós, homens, vivemos num universo espacializado e somos tentados a exprimir a união só em função das relações espaciais. Mas é evidente que Deus, apesar de ter criado o espaço, não cria no espaço, embora tenha criado seres com relações espaciais. A criação não supõe, portanto, necessariamente, distâncias espaciais paia explicar a diversidade. Cada ser é, na sua individualidade e na sua comunidade com todos os outros, por um vínculo mais íntimo do que o espacial. Uma união não só « ab extra», vinculada pela causalidade recíproca, mas sobretudo «ab intra», originada pela causa comum, engloba todos os seres. Quer isto dizer que, sem prejuízo da sua individualidade — porque, de outro modo, não seria tal ser — qualquer ser implica em si todos os outros, porque, de outro modo, não haveria comunhão mútua no ser e, portanto, não se existiria.

Nicolau de Cusa, em pleno século XV, viu já com profundidade esta implicação recíproca dos seres, exprimindo-a, sinteticamente, em três palavras: «Quodlibet in quolibet» — «cada qual em qualquer outro». Leibniz viveu deslumbrado com esta mesma verdade, declarada imaginativamente pela concepção da monada como «espalho do universo», Exagerou num sentido demasiado determinista — que aqui não pretendemos refutar esta implicação; deu lhe, além disso, um valor exclusivamente «ab intra» e o levou à «harmonia pré-estabelecida» e à negação da atividade « ab extra ».

A Escolástica exprimiu esta concepção comunitária por um dos seus mais característicos e profundos conceitos, — a analogia, Não existe só um conhecimento analógico. Os seres mesmos são análogos entre si. Isto significa que qualquer ser, na sua mesma singularidade, é também, a seu modo, necessariamente qualquer outro. A analogia pretende, precisamente, fazer a síntese entre o «ser ele mesmo» e o «ser outro »; e isto não só em ordem ao conceito geral de ser, mas também relativamente a qualquer ser individual.

Esta implicação mútua dos seres é concreta, como a própria existência. Portanto, o ser individual não só engloba em si, a seu modo, tudo o que pode existir. Assim como o Ser infinito, porque potencialidade absoluta, é concebido como encerrando em si tudo o que pode ser e, além disso, n’Ele se discriminam misteriosamente os seres atuais, também o ser finito implica, na sua potencialidade imperfeita e, por conseguinte, dum modo imperfeito, a discriminação dos seres atualmente existentes.

Em ordem ao problema que nos interessa, tiramos daqui esta importante conclusão: Conhecer é explicitar, ou seja, cair na conta desta implicação concreta. Examinemos, mais de perto, este ponto, tendo sempre em vista a dilucidação do conhecimento humano.

Em primeiro lugar, atingimos nele o caráter a priori, essencial em qualquer conhecimento. Conhecer é conhecer-se implicado noutro, ou, o que é equivalente, conhecer o outro implicado em si; é portanto um viver, uma operação do caráter imanente cuja perfeição sobe com o grau de imanência, interioridade ou aprioridade.

No Ser infinito, este caráter «apriori» é absoluto. Por isso, o seu conhecimento é também duma independência absoluta, puramente auto-determinativo, perfeitamente dominador. Não há sombras no seu conhecer. Por este motivo, tal conhecimento constitui integralmente o ser finito, cuja cognoscibilidade fica assim plenamente exaurida no seu em si. O ser finito só é em si precisamente enquanto projectado pelo conhecimento infinito, que não pode ser determinado por nenhum influxo do exterior.

Em qualquer ser finito, e devido á sua mesma finitude, este caráter não é de uma aprioridade absoluta. Mesmo que se trate de um puro espírito, o conhecimento finito implica sempre um aspecto «aposteriori».

O Criador conhece o que quer; a criatura conhece só o que se lhe impõe. No entanto, também nela o conhecimento consiste num cair na conta da implicação do outro em si. Como, porém, esta implicação não depende dela, mas do fato de o outro ter sido constituído em si pelo Ser infinito, o seu conhecimento é essencialmente dependente em relação àquilo que é.

