(…) Essa experiência, porém, em que se tornam exânimes e indiferentes as coisas que mais de perto nos concernem não é senão o fenômeno da angústia (Angst). Somente angustiando-nos é que podemos, de certa forma, libertar-nos da oclusão nesse cenário ontomórfico do errar (Irren). O que experimentamos realmente no transe da angústia é a irrupção do nada (Nichts) no sistema das coisas e oportunidades que compõem a nossa vida. O sentimento da inanidade, da insignificância e da diferença de todas as coisas se dá pela infiltração sorrateira e silenciosa do nada, do nada desse Ente que compunha antes o cenário de nossa predileção. O nada (244) que se manifesta na angústia nos arranca, portanto, desse estar confinado do Ente que constituía o errar. Eis por que podemos dizer que a angústia é a propedêutica de uma experiência filosófica mais original, pelo fato de emancipar o pensamento de sua subordinação ao simplesmente oferecido. Evidentemente, o campo da angústia deve ser entendido não no sentido existentivo (no sentido kierkegaardiano), mas como instância ontológica existencial. O conceito kierkegaardiano de angústia se cumpre no âmbito antropocêntrico do indeterminado humano; a experiência da angústia que atua como antídoto ao esquecimento do Ser é a culminância de uma crise que vai além do naufrágio das simples e humanas indeterminações optativas, para nos remeter ao regime selvagem das coisas que ultrapassam o humano. A angústia do humano como humano que se manifesta no fastio da conexão humana é o sentido da náusea sartriana, que também circunscreve uma das formas espásticas da mudança da consciência filosófica contemporânea. Podemos pressentir na náusea, segundo a determinação de Sartre, uma espécie de segunda potência do angustiar-se em relação à acepção kierkegaardiana. Em Kierkegaard, a angústia transcorre num âmbito de interesse firme e inabalável pela salvação humana, ao passo que em Sartre o próprio homem é alvo de uma indiferença e de um fastio cósmicos. A paixão infinita pela própria salvação transforma-se no infinito lastro de uma liberdade estendida e exausta.
(FERREIRA DA SILVA, Vicente. Transcendência do Mundo. São Paulo : É Realizações, 2010)