Figal (2005:228-229) – impossível inocência

(…) Por si só, o fato de, em razão da inevitabilidade de determinados comportamentos (Verhalt) e de determinados projetos (Entwurf), algo assim como uma inocência própria no ser-aí ser impossível poderia ser certamente elucidativo. De outra maneira, Heidegger não poderia absolutamente falar de um ser culpado (Schuldigsein) originário e dizer que, por meio do clamor da consciência, nos tornamos um ser-aí próprio, ou seja, somos chamados a ser do modo como se é propriamente (Eigentlichkeit). Quando se escuta esse clamor, não se trata justamente de uma “liberação da culpa no sentido do ‘culpado’ essencial” (ST, 288), mas de “ser propriamente (…) ‘culpado’”: “A escuta correta do chamado equivale então a um compreender-se em seu poder-ser mais próprio, isto é, no interior do projetar-se para o mais próprio poder-ser autêntico. O deixar-se-chamar-previamente para essa possibilidade encerra em si o tornar-se-livre do ser-aí para o clamor: a prontidão para o poder-ser-chamado. Compreendendo o clamor, o ser-aí é na escuta de sua mais própria possibilidade existencial” (ST, 287). Aqui não fica claro apenas que Heidegger busca levar em conta com a interpretação da consciência tanto o discurso próprio quanto a compreensão própria, de modo que com isso a “antecipação da morte” se mostra como obsoleta para a concepção da propriedade. Além disso, o que é mais importante no presente contexto, descobre-se que a orientação pelos projetos determinados, cuja imperatividade se supõe para outros ou que se representa em concorrência com eles, no compreender próprio se torna efetivamente permeável ao olhar pela primeira vez como culpada. Isso só é possível uma vez mais porque o ser iminente se torna livre nele por meio da interrupção do falatório (Gerede) e do projetar, assim como se torna livre a abertura do ente (229) pertinente ao ser iminente, tal como é descerrada por meio da angústia. A angústia (Angst) é a tonalidade afetiva (Stimmung) que abre a compreensão intrínseca à consciência e somente porque as coisas são assim o clamor da consciência pode conclamar a assumir o ser-possível (Seinkönnen) fático em meio à abertura do ente existindo como ser iminente. Na medida em que os dois aspectos são experimentados na interrupção do falatório, tornou-se manifesta juntamente com o ser iminente na abertura do ente também a decadência (Verfallen) como tal. Com isso, também fica claro até que ponto a consciência pode ser o “clamor do cuidado”: o clamor da consciência é a exortação para ser propriamente no cuidado (Sorge), e, como essa exortação não vem “de fora”, ele é a modificação do cuidado para a sua propriedade.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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