Flusser (1983) – A imagem do cachorro morderá no futuro?

Ensaio publicado na revista IRIS em março de 1983, com o título de O futuro e a cultura da imagem.

Nos dias 2 a 5 de dezembro reuniram-se, nessa cidade dos albigenses e de Toulouse-Lautrec, engenheiros, artistas, economistas, sociólogos e pensadores, para discutirem o “futuro da cultura”. Por mais divergentes que tenham sido os pontos de vista, havia consenso quanto a um dos aspectos mais fundamentais do problema: a cultura do futuro será cultura da imagem. Quanto mais progrediam as discussões, tanto mais a reflexão se ia concentrando sobre a função da imagem na sociedade pós-industrial do futuro. Isto foi captado pela seguinte pergunta: “A imagem do cachorro morderá no futuro?”. Para ilustrar tal pergunta, foram exibidos hologramas, jogos eletrônicos, fotografias eletrônicas sintetizáveis pelos receptores, e imagens de objetos “impossíveis” projetadas por computadores. Pretendo, neste artigo, considerar apenas um dos parâmetros de tal revolução das imagens pela qual estamos passando: o da transferencia do interesse existencial do mundo concreto para a imagem. E restringirei ainda mais as considerações, ao concentrá-las sobre fotografias.

Enquanto as fotografias ainda não forem eletro-magnetizadas, serão elas superfícies imóveis e mudas, cujo suporte material é papel ou substância comparável. Nessa sua provisória materialidade as fotografias se assemelham às imagens tradicionais, cujo suporte é parede de caverna, de túmulo etrusco, vidro de janela, ou tela. Mas a fotografia se distingue das imagens tradicionais por duas características: (1) foi produzida por aparelho, e (2) é multiplicável. É esta segunda diferença que interessa para as considerações aqui propostas. Porque tem consequências profundas para a futura maneira de ser do homem e da sociedade. As fotografias são superfícies que podem ser transferidas de um suporte para outro, Como que descoladas, (decalcomanias). A superfície não assenta firmemente sobre o suporte, como o é o caso das pinturas, (de parede de caverna ou de óleo sobre tela). É como se a superfície fotográfica desprezasse o seu suporte, e estivesse livre de mudar de suporte: pode passar para jornal, para revista, para cartaz, para lata de conserva. Pois é o desprezo do suporte material que é a característica do mundo futuro das imagens.

A superfície da fotografia é imagem. Isto é: sistema de símbolos bi-dimensionais que significam cenas. Isto é o “valor” de toda imagem: que serve de mapa para a orientação no mundo das cenas. De modelo estético, ético e epistemologico de tal mundo. Que “informa”. Pois nas imagens tradicionais a informação esta impregnada firmemente no objeto que a suporta. Por isto as imagens tradicionais têm valor enquanto objetos. Na fotografia a informação despreza o seu suporte, e por isto a fotografia tem valor desprezível enquanto objeto. 0 valor está, nela, concentrado sobre a informação mesma. 0 aspecto “objetivo” da fotografia não interessa: o que interessa é seu aspecto “informativo”. Querer possuir fotografia de uma cena de guerra não tem sentido: sentido tem querer ver a fotografia para ter informação quanto ao evento. 0 conceito de “propriedade” se esvazia no terreno da fotografia, e com isto se esvaziam os conceitos de “distribuição justa” e de “produção” de propriedade. Sociedade “informática” será sociedade, na qual tais conceitos terão sido superados.

No entanto, tal decadência do objeto e emergência da informação enquanto “sede do valor” não capta, por si só, a revolução pela qual estamos passando. Retomemos a fotografia da cena de guerra como exemplo. Como toda imagem, a fotografia “significa” a cena, isto é: substitui-se simbolicamente por ela. De modo que quem souber decifrar a fotografia, poderá ver “através” dela o seu significado. Parece, pois, que há relação unívoca entre o universo das fotografias e o universo das cenas do “mundo lá fora” : o universo das fotografias é “significante”, o mundo das cenas “significado”. De fato, no entanto, a relação passou a ser equívoca: a fotografia da cena de guerra pode passar a ser o “significado” do evento fotografado. 0 evento pode ter acontecido, a fim de ser fotografado. E, mesmo se isto não for o caso, mesmo se o evento tiver acontecido independentemente do ato fotográfico, a fotografia pode passar a funcionar enquanto “significado”: para quem vê jornal da manhã, a fotografia da cena da guerra passa a ser o “significado” da guerra, e o evento lá fora passa a ser mero pretexto para a fotografia. Em outros termos: para o receptor da imagem o vetor de significação se inverteu, e o universo das imagens passa a ser a “realidade”.

Sociedade “informática” será sociedade para a qual os valores e a realidade, o “dever ser” e o “ser”, residirão no universo das imagens. Sociedade que vivenciará, sentirá, se emocionará, pensará, sofrerá e agirá em função dos filmes, da TV, dos vídeos, dos jogos eletrônicos, e da fotografia. Em tal sociedade, o poder se transferirá dos “proprietários” de objetos, (matérias-primas, energias, maquinas), para os detentores e produtores de informação, para os “programadores”. “Imperialismo informático e pós-industrial” será isto. E o Japão, essa sociedade carente de energia e matérias-primas, é desde já exemplo disto.

A decadência do mundo “objetivo” enquanto sede do valor e do real, e a emergência do mundo simbólico enquanto centro do interesse existencial, é observável, desde já, no terreno da fotografia. É terreno no qual o poder está sendo detido pelos programadores de aparelhos E trata-se de poder hierarquizado e des-humanizado. 0 fotografo exerce poder sobre o receptor da sua mensagem, porque lhe impõe determinado modelo de vivência, de valor e de conhecimento. A câmara exerce poder sobre o fotógrafo, ao estruturar seu gesto de fotografar, e ao limitar sua ação às possibilidades programadas no aparelho. A industria fotográfica exerce poder sobre a câmara, ao programá-la. 0 aparelho industrial, administrativo, político, econômico e ideológico exerce poder sobre a indústria fotográfica, ao programá-la. E todos estes aparelhos gigantescos são, por sua vez, programados para programarem. Se analisarmos, cautelosamente, não importa que fotografia individual, poderemos, desde já, verificar como funcionará cultura de imagens.

E isto nos permite a responder afirmativamente a pergunta de Albi: “a imagem do cachorro morderá no futuro?” Morderá, no sentido de: modelará a ação, e a experiência mais íntima, do homem futuro.

 

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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