Fink (1966b:44-47) – homem em dois mundos

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Conhecemos em inúmeras versões essa interpretação da natureza humana que determina a face do homem na metafísica ocidental: ela não faz uso da diferença fundamental entre o mundo sensível e o mundo do espírito? , entre o mundus sensibilis e o mundus intelligibilis e não localiza o homem na fronteira que separa os dois “mundos”? A interpretação metafísica do homem o torna uma natureza dilacerada, perpetuamente inquieta por causa de sua própria dilaceração; uma natureza que é ao mesmo tempo sensual e espiritual, tendendo ao mesmo tempo para o animal que é inferior a ela e para Deus que é superior a ela. O homem, portanto, aparece como um espírito contaminado de sensualidade e como um animal que perturba a espiritualidade, de certa forma como uma natureza dupla formada por partes que lutam entre si, como um centauro. Assim como o “centauro”, esse ser fabuloso, é um animal segundo a parte inferior de seu corpo e tem o busto de um homem, assim também a metafísica ocidental representa o homem como meio bestial e meio divino. Esse caráter fundamental do centauro apresentado pela imagem tradicional do homem constitui uma herança funesta, na medida em que por aí a relação mundana fundamental da existência humana foi recoberta e obscurecida pela distância intra-mundana que separa o homem, por um lado, do animal e, por outro, de Deus. Uma relação intra-mundana, que sem dúvida reveste uma grande importância, assim paralisou e consumiu a força extática da existência humana. Em defesa da imagem metafísica do homem, certamente poderíamos objetar que nela a posição do homem não é de forma alguma localizada por simples relações de vizinhança com outros entes. Se o homem é concebido como uma natureza intermediária entre o animal e Deus, isto não significa, no entanto, essencialmente uma separação de outros entes, mas uma relação tensa e dupla com o mundo sensível, por um lado, e com o mundo puro de espírito, do outro. É precisamente uma posição mundana do homem que aqui é reconhecida e definida, sua posição entre o mundus sensibilis e o mundus intelligibilis. O homem é concebido como estando em casa em dois mundos; é até entendido em seu ser dividido, a partir de uma dupla relação mundana. E, todavia, esse argumento é válido? O termo “mundo” é usado aqui no plural, e esse plural é bastante revelador. Utilizado no plural, o conceito de mundo se torna uma metáfora, uma virada analógica; significa um todo, uma totalidade, um totum. Mas o mundo não é apenas um todo, não é o domínio de um todo, uma região de coisas. Não é “um” totum, mas “o” totum, o único totum que abraça tudo, absolutamente. A totalidade cósmica não é um caso de totalidade em geral, não está no mesmo plano que a totalidade de uma espécie ou a totalidade de um gênero ou mesmo o de uma infinita multidão. Não podemos comparar a totalidade cósmica com as “totalidades” intra-mundanas (que são apenas relativas). No entanto, metaforicamente usamos a expressão “mundo” quando queremos designar um todo fechado em sua totalidade relativa. A rigor, o mundo sensível e o mundo espiritual não são de modo algum mundos; estes são domínios interiores do mundo, dimensões de entes determinados. É significativo que o pensador que tenha, por assim dizer, cavado o abismo entre o sensível e o espiritual — entre o que vemos, tocamos, sentimos e provamos, por um lado, e por outro, o que só o pensamento percebe — , que esse pensador, portanto, não fale de dois mundos. O reino do sensível, Platão o chama de “lugar visível”, horatos topos, ou “gênero do visível”, horaton genos; o que é perceptível pelo pensamento, ele chama de noetos topos ou noeton genos. O fato de esses dois domínios opostos de Platão, o das coisas sensíveis e o das ideias, terem sido designados posteriormente como dois “mundos”, isso indica não apenas a decadência do problema platônico que se transformou em uma espécie de platonismo vulgar, cuja influência cultural foi infelizmente muito grande no curso da história e que tem tão pouca relação com Platão quanto o assim chamado “amor platônico”, mas isso indica mais profundamente o enclausuramento do problema humano. Mas que o problema mundano tenha podido se enclausurar nos conceitos de metafísica, deve-se buscar a razão no fato de que a metafísica sempre representou de maneira muito estreita o caráter extático da natureza humana.

Hildenbrand & Lindeberg

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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