Tal dependência manifesta a causalidade daquilo que é, exercida sobre o sujeito cognoscente, que assim fica determinado em ordem a tal conhecimento. Uma vez produzida essa causalidade, o sujeito encontra-se apto a explicitar-se nesse outro, ou seja, a produzir de si mesmo, assim determinado, um ato imitativo do próprio ato criador. E por este ato que o ser finito conhece. O Ser infinito, porém, em virtude da plena autodeterminação do conhecer, exaure inteiramente o outro no seu em si. O ser finito não pode consegui-lo: Conhecê-lo-á no seu em si só na medida em que o explicitar para si.

O grau de explicitação varia com a perfeição do sujeito. É concebível um ser, por assim dizer, tão distraído, que seja, por natureza, incapaz de cair na conta. Tal é o ser puramente material. O seu caráter de « alerta» não existe e, por isso, não pode conhecer, por mais que seja excitado. Um ser nesta condição, não é, propriamente um «sujeito»; só pode ser « objeto ».

Também não repugna um ser que, por natureza, esteja tão alerta que não precise duma aproximação espacial, mas lhe baste uma mera presença virtual para cair na conta da implicação do outro em si. Tal deverá ser o conhecimento do espírito puro que, deste modo, conhece com uma dependência ínfima do outro enquanto exterior e, por isso, goza dum caráter «apriori» muito peculiar.

O conhecimento humano, porque supõe um sujeito afetado de materialidade, não pode determinar-se com uma presença meramente virtual. Precisa também, pelo menos como fundamento, duma presença material ou espacial. Este o motivo porque o seu caráter «a priori» é mais deficiente e apresenta um acentuado cunho de « a posteriori ».

No entanto, o sujeito humano, implica realmente em si qualquer outro ser, mesmo imaterial, em virtude do princípio de analogia a que nos referimos. Uma vez excitado fundamentalmente por uma atividade material, pode, apoiado nela, cair na conta, embora dum modo mais imperfeito, de outras implicações em si, mesmo imateriais. Deste modo, encontra explicação e evidência de «fenômenos puros» de caráter metempírico, que nem Husserl, nem mesmo Kant, se atreveram a negar, e que ficou também abrangida pelo nosso ponto de partida inicial. Todo o problema kantiano, relativamente a este fato, perante o qual estamos — quer se chame «fenômeno» metempírico, quer se chame «ideia» — refere-se não à evidência da própria apresentação, mas ao seu caráter objetivo. Deste trataremos em seguida.

Convém, no entanto, salientar que a raiz da superação para além do âmbito da quididade material, se encontra já na própria apreensão de qualquer ser material; esta só adquire lucidez reflexa, na medida em que a explicitação se unifica não simplesmente no «ser enquanto material», mas no «ser em geral»,— o que nao se verifica no conhecimento meramente sensível. Não queremos deter-nos na exposição deste aspecto, que nos levaria a alongar-nos demasiado, e podemos prescindir dele num esclarecimento, apenas sumário, da objetividade do nosso conhecimento. Mas queremos recordar que ele implica uma justificação do nosso processo dedutivo, mesmo para além do âmbito do ser material. A possibilidade da Metafísica, negada por Kant, transparece assim à luz da justificação do conhecimento humano como tal: Ou não se justifica nenhuma evidência inicial, ou, se alguma se justifica, pode justificar-se qualquer, mesmo que transcenda o fenômeno de ser material. O valor das nossas «ideias », no sentido kantiano, está implicado no valor dos nossos «conceitos». Por outras palavras, a plena justificação do conhecimento científico e matemático, implica a justificação do conhecimento metafísico. O raciocínio, em qualquer das suas modalidades, é uma forma de explicitar o outro em nós, dum modo mais ou menos perfeito, conforme a proporção desse « outro » conosco.

9. —A OBJECTIVIDADE DO CONHECIMENTO — O esclarecimento que acabamos de dar da nossa actividade cognoscitiva ajudou-nos, sem dúvida, a compreender a exigência de um ser proporcionado, mas exterior ao próprio fenômeno, como explicação imediata do mesmo aparecimento fenomênico. Também nos proporcionará uma intelecção mais penetrante, em ordem ao problema da objetividade do conhecimento.

