Fragata (1959) – Intenção significativa e intuição

Júlio Fragata, A Fenomenologia de Husserl como Fundamento da Filosofia. Livraria Cruz, 1959

CAPITULO II A EVIDÊNCIA APODÍTICA

1. — INTENÇÃO SIGNIFICATIVA E INTUIÇÃO

«Evidência» (Evidenz, Einsicht) e «intuição» (Intuition / Anschauung) são dois conceitos fundamentais e inseparáveis na filosofia de Husserl. Quase todas as suas obras refletem a preocupação de ter o leitor a par do sentido destes termos, e já na sexta e última investigação lógica, publicada na segunda edição em volume à parte, nos apresenta sobre eles um estudo pormenorizado. A intuição adquire em Husserl uma amplidão peculiar no âmbito do nosso conhecimento, de modo a tornar-se a característica necessária, e na prática mesmo suficiente, da evidenciação. Torna-se por isso necessário esclarecer o conceito de «intuição» para compreender o do «evidência».

Temos que começar pela diferença fundamental entre «intenção significativa» (Bedeutungsintention) e «intenção intuitiva», ou simplesmente «intuição», a cuja importância Husserl, cerca de trinta anos mais tarde, se havia de referir ainda explicitamente. Trata-se do dois conceitos inseparavelmente implicados no nosso ato de conhecimento, mas cuja distinção se impõe.

Falamos de uma intenção meramente significativa enquanto apenas «significamos intencionalmente» (meinen) o objeto, isto é, se atendemos apenas à sua mera significação, sem considerar de modo nenhum a sua presença. Sirvamo-nos de um exemplo a que o próprio Husserl também não deixa de recorrer em circunstâncias semelhantes.

Se consideramos apenas o conteúdo significativo de um «prado», prescindindo de qualquer presença sua, mesmo imaginativa, temos simplesmente uma intenção. Mas, se nos colocamos diante do prado, essa intenção que estava, por assim dizer, «vazia» (leer) ou «aspirando à plenitude» (der Fülle bedürftig), ficou «preenchida» (erfüllt) por meio desta presença, «realizou-se», isto é, ficou a possuir o objeto, transformando-se assim numa «intenção intuitiva» ou intuição. É o que Husserl sintetiza na frase seguinte: «A intenção signitiva alude apenas ao objeto, a intuitiva torna-o representado em sentido estrito, implica alguma coisa da plenitude do mesmo objeto».

A intuição é portanto definida pela presença da realidade mesma do objeto enquanto conhecido, ou seja, pela adequação entre o objeto e o seu conhecimento meramente pensado.

Por outras palavras, a intuição é uma síntese entre a monte da qual provém a mera intenção, e o objeto. O laço unitivo desta síntese é o preenchimento: «Aquilo que a intenção significa …. é apresentado diretamente perante nós pelo preenchimento, ou seja, pelo ato correspondente à síntese de preenchimento e quo confere a sua ‘plenitude’ à intenção».

Temos portanto na intuição, ou no preenchimento que a provoca, ainda mesmo quando ela se exprime verbalmente, uma multiplicidade unificada, ou, como Husserl salientava já na primeira investigação lógica, «uma unidade intimamente fundida» (eine innig verschmolzene Einheit).

A evidência não é mais que a consciência desta unidade, ou seja, a consciência da intuição; é a clarividência originada pela presença, pela posse do objeto, ou, em palavras do mesmo Husserl, «a vivência da coincidência entre a intenção e o objeto presente». Nesta presença vivida, como que se «experimenta» o objeto, e por isso a evidência implica intrinsecamente uma «experiência» que Husserl estende no entanto para além duma experiência no sentido estrito, ou meramente sensível: «Podemos dizer que a evidência, escreve, é de si uma experiência no sentido lato embora essencial».

Esta «experiência» assim concebida há-de revestir diferentes modalidades -em conformidade com o caráter do objeto experimentado e será mais ou menos perfeita segundo a posse ou experiência do objeto for mais ou menos plena. É o que passamos a esclarecer ainda, em dois parágrafos, subsequentes.

 

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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