Pois só então o estar em silêncio se revela e, assim, abafa a “FALAÇÃO”. STMSC: §34
A expressão “FALAÇÃO” não deve ser tomada aqui em sentido pejorativo. Terminologicamente significa um fenômeno positivo que constitui o modo de ser do compreender e da interpretação da presença [Dasein] cotidiana. A fala, na maior parte das vezes, se pronuncia e já sempre se pronunciou. É linguagem. Ao pronunciar-se, o compreender e a interpretação já se dão. Como um pronunciamento, a linguagem guarda em si uma interpretação da compreensão de presença [Dasein]. Assim como a linguagem, também essa interpretação não é algo simplesmente dado, mas o seu ser contém em si o modo de ser de presença [Dasein]. Dentro de certos limites e imediatamente, a presença [Dasein] está entregue à interpretação, na medida em que essa regula e distribui as possibilidades do compreender mediano e de sua disposição. Na totalidade de suas articulações de significado, o pronunciamento preserva um compreender do mundo que se abriu e, de maneira igualmente originária, um compreender da co-presença [Dasein] dos outros e do próprio ser-em. A compreensão que, assim, já se acha inserida no pronunciar-se refere-se tanto à descoberta já estabelecida e herdada dos entes como a cada compreensão de ser e às possibilidades e horizontes disponíveis para novas interpretações e novas articulações conceituais. Muito mais do que uma simples indicação do fato dessas interpretações da presença [Dasein], cabe agora questionar o modo de ser existencial da fala que se pronuncia e já se pronunciou. Se o modo de ser da fala não pode ser concebido como algo simplesmente dado, qual é então o seu ser e o que diz, em princípio, sobre o modo de ser cotidiano da presença [Dasein]? STMSC: §35
De acordo com a compreensibilidade mediana já dada na linguagem falada que se articula nesse pronunciar-se, a fala comunicada pode ser compreendida amplamente sem que o ouvinte se coloque num ser que compreenda originariamente do que trata a fala. Não se compreende tanto o referencial da fala, mas só se escuta aquilo que já se falou na FALAÇÃO. Esta é compreendida, e aquele só mais ou menos e por alto. Tem-se em mente a mesma coisa porque se compreende em comum o dito numa mesma medianidade. STMSC: §35
Tanto a escuta quanto o compreender já aderiram previamente ao que foi falado como tal. A comunicação não “partilha” a referência ontológica primordial com o referencial da fala, mas a convivência se move dentro de uma fala comum e numa ocupação com o falado. O seu empenho é para que se fale. O que se diz, o dito e a dicção empenham-se agora pela autenticidade e objetividade da fala e de sua compreensão. Por outro lado, dado que a fala perdeu ou jamais alcançou a referência ontológica primária ao referencial da fala, ela nunca se comunica no modo de uma apropriação originária deste sobre o que se fala, contentando-se com repetir e passar adiante a fala. O falado na FALAÇÃO arrasta consigo círculos cada vez mais amplos, assumindo um caráter autoritário. As coisas são assim como são porque é assim que delas (impessoalmente) se fala. Repetindo e passando adiante a fala, potencia-se a falta de solidez. Nisso se constitui a FALAÇÃO. A FALAÇÃO não se restringe apenas à repetição oral da fala, mas expande-se no que escreve enquanto “escrivinhação”. Aqui, a repetição da fala não se funda tanto no ouvir dizer. Ela se alimenta do que se lê. A compreensão mediana do leitor nunca poderá distinguir o que foi haurido e conquistado originariamente do que não passa de mera repetição. E mais ainda, a própria compreensão mediana não tolera tal distinção, pois não necessita dela, já que tudo compreende. STMSC: §35
A falta de solidez da FALAÇÃO não lhe fecha o acesso ao que é público, mas o favorece. A FALAÇÃO é a possibilidade de compreender tudo sem se ter apropriado previamente da coisa. A FALAÇÃO se previne do perigo de fracassar na apropriação. A FALAÇÃO que qualquer um pode sorver sofregamente não apenas dispensa a tarefa de um compreender autêntico, como também elabora uma compreensibilidade indiferente da qual nada é excluído. STMSC: §35
