Figal (2007:116-117) – compreensão enquanto “comportar-se em relação a…”

(…) uma situação paradoxal surge a partir da concepção heideggeriana da compreensão: nunca antes o conceito de compreensão foi filosoficamente tão central, pois nunca antes lhe foi atribuída uma significação ontológica e até mesmo “ontológico-fundamental”; a autocompreensão do ser-aí se transforma aqui no ponto crucial para a compreensão de ser em geral. Este emprego do conceito, (117) porém, é feito às custas de seu sentido cotidiano, e, com isto, também de sua inteligibilidade: se não compreendemos senão a nós mesmos e se, na medida em que somos, já sempre compreendemos, então não há nada a compreender 1. A autocompreensão não é central, principalmente se ela é considerada no sentido do conceito de compreensão que pode ser empregue cotidianamente. Neste caso, ele se mostra como um caso particular da compreensão de algo alheio. Nós precisamos ter nos tornado estranhos para nós mesmos, para que a tentativa de nos compreender, ou seja, de compreender um estágio anterior ou um outro aspecto de nossa própria vida, possa ser empreendida. Em contrapartida, em meio à familiaridade da própria vida, nós não precisamos nos compreender. Nesta medida, Dilthey tem razão ao não se dispor a designar “a apreensão de estados próprios (…) como compreensão senão em sentido impróprio”2.

Portanto, é importante conceber a compreensão uma vez mais a partir daquele “comportar-se em relação a…”, que Heidegger tinha rejeitado. Mesmo no poder, nós nos comportamos em relação a algo; ele sempre se mostra como algo que compreendemos como funciona (algo de que entendemos), e, correspondentemente, o fato de o sucesso pertencer à essência da compreensão fica tanto mais claro quanto mais claramente o “algo” em relação ao qual nós nos comportamos é reconhecido como algo que distinguimos de nós mesmos. Ao menos em um primeiro momento, isto nos leva de volta a Dilthey. A partir de suas reflexões sobre a compreensão da “vida psíquica” alheia é possível clarificar como o sentido de êxito da compreensão precisa ser concebido.

[FIGAL, Günter. Oposicionalidade. O elemento hermenêutico e a filosofia. Tr. Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2007]
  1. Estou retomando aqui uma critica que, seguindo ainda outros pressupostos, eu apresentei em meu artigo “Selbstverstehen in instabiler Freiheit. Die hermeneutische Position Martin Heideggers (Autocompreensão em uma liberdade instável. A posição hermenêutica de Martin Heidegger)”, uma das teses do artigo era que Heidegger dá “ao conceito de ‘compreensão’ que é central para a hermenêutica uma virada anti-hermenêutica” (Günter Figal, Selbstverstehen in instabiler Freiheit. Die hermeneutische Position Martin Heideggers, in: Hendrik Birus (org.), Hermeneutische Positionen. SchleiermacherDilthey — Heidegger — Gadamer, Göttingen, 1982, p. 89-119, aqui p. 91).[]
  2. Dilthey, Die Entstehung der Hermeneutik (O surgimento da hermenêutica); GS V, p. 318. Cf também Dilthey, A construção do mundo histórico nas ciências humanas, GS VII, p. 86-87.[]