Em que consiste a objetividade? — Há o perigo de a definir: «Conhecimento da coisa como é em si mesma». Tal definição tem graves inconvenientes. O principal é o seguinte: A. partir dela, não entendemos como pode o conhecimento infinito ser «objetivo», sem depender da coisa em si. Ora, vimos já como tal dependência é absurda no conhecimento plenamente auto-determinante.

O «conhecimento da coisa como é em si mesma» apresenta-se antes como um efeito da própria objetividade que, portanto, encerra um caráter formalmente diverso. O conhecimento é «objetivo» quando o que se conhece é válido no âmbito do conhecimento como tal, ou seja, para qualquer sujeito cognoscente. Opõe-se, portanto, ao conhecimento meramente «subjetivo» que, de si, só pode apresentar-se como válido para um, ou para determinados sujeitos. Pela objetividade, o conhecimento ultrapassa os limites do sujeito concreto, perde o seu caráter exclusivamente relativo, e adquire um aspecto absoluto.

Husserl viu bem que a objetividade consiste precisamente neste caráter «absoluto». A sua deficiência esteve em querer estabelecê-lo a partir duma verificação da intersubjetividade. Com efeito, esta verificação só tem valor, na medida em que estiver fundamentado o próprio valor do conhecimento individual, uma vez que ela se apóia necessariamente nele. Não nos é, pois, lícito partir duma verificação da identidade de conhecimento em muitos para o valor do conhecimento individual. O caminho inverso é o único que se impõe. Se este é intransitável, o problema ficará por resolver. Além disso, a própria intersubjetividade não se manifesta suficientemente ampla: Enquanto fenomenologicamente verificada, não ultrapassa os limites duma multidão de sujeitos humanos; por isso, não alcança um caráter absoluto, válido para qualquer outro sujeito excogitável.

Atingimos a dificuldade fundamental desta questão : Como é possível fundamentar a objetividade do «meu» conhecimento, ou seja, mostrar que ele tem de ser válido para «qualquer» sujeito cognoscente, se eu só lenho como dado imediato o meu conhecimento individual?… Foi a esta objeção que procuramos responder, quando vimos que o conhecimento individual implica, como fundamento da sua mesma evidência, um objeto proporcionado que transcenda a correlação sujeito-objeto. Todo o nosso esforço se concentrou sobretudo nesse ponto.

Estabelecido que o meu conhecimento só é conhecimento na medida em que explicita em si o outro, e que esta explicitação só é possível se o outro existe em si e influencia o sujeito cognoscente, chegamos à evidência de que a natureza deste conhecimento consiste em reger-se por aquilo que é, independentemente dele mesmo. Trata-se dum conhecimento imposto por aquilo que é, e esta imposição invade o conhecimento finito, como tal. Segue-se daqui que determinado conhecimento é válido não só para mim, mas também para qualquer sujeito finito que conheça, mesmo que este ultrapasse os limites dum indivíduo humano. Será também válido para o Ser infinito? — Sim, porque aquilo que é impõe-se a mim mesmo e a todos os sujeitos finitos em virtude de ser uma explicitação primordial do conhecimento infinito.

Alcançamos assim o caráter verdadeiramente absoluto do nosso conhecimento individual, que se apresenta internado no conhecimento como tal, e, portanto, válido para qualquer sujeito cognoscente.

Resumindo, podemos estabelecer este nexo: Porque a própria evidência do nosso conhecimento do fenômeno exige a coisa em si, rege-se necessariamente por ela; como a coisa em si só é, na medida em que está relacionada com a inteligência infinita ou absoluta, essa evidência adquire também certo valor absoluto e, consequentemente, atinge a coisa como é em si mesma. É, sem dúvida, deficiente, este nosso conhecimento; mas, apesar de tudo, exato. O Ser infinito só pode explicitar-se em seres finitos, e portanto deficientes, mas que, nem por isso deixam de ser exatos, na sua entidade. De modo semelhante, qualquer conhecimento finito, e portanto o nosso, só pode explicitar-se no outro duma maneira deficiente em relação a esse mesmo outro. Mas esta explicitação deficiente também não deixa de ser exata. A deficiência da criatura, resultado do conhecimento infinito, explica a possibilidade de outras criaturas; a deficiência do conhecimento finito, possibilita um progresso contínuo, embora sempre exato, no conhecimento do outro.

