Figal (2007:69-72) – transposição em Nietzsche

(…) algo também poderia ser de tal modo transformado no interior da transposição, que não poderíamos mais reconhecê-lo como aquilo que ele é. O único ponto de apoio para o fato de termos neste caso algo em comum com uma transposição seria o próprio processo de transposição. Sob esta pressuposição, Nietzsche generalizou o conceito de transposição e procurou compreender todo conhecimento e, para além do conhecimento, toda pretensa relação objetiva como uma transposição ou, como se diz em grego, como uma “metáfora”, como uma “interpretação”1. Em seu ensaio antigo, em alguns aspectos programático, Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, ele esboça uma imagem do conhecimento, segundo a qual esse conhecimento aparece como uma consequência de transposições descontínuas. Em primeiro lugar, “um estímulo nervoso (…)” seria “transposto para uma imagem”. Em seguida, a “imagem” seria “uma vez mais transformada em um som”. E “a cada vez” aconteceria “um salto completo por sobre uma esfera para o meio de uma esfera totalmente diversa e nova”. Nietzsche ilustra essa ideia a partir de um experimento físico, no qual uma fina camada de areia sobre uma superfície é de tal modo posta em vibração, que ela reproduz ondas sonoras2. As coisas dão-se “para todos nós com a linguagem” tal como acontece com um homem surdo que “nunca teve uma sensação do som e da música” e que (70) poderia afirmar que “agora sabia seguramente o que os homens denominam o som”: “nós acreditamos saber algo sobre as coisas mesmas e, contudo, não possuímos senão metáforas das coisas, metáforas que não correspondem de maneira alguma às essencialidades originárias”3.

Contra esta descrição seria preciso objetar em primeiro lugar — repetindo a crítica hegeliana à “coisa em si”4 — que se fala aí de “coisas” e “essencialidades originárias”, apesar de se afirmar a sua inacessibilidade. Essas coisas não passam, para usar a designação hegeliana para as coisas em si, de fantasmas5; na medida em que falamos sobre elas, sugerimos que haveria um fora em relação à imagem representacional e à linguagem, um fora que por si não há.

No entanto, Nietzsche não precisaria se sentir tocado por esta objeção. Ele mesmo pensa que as coisas em si são fantasmas. O que está em questão para ele não é distinguir a “metáfora” enquanto mera aparição das coisas ante a substancialidade inacessível dessas coisas. O que lhe interessa é muito mais o “salto” de uma “esfera” para uma outra; a uma metáfora segue a próxima “metáfora”, de modo que a realidade consiste nessa mudança de metáforas; a “transposição” ou a “interpretação” são as únicas coisas que efetivamente são. É neste sentido que Nietzsche contesta mais tarde, contra o “positivismo”, a existência de fatos — “não, justamente fatos não há, há apenas interpretações” —, objetando contra o subjeti-vismo que mesmo o sujeito seria “interpretação”, “nada dado, mas algo acrescentado imaginativamente, algo colocado por detrás”6. “Por fim”, porém, ele sugere que não seria de maneira alguma necessário “colocar ainda o intérprete por detrás da interpretação”. Na medida em que não há “fatos”, o mundo não é outra coisa senão uma profusão desbaratada de “interpretações”, que atuam umas sobre as outras enquanto “forças”. Como “força por toda parte, como jogo de forças e ondas de forças”, o mundo é uma “quantidade descomunal de força”, um “mar de forças em si mesmas tempestuosas e fluentes”. Ele é, como Nietzsche diz por meio de um conceito diretriz que substitui o conceito de força, “vontade de poder — e nada além disso”7.

Com esta absolutização da transposição ou da “interpretação”, contudo, o pensamento inicial se transformou: se as transposições não devem ser outra coisa senão forças que atuam umas sobre as outras, então elas não são mais nenhuma transposição. Toda transposição que deve ser reconhecida enquanto tal precisa poder ser reconduzida àquilo de que provém; mesmo se pudesse ser compreendido como transposição, ele precisaria ser inteligível para a transposição posterior como algo de que ela parte. Porquanto esse algo é algo a ser transposto, ele não é nenhuma transposição, mas algo que possui uma significação material e objetiva·, para o seu valor conjuntural em uma transposição, não importa saber se ele pode ser determinado em um outro aspecto como transposição. Assim, um pensamento pode ser transposto para um novo contexto. Aquilo que é transposto é, então, esse pensamento. Se ele deveria ou não chegar a termo por meio de uma transposição é ou bem irrelevante para a transposição ulterior, ou é um momento integral daquele pensamento que é para ela o ponto de partida, e, com isso, um momento da coisa a ser transposta.