A fala que pertence à constituição de ser essencial da presença [Dasein] também perfaz a sua abertura. Ela traz a possibilidade de se tornar FALAÇÃO e, com isso, de manter o ser-no-mundo não tanto numa compreensão estruturada, mas de trancar e encobrir os entes intramundanos. Para isso, porém, não necessita da intenção de enganar. A FALAÇÃO não tem o modo de ser em que apresenta conscientemente algo como algo. O que é sem solo ou fundamento já lhe basta para transformar a abertura em fechamento. Pois o que foi dito já foi sempre compreendido como algo “que diz”, ou seja, que descobre. A FALAÇÃO é, pois, por si mesma, um fechamento, devido à sua própria abstenção de retornar à base e ao fundamento do referencial. STMSC: §35
Este fechamento é, de novo, potenciado por a FALAÇÃO pretender ter compreendido o referencial da fala com base nessa pretensão de reprimir, postergar e retardar toda e qualquer questão e discussão. STMSC: §35
Este tipo de interpretação própria da FALAÇÃO já se consolidou na presença [Dasein]. É dessa maneira que aprendemos e conhecemos muitas coisas. É dessa maneira ainda que não poucas coisas jamais conseguem ultrapassar uma tal compreensão mediana. A presença [Dasein] nunca consegue subtrair-se a essa interpretação cotidiana em que ela cresce. Todo compreender, interpretar e comunicar autênticos, toda redescoberta e nova apropriação cumprem-se nela, a partir dela e contra ela. Não é possível uma presença [Dasein], que não sendo tocada nem desviada pela interpretação mediana, pudesse colocar-se diante da paisagem livre de um “mundo” em si, para apenas contemplar o que lhe vem ao encontro. O predomínio da interpretação pública já decidiu até mesmo sobre as possibilidades de sintonização com o humor, isto é, sobre o modo fundamental em que a presença [Dasein] é tocada pelo mundo. O impessoal prescreve a disposição e determina o quê e como se “vê”. STMSC: §35
Obstruindo da maneira descrita, a FALAÇÃO constitui o modo de ser da compreensão desenraizada de presença [Dasein]. Ela não se apresenta como estado simplesmente dado de algo simplesmente dado, mas, existencialmente sem raízes, ela mesma é no modo de um contínuo desenraizamento. Do ponto de vista ontológico, isso significa: como ser-no-mundo, a presença [Dasein] que se mantém na FALAÇÃO cortou suas remissões ontológicas primordiais, originárias e legítimas com o mundo, com a co-presença [Dasein] e com o próprio ser-em. Ela se mantém oscilante e, desse modo, sempre é e está junto ao “mundo”, com os outros e consigo mesma. Somente um ente cuja abertura é constituída pela fala compreensiva e sintonizada numa disposição, ou seja, que tenha o seu pre [das Da], que é e está “no-mundo”, nessa constituição ontológica, é que também traz a possibilidade ontológica de um tal desenraizamento. Mais do que um não-ser, esse desenraizamento perfaz sua “realidade” mais cotidiana e mais persistente. STMSC: §35
A FALAÇÃO também rege os caminhos da curiosidade. É ela que diz o que se deve ter lido e visto. Esse estar em toda parte e em parte alguma da curiosidade entrega-se à responsabilidade da FALAÇÃO. Esses dois modos de ser cotidianos da fala e da visão não se acham simplesmente um ao lado do outro em sua tendência de desenraizamento, mas um modo de ser arrasta o outro consigo. A curiosidade, que nada perde, e a FALAÇÃO, que tudo compreende, dão à presença [Dasein], que assim existe, a garantia de “uma vida cheia de vida”, pretensamente autêntica. Com esta pretensão, porém, mostra-se um terceiro fenômeno característico da abertura da presença [Dasein] cotidiana. STMSC: §36
Supondo que aquilo que impessoalmente se pressentiu e farejou seja, algum dia, de fato transformado, será justamente a ambiguidade quem terá cuidado para que morra imediatamente o interesse pela coisa realizada. Esse interesse só subsiste no modo da curiosidade e da FALAÇÃO, ao dar-se como a possibilidade de mero pressentimento em comum, sem nenhum compromisso. Quando e enquanto se está na pista de alguma coisa, o mero estar junto recusa o compromisso do acompanhamento no momento em que se dá início à realização do que se pressentiu. É que, com a realização, a presença [Dasein] se vê sempre remetida a si mesma. A FALAÇÃO e a curiosidade perdem o seu poder. E, por isso, se vingam. Face à realização do que se pressente em comum, a FALAÇÃO lança logo mão de uma constatação fácil: isso qualquer um poderia ter feito, pois também já o tinha pressentido. Em última instância, a FALAÇÃO não está sequer empenhada em que o que ela pressente e constantemente requer aconteça realmente. Pois, com isso, ser-lhe-ia arrancada a oportunidade de continuar pressentindo. STMSC: §37