10. — Uma objeção: a possibilidade do erro — Só nos falta afastara objecçâo a que já aludimos: Como é possível, apesar de tudo, errar? A resposta, de qualquer modo que seja, tem que reduzir-se ao seguinte: O erro não afeta essencialmente a objetividade do nosso conhecimento; caso contrário, destruí-la-ia e, consequentemente. todo o empenho, até agora dispensado, ficaria frustrado pela realidade concreta do erro. Esforcemo-nos, pois, por mostrar, em breves traços, como este não destrói a objetividade do conhecimento.

Em primeiro lugar, vale a pena chamar a atenção para o seguinte: Ao evidenciarmos a objetividade do nosso conhecimento, não afirmamos que, quando conhecemos, atingimos sempre, inevitavelmente, a verdade. Mostramos apenas que o nosso conhecimento é, de direito, objetivo e que, portanto, pode atingir a verdade que sabe não ser só sua, mas de qualquer sujeito cognoscente. A possibilidade de errar, em determinado conhecimento, não destrói a possibilidade absoluta de não errar.

Encontrar-se-á talvez quem se contente apenas com esta resposta. Tentemos, porém, aprofundar um pouco mais, mostrando que, nem no próprio conhecimento errado se dá uma violação essencial da objetividade do conhecimento. Este passo parece-nos necessário, uma vez que procuramos haurir a objetividade, tomando como ponto de partida não o conhecimento certo — o que implicaria um círculo vicioso — mas o conhecimento humano em geral. Portanto, a objetividade deve também verificar-se, de algum modo, mesmo no conhecimento errado, embora não precisamente enquanto é errado.

Comecemos por perguntar: O erro destrói a verdade?— É evidente que não: Opõe-se a ela; opor-se não é destruir. A verdade é precisamente aquilo que de modo nenhum pode ser destruído, por maiores oposições que encontre. O que é, não pode, como tal, deixar de ser, quaisquer que sejam os esforços para fazer ver que não é, e o nosso conhecimento é, por essência, manifestativo daquilo que é. Caso contrário, não poderia ser conhecimento, nem sequer errado. Segue-se daqui que a verdade subsiste, mesmo quando erramos; acompanha necessariamente o erro, como fundamento dele.

De fato, quando erramos, ou vemos, ou não vemos o erro. Se o vemos, então é evidente que conhecemos a verdade; caso contrário não poderíamos conhecer que erramos. Se o não vemos, a verdade deixa apenas de ser afirmada; nem por isso deixa de existir, mesmo enquanto inerente ao próprio conhecimento errado. Negar esta conexão, equivaleria a defender o caráter absoluto do erro e, portanto, a identificá-lo com a verdade. Como o mal só existe num bem, e só pode ter como causa um bem, assim o erro só existe na verdade e só pode ter como causa a verdade. O erro brota sempre de um impulso fundamental para a verdade. Se alguém consegue provar que erramos, prova, pelo mesmo fato, que acertamos. Chegamos, assim, a uma conclusão surpreendente, mas inegável: Existe o erro, — logo existe a verdade; erramos, — logo conhecemos com objetividade. Aquilo que parecia uma objecção é, de fato, uma confirmação.

Aqui, poderíamos terminar. Mas, sem desenvolver uma doutrina filosófica sobre o erro, não deixa de ser conveniente dar um passo mais. Reconhecendo, muito embora, que o erro não contraria a objetividade do nosso conhecimento, somos tentados a perguntar como é ele, apesar de tudo, possível.

