HERMENÊUTICA MODERNA — FILOSOFIA HERMENÊUTICA
Foi a partir da reflexão de Heidegger sobre a (facticidade), que Gadamer retomou a hermenêutica sobre novas bases, unificando no ser humano a realidade histórica e sua interpretação. Enuncia-se assim a hermenêutica contemporânea, de natureza filosófica. Uma hermenêutica filosófica aplicável às temáticas da filosofia, das ciências humanas e das ciências da natureza. Mas Gadamer não é o único a enveredar por esta senda. Os italianos Emilio Betti e Luigi Pereyson, os franceses Paul Ricoeur e Jacques Derrida, e os alemães J. Habermas e Karl Otto-Apel abrem também seus próprios caminhos na reflexão contemporânea sobre a hermenêutica.
Segundo Josef Bleicher (1980), a hermenêutica contemporânea pode ser caracterizada por perspectivas conflitantes, no tocante ao fato de que as expressões humanas de qualquer gênero podem ser reconhecidas como tal por qualquer ser humano e transpostas para seu próprio sistema de valores e significados. Como este processo se dá e como é possível “se dar conta” de sentidos subjetivos aplicados ao reconhecimento de um ato ou fato, o que prejudicaria de forma absoluta a capacidade de compreensão deste, é o que discorre cada caminho hermenêutico em sua especificidade, e Bleicher cita três caminhos que se consagraram: a teoria hermenêutica, a filosofia hermenêutica e a hermenêutica crítica.
A teoria hermenêutica focaliza a problemática de uma teoria geral da interpretação como uma possível metodologia para as ciências humanas. Pela análise da “compreensão” como método apropriado de re-experimentar ou re-pensar o que um autor originalmente viveu ao se expressar, sob qualquer modalidade discursiva espera-se ganhar um entendimento do processo de compreensão, em geral, permitindo assim transpor a complexidade de sentidos de um discurso expresso por um autor, para nossa compreensão de nós mesmos, de nosso mundo e do texto ou fato “lido”.
Nesta última já se delineava um reconhecimento da linguagem como meio universal da humanidade presente na primeira versão do (círculo hermenêutico) como todo em relação ao qual, partes individuais ganham seu sentido. A razão maior da aplicação da teoria hermenêutica se caracteriza como um esforço por “evitar os mal-entendidos”.
Esta busca por uma base metodológica e até científica para a interpretação é justamente o que a chamada hermenêutica filosófica rejeita como “objetivismo”. Isto porque fere um de seus princípios, originários da filosofia existencial de Heidegger. Um contexto de tradição envolve ambos e a obra, o que implica na impossibilidade de neutralidade em qualquer processo de interpretação. A compreensão de uma obra não é apenas, por conseguinte, uma reprodução instruída do original, mas um diálogo contínuo entre as partes em questão.
A filosofia hermenêutica, por sua vez, parte do reconhecimento do hermeneuta como Dasein ocupado na interpretação de um ato ou fato humano, em sua situação temporal e histórica.
Segundo Gadamer, o problema da interpretação segundo a formulação dada pela hermenêutica filosófica, parte da “virada linguística” na filosofia, para reconhecer que a comunicação entre o autor de um discurso e o intérprete do mesmo deve tomar a forma de um diálogo que resulte na “fusão de horizontes” de suas existências.
Em resumo a filosofia hermenêutica não pretende substituir a teoria hermenêutica, mas sim direcioná-la segundo princípios que admitam a condição de “(ser-no-mundo)” do intérprete em seu ocupar-se hermenêutico.
Por mais exaustiva que seja a pesquisa que explora o contexto do texto, sua compreensão não se esgota aí, pois segue se dando e renovando no diálogo com o texto. Existem mal-entendimentos mas também mais do que uma justa interpretação do texto, o próprio texto estabelece os limites de sentido que admite, não é um questão subjetiva, a pesquisa histórica e linguística permite uma aproximação do sentido original, garantindo certa neutralidade, mas neste afã é mais importante reconhecer os pré-conceitos que ditam o viés de uma interpretação do que tentar transcendê-los ou eliminá-los.
Neste sentido a filosofia hermenêutica iniciada por Heidegger, e sustentada por Gadamer, parece se impor diante das frustrações de uma teoria hermenêutica que pretende suprimir o caráter subjetivo das interpretações, visto que dada a significância do texto (o que significa para um intérprete) e dado o significado original do texto (seu sentido próprio), o primeiro condiciona sempre o segundo, que é deste modo inalcançável.
Da problemática oriunda do movimento descrito no parágrafo acima, surge o círculo hermenêutico que representa a projeção do sentido atribuído pelo intérprete ao texto, que resiste ou confirma, segundo o intérprete, impondo uma reciclagem da interpretação, até a fusão de horizontes entre autor e intérprete do texto. Esta concepção põe de lado uma noção de método ou cânon a ser seguido, pois cada situação de interpretação põe em diálogo um intérprete e um texto, e a compreensão alcançada só pode ser descritiva e não prescritiva, donde diferentes pontos de vista são aceitáveis e apenas atestados, aqui o texto supera seu autor.