Figal (2007:113-116) – Compreensão

Casanova

A definição indicada de compreensão remonta a Droysen, mas antes de tudo a Dilthey. Segundo Droysen, aquilo que é compreendido não é outra coisa senão o ‘material histórico”1. Dilthey, por sua vez, apresenta a sua compreensão do compreender nas Ideen über beschreibende und zergliedernde Psychologie (Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica). Neste texto, ele formula a sua compreensão em uma sentença tão marcante que, exatamente por isto, passou a ser sempre citada uma vez mais desde então: “Nós explicamos a natureza e compreendemos a vida psíquica”2.

Com esta ideia, foi tomada uma decisão prévia bastante abrangente: a hermenêutica filosófica estipula da seguinte maneira o fato de o que deve estar em questão na compreensão ser a “vida psíquica”: em tudo aquilo que é compreendido, aquilo que está em questão é, em última instância, a compreensão das pessoas. A ideia pode ser reconduzida a Schleiermacher, que determinara a hermenêutica como a “arte de compreender corretamente o discurso de um outro, principalmente o discurso escrito”3. A compreensão dos escritos tradicionais enquanto um discurso escrito marca a imagem do fazer próprio à hermenêutica e às ciências humanas. Compreender um escrito significa compreender aquilo que é visado nele e como ele é visado, e, para tanto, remonta-se à “vida psíquica” do autor.

A ideia de que o que está em questão na compreensão é, em última instância, a “vida psíquica” ainda permanece efetiva, mesmo onde a concepção diltheyana dessa ideia é criticada como insuficiente. Em sua preleção sobre hermenêutica do semestre de verão de 1923, Heidegger assume essa definição da compreensão como um “comportamento compreensivo em relação a uma outra vida”, sem citar o nome de Dilthey. Para Heidegger, porém, não se indica com essa formulação senão “aquilo que normalmente é denominado compreensão”. Para ele, a compreensão é “totalmente incomparável” com esta denominação, na medida em que ela — a formulação já foi citada uma vez 4 — precisa ser concebida como o “estar desperto do ser-aí para si mesmo”. Esta compreensão não tem mais em comum com uma outra vida psíquica e com suas declarações, e, por isto, ela também não é mais nenhum “comportar-se em relação a…”, mas um “modo de ser do próprio ser-aí”5.

Heidegger trabalhou mais detidamente esta ideia em Ser e tempo. Ai, a compreensão é definida como um modo do descerramento do ser-aí, e não é em vão que Heidegger explicita essa definição a partir da concepção da compreensão como um poder. O único ponto é que aquilo que nós “podemos” na compreensão “não é nenhum quid, (114) mas o ser como existir” O compreender no sentido de Ser e tempo é o saber performativo do ser-aí; ele é um compreender a si mesmo que, ao menos em um aspecto, se mostra ao mesmo tempo como o ser do compreendido: como des-cerramento do próprio ser-possível, a compreensão não é apenas a sua concepção; como abertura do ser-possível, ela é este ser-possível mesmo. Compreender significa o mesmo que dizer que cada um é ele mesmo possível na apreensão imediata do possível que se é e do possível que o mundo é para o ser próprio.

Comparado com as reflexões de Dilthey, o aguçamento heideggeriano da compreensão, enquanto autocompreensão no sentido de um ser autocompreensivo, pode se mostrar como não sendo plausível; o fato de não se compreender outra coisa senão o ser a cada vez próprio não é ao menos elucidativo por si mesmo. No entanto, se considerarmos mais exatamente, a radicalização heideggeriana não é nenhuma posição oposta à de Dilthey. Ao contrário, Heidegger leva adiante as reflexões diltheyanas, na medida em que determina o saber existencial performativo como condição para a compreensão no sentido de Dilthey. Para que possamos conceber algo como expressão de uma “experiência interior”6 alheia, nós precisamos poder descobri-lo ao menos em princípio como possibilidade de nossa própria vida. A compreensão funda-se, tal como se poderia pensar, na autocompreensão: compreendendo algo, nós descobrimos este algo como uma possibilidade que não nos é completamente alheia. Só pode ser “revivenciado”7 aquilo que pode ser considerado como uma possibilidade da própria vida. Nós compreendemos algo porque podemos ou poderíamos ser este algo, ou seja. nós o compreendemos em todo caso a partir do poder-ser.

