Fédier (1995:114-117) – Ereignis

Não posso concluir essas reflexões sem dizer uma palavra sobre a tradução do termo Ereignis. Eu costumava traduzi-lo como “appropriement”. A intenção claramente não era ir em direção ao significado usual da palavra em alemão, onde ela designa o evento, aquilo que acontece de tal forma que se torna um evento. Ao propor appropriement, concentrei-me no significado que surge quando se ouve a palavra falada em seu próprio idioma. Er-eignis (desde que entendamos eignis de eigen: aquilo que é próprio) expressa o movimento que leva a ser propriamente si mesmo. Esse entendimento não está errado, mas ainda é muito superficial e, portanto, enganoso. Em geral, é muito importante perceber que o menor desvio — mesmo que seja inicialmente imperceptível — na medida em que não nos permite estar rigorosamente à frente do que deve ser almejado, já é, por si só, catastrófico. Nesse sentido, a tradução de Ereignis como “appropriement” é um desastre.

Então, devemos voltar ao evento (événement)? Há uma diferenciação suficiente no uso dessa palavra em francês para que valha a pena examiná-la. Na obra de Péguy, por exemplo, événement se distingue de qualquer outro termo que designe o que acontece, a ponto de sugerir o título De la souveraineté de l’événement (para um livro que trata de “ce que c’est que l’événement”, “puis qu’il est souverain” — cf. Charles Péguy Œuvres complètes en prose, Pléiade, t. II, p. 871). No mesmo volume, mas na página 1393, é citado um texto póstumo no qual lemos: “Nessa oficina singular que o mundo se torna assim (considerada de acordo com a temporação do tempo), o trabalho é feito por peça, o evento é feito por hora. O mundo trabalha por peça, mas (devém, {évient}, flui) passa por hora”. Um hapax surpreendente do verbo évenir, a partir do qual Péguy faz nascer o evento — que passa a designar não “um acontecimento qualquer”, mas o próprio movimento do évenir, no qual o mundo “faz” seu tempo, como é especificado dez linhas abaixo.

Ao ler tal texto, somos tentados a seguir o exemplo e verificar se “evento”, entendido como o movimento de deixar acontecer, não seria uma boa tradução para Ereignis. Infelizmente, esse não é o caso, e traduzir Ereignis como Evénement seria um abandono.

Isso se deve ao fato de não termos dado à palavra a atenção escrupulosa que ela exige. De fato, Ereignis — como Wolfgang Brokmeier aponta vigorosamente no notável estudo “Heidegger und wir” (Genos, Lausanne, 1992, pp. 61-95) — apenas aparentemente deriva de eigen no sentido de “próprio”, de acordo com o que acaba sendo um belo exemplo de etimologia popular. Assim, todo o tema de propriedade e posse não é eliminado, mas relegado a uma importância secundária. A construção da palavra é Er-äug-nis, e a matriz de significado é o verbo äugen, que costumava ser soletrado como eugen e também como eigen. Portanto, há dois homônimos cujos significados não devem ser confundidos: um é (em paralelo com o inglês own) uma indicação do que é próprio, enquanto o outro designa claramente o fato de pôr sob os olhos. Entender Ereignis fielmente à sua etimologia é, acima de tudo, não perder o aspecto ostensivo que se manifesta nele. Ereignis deve ser entendido como o movimento que leva à visibilidade, que torna possível ver, que faz aparecer e, portanto, se destacar. É pelo fato de produzir uma manifestação que o Ereignis veio, como resultado, a assumir o significado daquilo que, pelo fato de se destacar, faz um evento. Mas, se olharmos atentamente, Ereignis não nomeia o evento, mas aquilo que faz com que um evento aconteça: o aparecimento que primeiro ocorre (o aparecimento como acontece, é claro, mas primeiro) para que um evento possa aparecer.

Na obra de Heidegger, esse significado primário é reconhecido como tal. Isso permite que Heidegger conduza o eigen, entendido como o “próprio”, de volta ao significado primordial de eigen (como äugen: tornar visível, fazer ver), em um movimento exemplar de pensamento, pois, além da distinção que é necessária quando se trata de não confundir a identificação, isso nos permite ver a secundidade do próprio por meio de uma desapropriação ostensiva. Talvez já estejamos vendo aqui até que ponto a virada (Kehre) está no coração de Ereignis — que ao mesmo tempo nos faz ver como nem “apropriação” (que é muito aquém) nem “evento” (que não é suficientemente acrítico) nos dão Ereignis como deveria ser traduzido.

Na palestra Der Satz der Identität (que o entendimento mais condizente com o propósito da palestra nos obriga a traduzir: o salto que nos faz saltar para o próprio coração de onde provém o átrio da identidade), onde Heidegger, no final de sua carreira universitária, se aventura pela primeira vez a tratar pública e tematicamente do Ereignis, podemos ler: “Como palavra-guia que se pensa dessa maneira, o Ereignis se permite ser traduzido tão pouco quanto a palavra-guia do pensamento grego e a palavra chinesa Tao”.”