- Casanova
- Theodore George
Casanova
Algo acontece, mas ele acontece a alguém ou por meio deste alguém mesmo. As duas coisas juntas também são possíveis, até mesmo habituais: nós podemos fazer algo e nos transformar em meio a este fazer. Ou fazemos algo e nos transformamos aí sem uma intenção prévia; só constatamos subsequentemente o fato de termos nos tornado outros. Tal como todo e qualquer movimento, aquilo que fazemos acontece no tempo e possui o seu tempo. Todavia, sempre experimentamos o tempo e a nós mesmos no tempo. O fazer evidencia-se como temporal.
Há um exemplo clássico de como devemos compreender isto. Ele provém de Santo Agostinho que trouxe consigo e fez valer com a sua análise a experiência do tempo que tinha sido desconsiderada por Aristóteles. Agostinho toma como exemplo uma apresentação: eu canto uma canção que conheço — dicturus sum canticum, quod noui 1. Este também é um movimento, mas a sua realização está fixada: aquele que canta tem de realizá-lo por si mesmo e o que ele realiza é o movimento. Aquilo que denominamos “experiência temporal” só se revela, quando tratamos detidamente desta ideia e, com isto, no que diz respeito à consideração, trocamos a perspectiva do observador pela perspectiva performativa. O exemplo que Agostinho coloca no centro de sua consideração é visado neste sentido; só há o movimento aqui em questão, ou seja, o cantar, por meio daquele mesmo que canta, e ele se vivência aí. No entanto, a realização do movimento não é arbitrária. Por mais que haja sempre algo a ser decidido no momento em que cantamos uma canção, ao menos o seu tempo está fundamentalmente dado de antemão. A velocidade do canto não poderá ser de modo algum uma velocidade qualquer. Além disto, a canção é longa ou breve. Ela carece de seu tempo. Nesta medida, aquilo que fazemos é ao mesmo tempo um acontecimento: a perspectiva da realização é concomitantemente a perspectiva de um transcurso. Trata-se da perspectiva, na qual algo acontece por meio de nós mesmos ou junto a nós mesmos.
Neste caso, o que está em questão não é mais o tempo do movimento, mas antes de tudo o tempo daquele que se movimenta. Este é um tempo que é experimentado por aquele que se movimenta como o seu tempo. Enquanto tal, contudo, ele não é apenas o respectivo presente distribuído de algo presente que se estende no movimento, um presente como o qual o tempo precisou ser compreendido a partir de Aristóteles. Ao contrário, ele se mostra desde o princípio e durante a realização como iminente para aquele que se movimenta e fica para trás como o tempo daquilo que já foi realizado. Em contrapartida, a realização é presente em sua própria fase respectiva. Logo que o que está em questão não é mais apenas o movimento que se estende temporalmente, mas a realização ou mesmo apenas a correalização deste movimento, as determinações temporais de um agora anterior e posterior não são mais suficientes. Além delas, entram agora em jogo futuro, passado e presente.
Agostinho descreveu esta conexão de maneira bastante plástica e introduziu aí alguns conceitos que são imprescindíveis para a experiência temporal, assim como para a tentativa de concebê-la em meio à apresentação. Isto acontece na elucidação de seu modelo exemplar: antes de começar a cantar, o todo da canção se estende em minha expectativa (expectatio). Depois que comecei a cantar, o cantado se estende na memória (memória). Em contrapartida, aquilo que está sendo agora cantado está presente para a minha atenção. Aquilo que era dotado do caráter de futuro atravessa esta atenção, para assim se transformar em algo passado 1. Deste modo, sendo a cada vez, a canção atravessa em seu ser o tempo. A abertura que ela percorre, contudo, subsiste enquanto tal. Ela também já subsistia antes de eu ter começado a cantar, e, por isto, cantar foi efetivamente possível. A canção não estava presente como algo cantado, mas ela já se encontrava em minha expectativa; depois do fim do canto, ela não está mais presente no cantar, mas se encontra em minha memória.
Aquilo que pode soar aqui óbvio e pouco estimulante é para Agostinho a chave da compreensão do tempo. Na medida em que expectativa e memória são levadas em conta, resolve-se justamente um problema que Aristóteles já tinha visto: como é que aquilo que a cada vez não está aí pode, contudo, estar presente? Aristóteles tinha respondido esta pergunta por meio da compreensão do tempo que é levada a termo a partir da extensão temporalmente indiferente do tempo e da presença temporalmente indiferente daquele que se movimenta: o ponto de partida e a meta no sentido de um ser respectivo estão presentes no movimento determinado — e isto por meio de sua determinação. E aquilo que sustenta a realização do movimento é a duração daquele que se movimenta; o seu caráter de agora diferencia-se nos estados do agora anterior e do agora posterior e, assim, mantém coesa a extensão do movimento no ser respectivo. Deste modo, o tempo tinha se revelado como a multiplicação coesa da presentidade em relação ao ser respectivo com vistas à extensão do movimento. Santo Agostinho pensa de maneira diversa: ele nem recorre à extensão temporalmente indiferente da canção, que possui um começo e um fim e, com isto, possui tal e tal tamanho, nem a presença temporalmente indiferente daquele que se movimenta lhe oferece a segurança suficiente para que um agora anterior e um posterior se co-pertençam. O modo como se dá a canção que, como diz Agostinho, é conhecida, desempenha um papel tão pequeno quanto a presença contínua daquele que canta. Ao contrário, o não-ser do anterior ou posterior já é suspenso pela própria experiência temporal. E, contudo, há no espirito a expectativa do futuro. Isto é correspondentemente válido para o passado e até mesmo para o presente: aquilo que é presente, o verso da canção que acaba de soar agora, também já passa em meio ao soar. Aquilo que permanece, porém, é a atenção que é sempre válida para o ente a cada vez em seu passar 2. A condição para o fato de algo temporal estar presente reside tão-somente na experiência do tempo.
Theodore George
- Santo Agostinho, Confissões XI, 28, p. 38.[
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- Ibid.. p. 37: Quis igitur negat futura nondum esse? Sed tamen iam est in animo expectatio futurorum. Et quis negat praeterita iam non esse? Sed tamen adhuc est in animo memoria praeteritorum. Et quis negat praesens tempus carere spatio, quia in puncto praeterit? Sed tamen perdurat attentio, per quam pergat abesse quod aderit.[
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