Figal (2007:20-23) – Hermenêutica da Facticidade

De início, porém, com o discurso sobre a hermenêutica da facticidade, o que se designa para Gadamer é a virada decisiva de Heidegger contra a fenomenologia de Husserl. Com o seu título programático, Heidegger contrapôs a essa fenomenologia uma “exigência paradoxal”: “A facticidade impassível de ser fundamentada e derivada que é própria ao ser-aí, a existência, e não o puro cogito como constituição essencial de uma universalidade típica, deveria representar a base ontológica da problemática fenomenológica – um pensamento tão ousado, quanto difícil de ser resgatado”. Para Gadamer, contudo, esse é um pensamento que exige em sua ousadia e dificuldade que venhamos a acolhê-lo e resgatá-lo. Verdade e método é uma tentativa de fazer justamente isso.

Com certeza, o retorno de Gadamer a Heidegger não é para ser compreendido no sentido de uma simples continuidade. Em nome do interesse do próprio resgate, Gadamer reinterpreta o ponto de partida hermenêutico de Heidegger, sem que essa reinterpretação seja perceptível à primeira vista. Naquilo que Gadamer escreve sobre Heidegger em Verdade e método não há nenhum indício de uma confrontação, com maior razão ainda, nenhuma delimitação inequívoca. Gadamer assume o pensamento de seu mestre e se coloca totalmente no contexto desse pensamento com o seu projeto de uma hermenêutica filosófica. O passo decisivo para além do historicismo de Dilthey, a “superação” de sua “problemática epistemológica”, só teria se tornado possível por meio da “investigação fenomenológica” e, especialmente, por meio de Heidegger. E aqui que Gadamer, como ele dá a entender, se articula. No entanto, se consideramos mais exatamente, vêm à tona tensões e desvios. Gadamer lê Heidegger de tal modo que surge algo novo com a elucidação desse programa filosófico. É somente dessa maneira que o resgate do “pensamento ousado” de Heidegger se torna possível para Gadamer.

A reinterpretação gadameriana do projeto heideggeriano já acontece no momento em que ele explicita o seu título: Heidegger nunca disse, nem pensou que com a hermenêutica da facticidade o ser-aí “impassível de ser fundamentado e derivado” se transformaria na “base” da problemática fenomenológica. Heidegger não designa de maneira alguma com o conceito “facticidade” a impossibilidade de fundamentação e de derivação do ser-aí. Aquilo que ele tem em vista com essa formulação é algo diverso da “irrepresentabilidade” que se subtrai à concepção, uma “irrepresentabilidade” que Schelling tinha feito valer contra’ o pensamento conceituai teleológico de Hegel. “Facticidade”, assim encontramos formulado em Heidegger, “é a designação de ‘nosso’ ‘próprio’ ser-aí”. E, como Heidegger acrescenta, a expressão significa mais exatamente “a cada vez esse ser-aí”, de tal modo que o ser-aí “nunca” seria dado “primariamente como objeto da intuição”, mas estaria “aí para ele mesmo” no “como de seu ser mais próprio”. Neste caso, o ser precisa ser entendido, “transitivamente”, como “ser a vida fática”. Portanto, a vida é fática, à medida que é vivida; o ser possui “o caráter de realização”; é a realização da vida e não algo que se descerra para o “sentido relacional” do “elemento teórico” como “objeto”; a peculiar clareza e atualidade da vida são muito mais “um sentido performático”. Elas não resultam de uma visão sobre a vida, mas são executadas na própria vida.

Essa ideia poderia ser certamente compreendida como se estivéssemos nos referindo aí enfaticamente à impossibilidade de fundamentação e de derivação da vida; se a vida possui essencialmente um sentido performático, então não há nada que remonte a um ponto atrás dessa performance. Todavia, Heidegger não pensa aqui em um movimento da vida que se opõe à tentativa de determiná-la e que deixa sem resposta toda pergunta sobre a sua proveniência. O acento no elemento fático visa muito mais à respectiva atenção e clareza, com a qual a vida é conduzida. O ser fático da vida reside, como Heidegger o diz, no ser-aí, ou seja: na atualidade da vida, uma atualidade que constitui propriamente a vida. A vida, para a qual há atualidade, é a sua atualidade; a vida é vivida, na medida em que leva a termo a sua atualidade, ou seja, na medida em que, da maneira mais clara e patente possível, quer ser aberta e se retrai a partir de sua clareza e abertura para o interior do caráter crepuscular do auto-encobrimento.

A partir daqui é possível elucidar aquilo que a expressão hermenêutica da facticidade comporta em si. Em sua antiga preleção Ontologie (Ontologia), Heidegger determina como compreensão justamente a claridade da vida que é ser-aí. Essa compreensão designa “o estar desperto do ser-aí para si mesmo” e é realizada, na medida em que ela se interpreta, o que significa dizer: na medida em que ela se comunica e, assim, conquista informações sobre si. Aqui temos o ponto de partida para a compreensão heideggeriana da hermenêutica: ela não é para ele nenhuma arte da interpretação, mas uma articulação filosófica da vida em seu “sentido performativo”. Ela é uma apreensão que dá voz a si mesma, um “comunicado” que se sabe como realização da vida. Foi nesse sentido que Heidegger tinha falado sobre “intuição hermenêutica” no semestre em que foi instaurado na Alemanha o estado de necessidade de guerra. Essa “intuição hermenêutica”, enquanto claridade capaz de comunicação da vida, é “um momento essencial da vida em si e por si”, ela acompanha “a vivência”.

De maneira inequívoca, Heidegger coloca a sua compreensão da hermenêutica em contraste com a compreensão husserliana da fenomenologia; tal como podemos ver na observação gadameriana supracitada sobre o “puro cogito”, Gadamer assume mais tarde essa contraposição. Desde que a hermenêutica entra em jogo no jovem Heidegger, ela é pensada como um contraprojeto em relação à fenomenologia de matiz husserliano. Para a hermenêutica, não deve ser característica nenhuma relação como a relação entre “a apreensão do objeto e o objeto apreendido”. Heidegger quer pensá-la muito mais enquanto um “como” possível e insigne do “caráter de ser da facticidade” – como se uma ciência pertencesse à possibilitação daquilo que ela investiga e como se, por exemplo, “as plantas fossem aquilo que e o modo como elas são juntamente com e a partir da botânica”. Hermenêutica da facticidade é uma realização “insigne” da própria facticidade; ela é a clarificação expressa de um ser que é em si clarificado e que somente por isso pode se obscurecer.