Ferreira da Silva (2010:462-465) – o nivelamento

A verdade da história e a verdade individual e interior não coincidem, crescendo em direções diversas. A categoria da história macroscópica é a categoria da quantidade, da eficácia a todo o custo, da forma arrebatadora, enquanto que o domínio da interioridade subjetiva não é precedido pelos clarins da história mundial. Em resumo, o homem subjetivo do pensador dinamarquês não é um frequentador do teatro da história mundi, não é (462) uma personalidade genial, nem um grande do século, mas unicamente um grande diante de Deus.

E assim ele se propõe a desmontar esse cenário de papelão da história universal, e desarticular o processo global em proveito da pontualidade dos destinos individuais ou da verdade subjetiva. A história assim se apresenta como uma ficção criada pela mente construtiva dos eruditos e professores, ao arrumarem o infinito dos fatos acontecidos numa tela fantástica e irreal. “No processo da história mundial”, diz Kierkegaard, “os mortos não são chamados à vida, mas unicamente a uma vida objetiva e fantástica, e Deus se comporta num sentido fantástico como a alma desse processo”. No processo da história o homem aliena a sua autoconsciência existencial, sacrifica suas possibilidades concretas e intransferíveis em tributo a um ídolo espectral e ilusório, a história. Não é aí que devemos descobrir quais as nossas tarefas existenciais próprias e qual o código ético que devemos seguir. A ética é um assunto de interioridade, e de realização personalíssima. Para o homem interior o que importa é a palavra de Deus, é o significativo em e para Deus e não o genialismo da história mundial com sua tragicidade estética e teatral. A verdade subjetiva pregada por Kierkegaard implica portanto num transcender a forma de exterioridade da história e a história como tribunal do mundo. Para o homem subjetivo, que está em relação com o Eterno, a história e o tempo constituem uma sombra falaz da eternidade, um estar-fora-de-si, um não-ser. O homem kierkegaardiano vive no instante, é um ser concreto e existente, que não é o homem em geral, mas sim esse homem singular, único, concentrado em si mesmo. Mas esse homem deve conquistar-se sempre a partir da exterioridade abstrata do das Man, do homem em geral, do homem decaído na banalidade com sua concepção própria das coisas e da vida. O homem em geral, em nosso tempo, é o homem massa, a plebe, o poder abstrato da omnitude e todas as formas de nivelamento e abastardamento da verdade individual. Em seu livro Crítica da Época Presente, Kierkegaard aduz ideias muito afins às de Nietzsche em relação ao fenômeno do nivelamento e (463) do ressentimento. As forças que colimam o aplatissement universal do espírito em níveis cada vez mais inferiores nutrem-se do ressentimento por tudo que é único e excelso. O nivelamento é, segundo Kierkegaard, a supremacia absoluta da abstração sobre o individual, da categoria do gênero sobre a categoria do indivíduo e em geral o prestígio incontestado da ideia de massa e igualdade matemática. Entretanto, o nivelamento é a outra face da falta de paixão e de caráter do homem contemporâneo. Em um de seus livros, Kierkegaard afirmou que o Absoluto separa, destaca, pontualiza em consonância aliás com sua doutrina da verdade subjetiva. Pelo contrário, o predomínio desse “espantoso nada” do nivelamento da massa, a vitória do Público, significa a não-verdade e a não-existencialidade da vida atual. Esse público e essa massa é constituída pelos homens nos momentos em que não são nada, nos instantes, dias e anos em que renegam a sua consciência de si e se põem como inermes fantasmas. A dialética existencial se desenvolve aqui como um movimento vis-à-vis do poder abstrato do nivelamento. O existencialismo seria o único antídoto filosófico à invasão do nivelamento e do comportamento multitudinário. Esse comportamento não é sinal de força, paixão e desenvolvimento, mas sim de astenia, indolência e irresponsabilidade. O nivelamento é o crescimento do objeto, da forma objetiva de ser, da omnitude, representa o adelgaçamento ontológico e a nulidade do homem massa. Possuído pelo fantasma do homem objetivo, o homem rodopia e erra cada vez mais longe de si mesmo, cada vez mais alienado a si, no rebanho devorador da multidão. O seu pensamento é o pensamento de todos, o seu agir é o agir de todos e assim o seu sentir. Mas esse pensar, agir e sentir não têm qualquer verdade, é um poder abstrato, desde que toda a verdade reside na subjetividade. Esse é o homem sem Absoluto, o homem infinitamente leve, o homem sombra, o homem nada. Ao se conquistar sobre o público, a plebe, a massa e a omnitude, a consciência volta a adquirir o Absoluto e volta a relacionar-se com Deus que é também interioridade e subjetividade em grau infinito. Essa conquista não é uma luta fora de mim, uma luta com os outros, mas sim uma luta em mim desde que esse poder do homem objetivo se (464) aninha em cada um de nós. O transcender da subjetividade subjetivante é um ir além da forma de omnitude e da objetividade que se expressa continuamente no meu agir e pensar. A verdade ou a subjetividade como verdade é o resultado de um salto que nos devolve a nós mesmos, que nos devolve porque nos conduz às origens, ou à Origem, a Deus, ao não objeto Absoluto. Esse tornar-se subjetivo é para o pensador dinamarquês uma conquista laboriosa, um devir contínuo, porque todo o parar é um cair em poder da abstração e do objeto. A verdade subjetiva é em consequência um militar, um transcender que só existe em ato. A área conquistada somos nós mesmos, mas nós só existimos no salto, na escolha que nos constitui. Essa é a doutrina da verdade, segundo Kierkegaard.