Entretanto, o tempo do empenho da presença [Dasein] no estado silencioso da realização e de um autêntico fracasso é totalmente diverso. Do ponto de vista público, é sensivelmente muito mais vagaroso do que o tempo da FALAÇÃO, que “vive mais velozmente”. Por isso, a FALAÇÃO, de há muito, já estava em outra, na mais nova. O que antes havia pressentido e uma vez realizado já chegou tarde demais com relação à novidade mais recente. Em sua ambiguidade, a FALAÇÃO e a curiosidade cuidam para que aquilo que se criou de autenticamente novo já chegue envelhecido quando se torna público. Este só consegue libertar-se em suas possibilidades positivas, quando a FALAÇÃO encobridora perde a voga, e o interesse “comum” morre. STMSC: §37
A ambiguidade da interpretação pública proporciona as falas adiantadas e os pressentimentos curiosos com relação ao que propriamente acontece, carimbando assim as realizações e as ações com o selo de retardatário e insignificante. Desse modo, no impessoal, o compreender da presença [Dasein] não vê a si mesmo em seus projetos, no tocante às possibilidades ontológicas autênticas. A presença [Dasein] é e está sempre “por aí” [»da«] de modo ambíguo, ou seja, por aí na abertura pública da convivência, onde a FALAÇÃO mais intensa e a curiosidade mais aguda controlam o “negócio”, onde cotidianamente tudo e, no fundo, nada acontece. STMSC: §37
Essa ambiguidade oferece à curiosidade o que ela busca e confere à FALAÇÃO a aparência de que nela tudo se decide. Esse modo de ser da abertura do ser-no-mundo também domina inteiramente a convivência como tal. Numa primeira aproximação, o outro “está por aí” [»da«] pelo que se ouviu impessoalmente dele, pelo que se sabe e se fala a seu respeito. A FALAÇÃO logo se insinua dentre as formas de convivência originária. Todo mundo presta primeiro atenção em como o outro se comporta, no que ele irá dizer. A convivência no impessoal não é, de forma alguma, uma justaposição acabada e indiferente, mas um prestar atenção uns nos outros, ambíguo e tenso. Trata-se de um escutar uns aos outros secretamente. Sob a máscara do ser um para o outro atua o ser um contra o outro. STMSC: §37
Os fenômenos da FALAÇÃO, da curiosidade e da ambiguidade foram explicitados de maneira a revelar entre eles mesmos um nexo ontológico. O modo de ser desse nexo é o que se deve agora apreender do ponto de vista ontológico-existencial. O modo básico do ser da cotidianidade deve ser compreendido no horizonte das estruturas ontológicas da presença [Dasein] até aqui obtidas. STMSC: §37
A FALAÇÃO, a curiosidade e a ambiguidade caracterizam o modo em que a presença [Dasein] realiza cotidianamente o seu “pre” [das Da], a abertura de ser-no-mundo. Como determinações existenciais, essas características não são algo simplesmente dado na presença [Dasein], constituindo também o seu ser. Nelas e em seu nexo ontológico, desvela-se um modo fundamental de ser da cotidianidade que denominamos com o termo decadência da presença [Dasein]. STMSC: §38
Este termo não exprime qualquer avaliação negativa. Pretende apenas indicar que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] está junto e no “mundo” das ocupações. Este empenhar-se e estar junto a… possui, frequentemente, o caráter de perder-se no caráter público do impessoal. Por si mesma, em seu próprio poder-ser si mesmo mais autêntico, a presença [Dasein] já sempre caiu de si mesma e decaiu no “mundo”. Decair no “mundo” indica o empenho na convivência, na medida em que esta é conduzida pela FALAÇÃO, curiosidade e ambiguidade. O que anteriormente denominamos de impropriedade da presença [Dasein] recebe agora, com a interpretação da decadência, uma determinação mais precisa. Impróprio e não próprio não significam, de forma alguma, “propriamente não”, no sentido de a presença [Dasein] perder todo o seu ser nesse modo de ser. Impropriedade também não diz não mais ser e estar no mundo. Ao contrário, constitui justamente um modo especial de ser-no-mundo em que é totalmente absorvido pelo “mundo” e pela co-presença [Dasein] dos outros no impessoal. Não ser ele mesmo é uma possibilidade positiva dos entes que se empenham essencialmente nas ocupações de mundo. Deve-se conceber esse não-ser como o modo mais próximo de ser da presença [Dasein], o modo em que, na maioria das vezes, ela se mantém. STMSC: §38