O fato de Nietzsche não levar em conta a proveniência da transposição e, juntamente com ela, a sua significação material e objetiva já pode ser visto no artigo escrito sobre verdade e mentira. O que ele designa aí como “metáfora” é “um salto completo por sobre uma esfera”, ou seja, não uma transposição, mas uma quebra. Em seu pensamento posterior da “vontade de poder”, ele retoma à ideia mais antiga da metáfora. Cima vontade de poder é um centro de força estabelecido apenas com vistas à sua própria possibilidade, um centro de força que se liga a algo não enquanto esse algo mesmo, mas que só encontra no outro ensejos para a sua elevação, ou, como o próprio Nietzsche disse certa vez: “algo que quer crescer (…), que interpreta todas as outras coisas que querem crescer em função de seu valor8. Mesmo quando a “vontade atua sobre a vontade”9 dessa forma e só avalia outras vontades sob o ponto de vista do “valor”, este acontecimento da vontade não é nenhuma transposição; e se a interpretação é um caso particular da transposição, ela também não é nenhuma interpretação. Não é acolhido e assumido nada que permaneça compreensível enquanto tal, mas tudo é estabelecido apenas como “valor”, ou seja, como “condições de conservação-elevação”10. Tudo aquilo que é próprio para tanto é assumido no campo de força da vontade, a fim de ampliar o desenvolvimento de suas forças e a sua força. Aquilo que Nietzsche denomina “interpretação” é, em verdade, assimilação, “incorporação do mundo exterior”, como ele formulou certa vez11. Apesar de uma vontade de poder só ser capaz de desdobrar a sua dinâmica junto à vontade própria que coloca exigências àquilo que lhe é exterior, não há para ela nenhum fora12.

  1. Cf. quanto a esse ponto John Sallis, On translation (Sobre tradução), Bloomington 2002, p. 21-45.[↩]
  2. Trata-se de um experimento do fundador da acústica, Ernst Chladni (1756-1827).[↩]
  3. Friedrich Nietzsche, Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (1873), KSA 1, p. 875-897, aqui p. 879.[↩]
  4. Por exemplo na Lógica: G.W.F. Hegel, Ciência da lógica I, Edição histórico-crítica, Gesammelte Werke, org. pela Academia das Ciências Renano-Vestefaliana, Vol. 21, Hamburgo, 1985, org. por Friedrich Hogemann e Walter Jaeschke, p. 31.[↩]
  5. Hegel, Ciência da lógica, Gesammelte Werke 21, p. 31.[↩]
  6. Friedrich Nietzsche, Nachlass 1886-1887, 7(60), KSA 12, p. 315.[↩]
  7. Friedrich Nietzsche, Nachlass 1885, 38(12), KSA 11, p. 610-611.[↩]
  8. Friedrich Nietzsche, Nachlass 1885-1886, 2(148), KSA 12, p. 139-140.[↩]
  9. Friedrich Nietzsche, Para além do bem e do mal, p. 36; KSA 5, p. 9-243, aqui 55.[↩]
  10. Friedrich Nietzsche, Nachlass 1887-1888, 11(73), KSA 13, p. 36: “O ponto de vista do ‘valor’ é o ponto de vista das condições de conservação-elevação em vista de construções complexas de duração relativa de vida no interior do devir”. Para a interpretação dessa passagem, cf. Martin Heidegger, A sentença nietzschiana ‘Deus está morto’ (1943), in: Caminhos da floresta, GA5, org. por Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt junto ao Main, 1977, p. 209-267, aqui em particular p. 227-232.[↩]
  11. Nietzsche, Machlass 1885-1886, 2(92), KSA 12, p. 106-107.[↩]
  12. O mundo das “avaliações” é para Nietzsche o mundo feito por si mesmo, o mundo construído poeticamente (Friedrich Nietzsche, A gaia ciência, p. 301; KSA3, p. 343-651, aqui p. 540).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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