Figal (2007:31-37) – phronesis

A filosofia prática já está em jogo como modelo, no momento em que Heidegger caracteriza a hermenêutica da facticidade como “o ser desperto do ser-aí para si mesmo”1. Esse pensamento pode ser acompanhado retrospectivamente até Sócrates e sua sentença fundamental “cuida de ti mesmo”. Se a mensagem é não se preocupar com aquilo que pertence a cada um antes de ter cuidado consigo mesmo, mais exatamente, antes de ter cuidado para que se seja o mais primoroso e racional possível 2, então a mensagem também é: passe a tua vida desperto e não sonhando, preso em representações e imagens 3. O que está em questão para Heidegger é a possibilidade de um cuidado de si desperto desse tipo. Para essa possibilidade, contudo, ele não encontra o modelo nos diálogos platônicos, mas em Aristóteles, mais exatamente, na ideia de uma razão prática (φρόνησις, phronesis). A φρόνησις, é assim que ele insiste já no Relatório-Natorp, remonta a uma verdade especificamente prática (αλήθεια πρατική) e essa verdade “não (seria) outra coisa senão o instante pleno, a cada vez sem encobrimento, da vida fática no como da prontidão decidida para a lida com esse instante mesmo”4.

(…)

(…) Heidegger não compreende a φρόνησις (phronesis), tal com o próprio Aristóteles, como uma reflexão que se dirige para as respectivas possibilidades do agir, mas apenas como abertura da própria situação de ação. A φρόνησις torna “a situação daquele que age acessível” 5; enquanto razão “solícito-reflexiva”, ela só é possível “porque é primariamente uma αἴσθησις (aisthesis), um abarcar o instante com o olhar de maneira derradeiramente simples” 6. Em verdade, Heidegger pode se reportar a Aristóteles quanto à ideia de um tal “olhar”. Mesmo segundo as análises da Ética a Nicômaco reside na φρόνησις uma apreensão imediata que Aristóteles denomina “percepção”, αἴσθησις; trata-se de um apreender que precisa ser diferenciado do desempenho propriamente dito da razão (νοῦς (noûs)), que tem algo em comum com os princípios (άρχαί (arche)) do conhecimento 7. A percepção que se transcorre na razão prática não remonta ao imutável, mas ao “a cada vez”, àquilo que se tem de fazer a cada vez (πρακτόν (prakton)) 8. Heidegger só conquista a sua interpretação por meio do fato de deduzir do πρακτόν a futuridade daquele que age e por compreender assim a φρόνησις como abertura futura – em Ser e tempo, essa abertura chamar-se-á “descerramento” (Erschlossenheit) – do ser-aí. Na interpretação heideggeriana, a φρόνησις transforma-se de uma ponderação sobre as possibilidades de ação em um ser-possível (Möglichsein) que precede a todo agir e o abre pela primeira vez enquanto tal. Com as palavras de Heidegger: ela se transforma em “prontidão para a lida” 9.

(…)

É nesse sentido que Aristóteles tinha falado da φρόνησις: ela se dirige para as “coisas humanas” 10, ou seja, para aquilo sobre o que precisamos refletir como uma pluralidade de possibilidades de ação, a fim de nos decidirmos na realização de uma ponderação sobre essa ação em favor daquele bem que precisamos fazer. Tal como comenta Gadamer, isso significa o mesmo que “considerar da situação concreta aquilo que ela exige dele — do agente” 11. Aquilo que é exigido não resulta, contudo, apenas da situação. Ele precisa poder ser conhecido enquanto regra em uma imperatividade que abarque essa situação, pois aquilo que é imperativo para a orientação da ação não pode ser algo único e irrepetível. Nessa medida, o exigido é aquilo “que é em geral exigido”.

[FIGAL, Günter. Oposicionalidade. O elemento hermenêutico e a filosofia. Tr. Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2007]

  1. Heidegger, Ontologie (Ontologia), GA63, p. 15.[↩]
  2. Platão, Apologia 36c[↩]
  3. Platão, República 344e, 352d.[↩]
  4. Heidegger, Phänomenologische Interpretationen (Interpretações fenomenológicas), GA 62, p. 384. Quanto ao conceito de verdade prática, cf. Alejandro G. Vigo, Die aristotelische Auffassung der praktischen Wahrheit (A concepção aristotélica da verdade prática), in: Internationale Zeitschrift für Philosophie, 1998 (2), p. 285-308.[↩]
  5. Heidegger, Phänomenologische Interpretationen (Interpretações fenomenológicas), GA62, p. 383.[↩]
  6. Ibid.[↩]
  7. Aristóteles, Ética a Nicômaco VI, 6; 1140b 31-1141a 8.[↩]
  8. Ibid., 1142a 25[↩]
  9. Heidegger, Phänomenologische Interpretationen (Interpretações fenomenológicas), GA62, p. 384.[↩]
  10. Aristóteles, Ética a Nicômaco VI, 7; 1141b 8-9: ta anthropina.[↩]
  11. Verdade e Método, GW 1, p. 318.[↩]
Excertos de ,

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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