Figal (2005:213-215) – Stimme (clamor)

Heidegger denomina a voz da consciência o “clamor do cuidado”. Desse clamor diz-se, então, que tem o “caráter do chamado do ser-aí para o seu poder-ser mais próprio e isso sob o modo do apelo para o mais próprio ser culpado” (ST, 269). Mesmo que o clamor da consciência não possa ser nenhuma elocução realmente expressa, e isso já resulta por si só do fato de nele “o cuidado clamar”, Heidegger não se distancia tão amplamente da linguagem corrente quanto se poderia talvez pensar inicialmente. Na linguagem corrente, o “clamor” também não visa apenas a um utterance act. Ao contrário, ele também diz respeito a um illocutionary act que não precisa ocorrer incondicionalmente no pronunciamento de uma sentença ou de uma interjeição: “clamor” é, [214] assim, um termo que aponta para uma exortação, não importando em que medida ele se dê. Se não nos opusermos à exortação, o correlato para ela também não é, com isso, nenhum ouvir sensível, mas um obedecer; em todo caso, ou bem um compreender ou um não compreender. A partir daqui também fica claro o que é visado por Heidegger quando ele diz que “a escuta correta ao clamor” equivale a “um compreender-se em seu poder-ser mais próprio” (ST, 287). O que fica obscuro com certeza é desde onde e como ocorre a exortação para o “poder-ser mais próprio”. Por fim, no sentido cotidiano, toda exortação provém de alguém e ocorre, mesmo se não incondicionadamente no pronunciamento de uma sentença ou de uma interjeição, ao menos de uma maneira determinada e, na maioria das vezes, também compreensível. Se se experimenta agora que é “o cuidado”, ou seja, a constituição ontológica do ser-aí, que exorta para algo na existência, e, com isso, em última instância o ser-aí mesmo, então é natural tomar isso uma vez mais por uma metáfora. Desta feita, é preciso perguntar de que, afinal, isso é uma metáfora.

Para responder a essa pergunta, pode-se tentar inicialmente tornar compreensível como Heidegger chega acima de tudo a interpretar a voz da consciência como um clamor. Seguramente, essa interpretação tem uma fonte na representação tanto da linguagem corrente quanto atestada histórico-conceitualmente da voz da consciência como uma voz que acusa ou adverte.1 O discurso acerca de um acusador interno ou de um juiz interior conduz certamente, como Kant bem o viu, para a dificuldade de que, diante de um tribunal situado na interioridade, o acusado sempre ganharia, portanto, e seria absolvido.2 Por isso, Kant retirou a consequência e pensou a consciência como um poder efetivo na interioridade, mas de qualquer modo diverso de alguém mesmo, uma consequência, aliás, com a qual Freud 3 também continua a estar comprometido com sua interpretação da consciência como possuindo uma função de superego. Com isso, torna-se inteligível de que é, afinal, que a metáfora da voz interna é uma metáfora. Se se segue a Kant ou a Freud, porém, retira-se ao mesmo tempo, logo no começo, o solo próprio à concepção heideggeriana da voz da consciência: se se toma o sentido do discurso acerca de uma voz interior dependente do fato de essa voz estar subordinada a uma instância ela mesma diversa, então precisa permanece inalterável o modo como o ser-aí deve clamar por “si mesmo em meio à consciência” (ST, 275). Ter-se-ia a ver, nesse caso, com um modo de falar que, tomado exatamente, não seria nem mesmo metafórico e estaria, além disso, carregado com aquela dificuldade da qual Kant acreditava ter se livrado. Heidegger [215] rejeitou expressamente a interpretação da consciência como a voz de uma instância diversa do ser-aí. Assim como a tentativa de demonstrar que não há uma tal instância e que, então, também não há a voz da consciência, essa interpretação salta “de maneira por demais apressada por sobre o resultado fenomenal” (ST, 275). Esse resultado consiste em que o clamor “não é nunca justamente planejado nem preparado por nós mesmos, nem tampouco empreendido volitivamente”: “O clamor ‘se’ dá contra expectativas e até mesmo contra a vontade. Por outro lado, o clamor não provém, sem dúvida alguma, de um outro que está comigo no mundo. O clamor vem de mim e de qualquer modo sobre mim” (ST, 275). O “se” impessoal, que é ainda mais acentuado pelas aspas, desempenha um papel importante na linguagem de Heidegger.4 O “se” já veio à tona em meio à análise da angústia quando se disse que nela “se” está estranho; e, igualmente, em meio à análise do tédio na preleção sobre Os conceitos fundamentais da metafísica (OC 29-30). O “se” torna-se, então, central na conferência posterior de Heidegger “Tempo e ser”, na qual formulações como “dá-se ser” e “dá-se tempo” são compreendidas como testemunhos do “acontecimento apropriativo”. No presente contexto, em contrapartida, pode-se compreender o “se” nas expressões verbais impessoais com ele formadas como equivalente a “ser-aí”. O termo “ser-aí”, assim o diz Heidegger em sua última preleção de Marburg, deve designar uma “neutralidade peculiar” (OC 26, 171), e justamente essa neutralidade precisará ser tomada como o clamor da consciência.

  1. Quanto à história do conceito, cf. Reiner (1974), p. 574-592.[]
  2. Metafísica dos costumes. Doutrina da virtude, § 13, A100.[]
  3. Cf. Freud (1930).[]
  4. Günter Figal refere-se aqui à partícula alemã es, que se apresenta a princípio como pronome pessoal relativo aos substantivos neutros. Como em alemão, porém, nenhuma oração pode ser estabelecida sem um sujeito explicitamente firmado, os verbos que em português chamamos de impessoais recebem essa partícula: chove (es regnet), há (es gibt), é (es ist). E no contexto dessas expressões que temos de entender o que está dito supra. (N.T.)[]