Este resultado ainda pode encontrar um ponto de apoio, se nos lembrarmos de que uma cor-realização não é possível sem uma tomada de posição própria, por mais inexpressa que essa posição possa permanecer. Quando dizemos que compreendemos o comportamento de uma outra pessoa, não raramente expressamos o fato de que era bem possível que nós mesmos tivéssemos nos comportado assim ou que ao menos poderíamos nos imaginar nos comportando assim em uma situação comparável. Quem compreende não toma simplesmente conhecimento de algo. Com frequência, uma compreensão envolve aprovação; mas mesmo a aprovação não é possível sem co-realização; é somente na medida em que imaginamos a nós mesmos como agindo como um outro que se mostra o fato de nos distanciarmos de sua ação. Com a possibilidade da co-realização, nós mesmos estamos, em todo caso, em jogo.

Por outro lado, a reflexão mostra por que a acentuação heideggeriana do ser-possível, comparada com a concepção de Dilthey, é unilateral; ela deixa sem ser considerado um aspecto que pertence essencialmente à compreensão segundo o emprego cotidiano da expressão. O fato de estarmos em jogo com as nossas próprias convicções na compreensão não precisa indicar que o que está em aí (115) somos nós mesmos. Todavia, se não somos nós mesmos que estamos em questão, a determinação da compreensão como o descerramento da realização da existência não é senão uma redução desprovida de plausibilidade.

No sentido heideggeriano poder-se-ia apontar ainda uma vez para o sentido performativo da compreensão e fazer valer o fato de a co-realização não ser possível sem a realização; para que possamos co-realizar algo, nós precisamos poder realizá-lo. No entanto, esta afirmação não é pertinente; um historiador poderia tentar acompanhar posteriormente a realização das decisões e o modo de agir de um chefe de governo, sem ter ele mesmo qualquer habilidade para a atividade política. E mesmo se o “poder” a ser concebido como saber performativo fosse a significação fundamental do compreender, ainda não se seguiria daí que o que estaria em questão seríamos nós mesmos. O poder que é um compreender sempre possui o caráter de uma capacidade passível de ser adquirida: ninguém diria que compreende como as coisas funcionam no âmbito da visão ou da escuta. Além disto, quando se fala de compreensão no sentido de capacidades, o que se tem em vista não são simplesmente estas capacidades. Ao contrário, o que é acentuado de uma maneira peculiar é muito mais a circunstância de as dominarmos; nós compreendemos como algo funciona em um certo âmbito (nós entendemos de algo), ou seja, nós o dominamos realmente ou de uma maneira particularmente boa. O que está em questão aqui não somos nós mesmos, mas aquilo que podemos fazer.

Uma tal acentuação do poder também se encontra em outros contextos. Só dizemos efetivamente que compreendemos um jogo se ainda não o tínhamos compreendido antes — agora compreendemos o que tinha permanecido até então incompreensível. E aquilo que já se compreendeu pode ser em geral melhor compreendido. Isto também é válido para declarações linguísticas, para o comportamento dos outros, para conferências, livros ou obras de arte. O comunicado de que compreendemos algo só tem o seu sentido em conexão com a possibilidade da não-compreensão. A não-compreensão, por sua vez, pode estar ligada a uma coisa, de tal modo que não temos a menor ideia “do que poderíamos fazer” com ela. Ela também pode ser relativa; neste caso, não compreendemos tão bem algo, como poderíamos ou gostaríamos de compreendê-lo.

A partir daí obtemos uma primeira clarificação daquilo que é a compreensão: a compreensão é a conclusão coroada de êxito de uma ocupação com algo ou alguém, por vezes mesmo a conclusão de um empenho. “Compreensão” é uma palavra que indica sucesso; quando compreendemos, algo foi bem-sucedido, e, assim, se concluiu. Isto também é válido, quando se empreende de uma maneira coroada de êxito aquilo que foi compreendido; neste caso, o sucesso consiste no fato de, diferentemente do que se dava antes, estar-se agora em condições de fazer justamente isto. O compreendido distingue-se do já compreensível e, com maior razão, do auto-evidente (compreensível por si mesmo)8 pelo fato de ele estar concomitantemente ligado a um sucesso. O auto-evidenle (compreensível por si mesmo) foi algum dia compreendido ou exercitado e foi se tornando aí paulatinamente familiar. No entanto, agora isto se acha esquecido; nós nos apropríamos daquilo que a seu tempo foi compreendido e, então, ele se mostra como claro de uma maneira inquestionada. Onde tudo é compreensível e, por isto, também auto-evidente, não precisamos mais compreender.