O erro está inerente ao nosso conhecimento, em virtude do seu caráter finito no qual, logo de início, insistimos, Não prova, como vimos, que deixemos de conhecer com objetividade, mas sim que não somos conhecimento infinito.

Falamos, anteriormente, que o sujeito, paia conhecer, precisa de se explicitar no outro. Esta explicitação só é pura no conhecimento infinito. No finito, a explicitação só se verifica enquanto afirmada. Existe portanto a dualidade explicitação afirmação que, no conhecimento humano, se concretiza no juízo. O erro não é mais que a afirmação (interna) daquilo que não foi explicitado. No conhecimento errado, aquilo que afirmamos não é, propriamente, o que conhecemos, mas apenas o que julgamos conhecer,

No conhecimento infinito, dá-se perfeita coincidência entre explicitar-se e afirmar-se no outro. Por isso, nele o erro não admite possibilidade. Em nós, pelo contrário, é possível a dissociação. Quando se cai na conta dela, conhece-se o erro que assim fica dissipado. Quando não se cai na conta dela, não se vê o erro, — possui-se um conhecimento errado. Mas, neste caso, também nunca poderemos dizer, com plena sinceridade, que estamos na posse evidente da verdade. O erro é, de fato, uma espécie de precipitação que provoca, precisamente, a possível dissociação entre aquilo que se explicita, ou vem à tona, e aquilo que se afirma. Prova que nós não somos perfeitamente vigilantes, nem plenamente auto-lúcidos. Mas encontra sempre uma possibilidade teórica de reconhecimento. Assim transparece que a nossa inteligência, de si, não erra e, mais uma vez se manifesta que o erro nunca substitui a verdade, mas apenas pode afetá-la acidentalmente.

11.— Conclusão — Para terminar, salientemos os pontos fundamentais desta exposição. Partindo do « fenômeno puro » de Husserl, vimos que ele não pode ser o último fundamento do nosso conhecimento. Exige, por sua mesma natureza, o mundo «transcendente». Assim se evidencia, a partir da mesma fenomenologia de Husserl, a exigência duma «atitude natural», embora intimamente reflexa, como início fundamental de todo o saber. Esta evidenciação levou-nos, ao mesmo tempo, ao delineamento duma solução do problema crítico.

A nossa mente, uma vez que só pode conhecer na medida em que se explicita naquilo que se lhe impõe, depende de qualquer coisa que existe independentemente dela, a qual costuma chamar-se «objeto exterior». Este é, em si mesmo, apenas dependente do conhecimento infinito ou absoluto. Qualquer outro conhecimento só é possível contanto que se reja por esse objeto primordial da inteligência absoluta, e é, por isso mesmo, objetivo. A possibilidade do erro não destrói, antes exige esta mesma objetividade. A nossa verdade é assim individual, mas, ao mesmo tempo, supra-individual, ou absoluta. Porque existe «a priori» em nós, como explicitação do sujeito, é subjetiva. Porque essa explicitação é determinada «a posteriori», adquire uma fundamentação objetiva que lhe confere plena validez.

O âmbito desta objetividade deve ser igual ao do próprio conhecimento, visto que o seu fundamento se buscou a partir da evidência de qualquer fenômeno, seja ele referido a um ser material ou imaterial. Fica assim fundamentada a capacidade da mente para atingir a verdade absoluta, quer em relação aos objetos sensivelmente experimentáveis, quer em relação aos que transcendem a experiência sensível e constituem o âmbito da Metafísica.

Os animais conhecem também a verdade; mas, não podendo refletir sobre ela, possuem-na apenas dum modo subjetivo, sem atingirem o seu caráter absoluto. O conhecimento deles não se manifesta participante da inteligência como tal, — é um conhecimento adstrito à mera sensibilidade, fechado no âmbito individualista. O homem, ilumina-se na verdade reflexa, adquirindo assim o poder de a justificar e, portanto, de a contemplar não só como sua, mas como universal. E nesta contemplação que a mente se manifesta participante da inteligência como tal e, por isso, se reconhece aberta, por sua natureza, para a verdade absoluta.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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