Figal (2007:67-69) – apropriação e transposição

De início, voltemos uma vez mais à apropriação: o lápis que se encontra sobre aquela mesa e que alguém segura para anotar um pensamento é apropriado — não no sentido de tomarmos posse dele, mas no sentido de que o usamos para fazer algo. Ele é reconhecido de uma maneira determinada: como algo para escrever. Este “algo como algo” — Heidegger o denomina em sua análise do utensílio o “como hermenêutico”1 — indica uma compreensão que, em verdade, é uma mediação, mas não uma transposição. Em verdade, o lápis é conhecido a partir do escrever, o escrever se realiza por meio do lápis. Não foi preciso, porém, nenhum desempenho particular para o reconhecimento do lápis como um utensílio para a escrita. A lida com instrumentos de escrita também é sempre constitutiva da capacidade da escrita, que adquirimos e exercitamos. Portanto, estávamos bem preparados para reconhecer imediatamente a coisa sobre a mesa como um utensílio para a escrita. Com certeza, o reconhecimento pode não ser sempre tão fácil; para reconhecer que aquela coisa dotada de uma forma estranha é um instrumento de escrita seria necessária uma segunda olhada. Ou, então, não encontramos nenhum instrumento adequado; neste caso, ao invés de usarmos um martelo, pregamos o prego na parede com uma pedra.

Mas essa não é nenhuma transposição. Ao invés de conhecermos imediatamente algo como algo, nós apenas o descobrimos como algo, a saber, nós descobrimos a pedra como um instrumento possível. Sabíamos o que tínhamos de fazer e, do mesmo modo, como algo precisava ser constituído para que pudesse se mostrar como apropriado para pregar pregos. Preparados desta maneira, nós podíamos descobrir a pedra “como algo”. A apropriação foi possível porque já havia algo assim como um campo das próprias capacidades e possibilidades.

As coisas dão-se de maneira similar junto à compreensão das declarações linguísticas. Uma frase da própria língua, uma frase que é compreendida, não é transposta para o próprio uso linguístico, e, se a interpretação é um caso especial de transposição, essa sentença também não foi interpretada. Ela foi simplesmente compreendida. Mesmo o fracasso da compreensão não é nenhum indício de que se tem a ver aqui com uma transposição. A única coisa que aconteceu foi o fato de não ter se cumprido a suposição óbvia de que o outro falante emprega as expressões utilizadas mais ou menos como nós mesmos. Isso também pode ser experimentado junto ao comportamento das pessoas: um gesto que compreendemos como um cumprimento era apenas uma tentativa de soltar o relógio do pulso. O erro é possível porque as duas coisas eram tão parecidas a ponto de produzir a confusão, e um gesto como este pertence, enquanto cumprimento, ao repertório das possibilidades de expressão comuns. Onde há um tal repertório — como em toda língua e em toda convivência o próprio não está fundamentalmente cindido do outro; eles se co-pertencem no elemento comum.

Em contrapartida, sempre persiste um distanciamento nas transposições; algo que pertence simplesmente ao âmbito da própria vida não precisa ser transposto para esse âmbito. Falta à transposição a obviedade; por vezes, ela pode se mostrar como ousada ou até mesmo como inadequada, por exemplo, quando transpomos intelecções que foram conquistadas por alguém com vistas a uma coisa para uma outra coisa totalmente diferente, e empregamos, assim, as intelecções de um outro contexto no contexto próprio, claramente diverso.

Aquilo de que nos apropriamos no sentido da transposição é fundamentalmente cognoscível como algo diverso. Enquanto a transposição é consciente, a apropriação permanece sob reserva; no que a transposição aponta para a sua pro-veniência, ela mesma permanece em suspenso. O sentido para essa alteridade pode ser mais fraco ou pode ter mesmo se perdido, de modo que não reconhecemos mais uma transposição enquanto tal. No entanto, a intelecção pode ser reconquistada; nós tínhamos considerado aquilo que tinha sido transposto como algo próprio. Agora, contudo, o erro foi corrigido. O sentido do distanciamento que é constitutivo da transposição é novamente desperto.

  1. Heidegger, Ser e tempo, GA2, p. 210; pela primeira vez in: Martin Heidegger, Logik. Die Frage nach der Wahrheit (Lógica. A pergunta sobre a verdade — 1925/26), GA21, org. por Walter Biemel, Frankfurt junto ao Main, 1976, p. 143.[]