Uma compreensão do ser-aí, tal como Heidegger a concebe, não pode nem fracassar, nem ter sucesso. Como descerramento, ela é uma condição suprema daquilo que pode ser experimentado enquanto êxito. Todavia, o fato de esta condição dever ser uma compreensão não é elucidativo a partir do sentido da palavra. Para ter o caráter de êxito, uma possibilidade determinada do próprio ser precisaria ser apreendida e afirmada junto à compreensão no sentido do poder. Não obstante, quando seguimos a concepção de Ser e tempo, justamente isto está fora de questão. Determinadas possibilidades não são compreendidas segundo a terminologia introduzida lá, mas são obtidas por meio de uma “interpretação” (exegese)9 É somente na interpretação (exegese), concebida por Heidegger como explicitação do próprio ser possível em diversas possibilidades particulares, que “a compreensão se apropria compreensivamente de seu compreendido”; somente ela é “a elaboração das possibilidades projetadas no compreender”10. A interpretação (exegese) é aqui — tal como de maneira embrionária já em Dilthey”11 — subordinada à compreensão. Na medida em que é conformação da compreensão, nós já sempre nos movimentamos interpretativamente (exegeticamente) em meio ao compreender e às possibilidades por ela projetadas. De maneira correspondente, essas possibilidades não podem ser nem confirmadas, nem se mostrar como irrealizáveis; de uma maneira diversa do projeto daquilo que precisa ser compreendido em sua totalidade, tal como Gadamer o pensa, o projeto no sentido de Ser e tempo é impossível de ser revisto; não se trata aqui da totalidade antecipada à guisa de ensaio de algo a ser compreendido, mas da abertura imediata do próprio ser possível. Este ser possível, porém, é sempre como ele é. Na “fuga” ante o ser possível, em verdade, ele pode se fechar, assim como ele pode se “decidir” uma vez mais na negação desse fechamento. No entanto, ele não se deixa confirmar”12.

Theodore George

  1. Johann Gustav Droysen, Grundriss der Historik (O projeto da ciência histórica), Leipzig, 1868. §9. p. 9-10.[↩]
  2. Wilhelm Dilthey, Ideen über eine beschreibende und zergliedernde Psychologie (Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica — 1894), in: Die geistige Well, Einleitung in die Philosophie des Lebens (O mundo espiritual. Introdução à filosofia da vida), GSV, p. 139-144.[↩]
  3. Schleiermacher. Hermenêutica e critica, p. 71.[↩]
  4. Cf. acima § 2, p. 21s.[↩]
  5. Heidegger, Ontologie (Ontologia). GA 63, p. 15.[↩]
  6. Wilhelm Dilthey, Die Entstehung der Hermeneutik (O surgimento da hermenêutica —1900), GS V. p. 317-338, aqui p. 318.[↩]
  7. Dilthey, A construção do mundo histórico nas ciências humanas, GS VII, p. 213.[↩]
  8. O termo alemão selbstverständlich (auto-evidente, óbvio) significa literalmente aquilo que é compreensível (verständlich) por si mesmo (selbst) (NT.).[↩]
  9. A passagem encerra em si um problema de tradução: o termo heideggeriano ao qual Günter Figal se refere é Auslegung. A tradução corrente deste termo em Heidegger é “interpretação”. No entanto, Figal faz uma diferenciação entre Auslegung. Deutung e Interpretation que se perderia se seguíssemos simplesmente a tradução corrente do termo na obra de Heidegger. Para escapar desse problema, optamos pela inserção do termo “exegese” entre parênteses, apenas para lembrar ao leitor que o que estã em questão aqui é interpretação no sentido de uma explicação, o que aliás se coaduna plenamente com o sentido de interpretação em Ser e tempo (N.T.).[↩]
  10. Heidegger, Ser e tempo. GA 2. p. 197.[↩]
  11. Cf. Dilthey, Die Entstehung der Hermeneutik (O surgimento da hermenêutica), GS V, p. 318.[↩]
  12. Cf. Figal, Fenomenologia da liberdade, capitulo 3, em particular p. 192-194, p. 258-269.[↩]
  13. In both the Stambaugh and the Macquarrie and Robinson translations of Being and Time, Auslegung appears as “interpretation.” In order to remain consistent with my translation of the distinction the author makes above between Deutung and Auslegung, however, I translate Auslegung here, too, with “explication.” —Trans.[↩]
Excertos de ,

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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