A FALAÇÃO abre para a presença [Dasein] o ser, em compreendendo, para o seu mundo, para os outros e para consigo mesma, mas de maneira a que esse ser para… conserve o modo de uma oscilação sem solidez. A curiosidade abre toda e qualquer coisa, de maneira que o ser-em esteja em toda parte e em parte nenhuma. A ambiguidade não esconde nada à compreensão de presença [Dasein], mas só o faz para rebaixar o ser-no-mundo ao desenraizamento do em toda parte e em parte nenhuma. STMSC: §38
A FALAÇÃO e a interpretação pública nela inscrita constituem-se na convivência. A FALAÇÃO não se dá dentro do mundo como um produto isolado da convivência e simplesmente dado para ela dentro do mundo. Também não pode ser esvaziada como uma “generalidade” que, não pertencendo essencialmente a ninguém, não seria “propriamente” nada e que só ocorreria “realmente” no dizer da presença [Dasein] singular. A FALAÇÃO é o modo de ser da própria convivência e não surge em certas circunstâncias que agiriam “de fora” sobre a presença [Dasein]. Se, porém, na FALAÇÃO e na interpretação pública, a própria presença [Dasein] confere a si mesma a possibilidade de perder-se no impessoal e de decair na falta de solidez, é porque a própria presença [Dasein] prepara para si mesma a tentação constante de decair. É que o ser-no-mundo já é em si mesmo tentador. STMSC: §38
Tornando-se desse modo tentação, a interpretação pública mantém a presença [Dasein] presa em sua decadência. A FALAÇÃO e a ambiguidade, o já ter visto tudo e já ter compreendido tudo, perfazem a pretensão de que a abertura da presença [Dasein], assim disponível e dominante, seria capaz de lhe assegurar a certeza, a autenticidade e a plenitude de todas as possibilidades de seu ser. A certeza de si mesmo e a decisão do impessoal espalham uma suficiência crescente no tocante à compreensão própria e disposta. A pretensão do impessoal, de nutrir e dirigir toda “vida” autêntica, tranquiliza a presença [Dasein], assegurando que tudo “está em ordem” e que todas as portas estão abertas. O ser-no-mundo da decadência é, em si mesmo, tanto tentador como tranquilizante. STMSC: §38
A questão que orienta este capítulo buscava o ser do pre [das Da]. O tema era a constituição ontológica da abertura, inerente à essência da presença [Dasein]. O modo de ser da abertura forma-se na disposição, no compreender e na fala. O modo de ser cotidiano da abertura caracteriza-se pela FALAÇÃO, curiosidade e ambiguidade. STMSC: §38
O que se descobre e se abre instala-se nos modos de distorção e fechamento através da FALAÇÃO, da curiosidade e da ambiguidade. STMSC: §44
Entretanto, o próprio da cotidianidade é o impessoal, constituído na interpretação pública expressa na FALAÇÃO. STMSC: §51
Impõe-se, assim, a pergunta: Como a compreensão, que se acha disposta na FALAÇÃO do impessoal, abriu o ser-para-a-morte? STMSC: §51
Se a ambiguidade é o próprio da FALAÇÃO, isso se dá, sobretudo, nessa fala sobre a morte. STMSC: §51
A explicação do ser-para-a-morte cotidiano deteve-se na FALAÇÃO do impessoal: algum dia se morre mas por ora ainda não. STMSC: §52
Perdendo-se no teor público do impessoal e na sua FALAÇÃO, a presença [Dasein], ao escutar o impessoalmente si mesmo, não dá ouvidos ao próprio de si mesma. STMSC: §55
Se este se caracteriza pelo “ruído” da ambiguidade múltipla e variada da FALAÇÃO cotidianamente “nova”, o apelo deve apelar sem ruído, sem ambiguidade, sem apoiar-se na curiosidade. STMSC: §55
E isso somente porque o apelo não interpela para a FALAÇÃO pública do impessoal mas sim para dele sair e passar para a silenciosidade do poder-ser existente. STMSC: §57
A silenciosidade retira a palavra da FALAÇÃO e da compreensão impessoal. STMSC: §60
Que o impessoal, que apenas escuta e compreende a algazarra da FALAÇÃO, não pode “constatar” nenhum apelo, isso é então atribuído à consciência com a justificativa de que ela é “muda” e manifestamente não é um simples dado. STMSC: §60
A análise preparatória da decadência teve início com a interpretação da FALAÇÃO, da curiosidade e da ambiguidade. STMSC: §68
A análise da FALAÇÃO e da ambiguidade, por sua vez, já pressupõe o esclarecimento da constituição temporal da fala e da significação (da interpretação). STMSC: §68