Eudoro de Sousa (HCSM:125-142) – Heráclito

72. Deixamos Heráclito para o fim, por duas razões que, de algum modo, sem sabermos por ora quais sejam, devem andar estreitamente correlacionadas. A primeira é que o filósofo não tem lugar na «história» da filosofia grega, se por tal entendemos o desenvolvimento do que se chama «filosofia», em qualquer direcção bem definida a partir de problemas enunciados, de Tales de Mileto a Proclo de Atenas, isto é, do primeiro dos pré-socráticos ao último dos neoplatónicos. Heráclito não pode ser posto depois de qualquer um e antes de qualquer outro, por intrínseca necessidade de uma evolução do pensamento, seja qual for a ideia que se proponha como propulsora de uma evolução. Se, ainda hoje, compêndios e tratados de história da filosofia lhe designam um lugar que, com raríssimas excepções, é o da imediata precedência a Parmênides, o facto se deve, certamente, à parcialidade de um mal-entendido, voluntário ou involuntário. E a segunda é que o «obscuro» Heráclito permanece na obscuridade e ainda não vemos que luz possa esclarecê-lo. Ao que nos parece, os estudos mais recentes só penetram até o ponto, do qual bem se avista o que ele jamais pensou. Damos, por flagrante exemplo, a obra de Kirk (1954), mostrando com perfeita clareza o lugar e o tempo de onde arranca o erro de interpretação que viciou a história. Não há certeza mais certa do que esta: a «fluência» de todas as coisas não é a primeira nem a última palavra de Heráclito; nem sequer é palavra que alguma vez tenha designado o quer que Heráclito tenha por verdade a realidade: o panta rhei é um dos maiores ludibrios da história. A seguir vem a «dialéctica». Também não se vê o que possa ter iludido Hegel, a ponto de proclamar que todos os fragmentos de Heráclito foram incorporados na sua Lógica, o que, evidentemente, quer dizer que, por pouco, Heráclito falhara o alvo que ele se propôs atingir. «Fluência» da realidade e «dialéctica» dos contrários, uma em grau maior outra em grau menor, mais obscurecem a obscuridade do «obscuro» filósofo de Éfeso. Para Heráclito, o lugar predilecto da história é o do adversário inominado, a quem Parmênides se oporia expressis verbis, no frg. 6. Porém, o mais que desses versos se infere é que eles poderiam referir-se a Heráclito (Mansfeld, cap. i) se demonstrável fosse, mediante provas internas ou externas, que Heráclito cronologicamente precedeu Parmênides, e, ainda, que Parmênides tivesse conhecimento da obra de Heráclito. Mas «a data de Heráclito tem de assentar em mera conjectura, e sua cronologia relativa, em provas internas, valham o que valerem tais provas. Na história da filosofia clássica, poucas fantasias têm tão picante ironia, quanto a ainda demasiado frequente confiança em provas externas, para datar Parmênides após Heráclito» (Stokes, 1971, p. 109). E quanto a provas internas: «pode dizer-se, por exemplo, que, se Parmênides conhecia a obra de Heráclito, seria possível, talvez mesmo provável, que Parmênides tinha Heráclito em mente, como principal representante de alguma das concepções que rejeita. Restam-nos algumas ‘reminiscências’ verbais, cujo efeito, se algum têm, há-de ser, evidentemente, considerado como acumulativo. Se há filólogos que prefiram decidir-se pelo efeito acumulativo, pouco ou nada se poderá fazer no sentido de que mudem de opinião. Mas o efeito acumulativo de ‘nadas’ é coisas nenhuma, e pode legitimamente duvidar-se que alguma das alegadas reminiscências tenham qualquer efeito; seria excessivamente difícil especificar uma só passagem de Parmênides que necessite a postulação de uma referência a Heráclito, para torná-la inteligível ou evidente. Se Parmênides e Heráclito têm em comum alguns elementos vocabulares, isso nada prova; ambos eram gregos, ambos, pelo menos no essencial, escreveram em dialecto jónico, e eram próximos contemporâneos. Não posso achar qualquer razão para supor que qualquer um tivesse conhecimento do outro» (ibid., pp. 126-127).


Parmênides

73. Todas estas investigações (acrescente-se às duas obras citadas: Hölscher, pp. 161-165), cujo resultado negativo, quanto à ordem de sucessão tradicional, ainda não baixou ao nível do compêndio e, portanto, não saiu do restrito âmbito da bibliografia especializada, têm como ponto de partida a escandalosa inversão das posições de Heráclito e Parmênides, proposta por K. Reinhardt, em 1916: «não deviam os contrários ser descobertos como contrários, sentidos e ensinados como algo que se acha em contradição consigo mesmo, antes que a descoberta da respectiva unidade pudesse efec-tivar-se como uma nova revelação?» (Reinhardt, p. 220.) Por muito logicamente que a hipótese se apresentasse — e se apresente, agora, levando em conta o modo como Schwabl (com o acordo expresso de Mansfeld) interpreta a relação da «Verdade» com a «Doxa», no poema de Parmênides (cf. supra § 54) —, o certo é que ela ainda encontra menos apoio nos testemunhos tradicionais, do que a mais geralmente aceite: Heráclito não menciona, nem uma só vez, o nome de Parmênides. É óbvio: supondo que a interpretação de Schwabl acerta no essencial da doutrina do Eleata, o Efésio podia ter manifestado o seu acordo, precisamente pela ausência de qualquer menção da sua obra. Exceptuado Hermodoro (frg. 121), que, fosse quem fosse, certamente não era filósofo, os nomes que Heráclito refere são sempre os daqueles a quem ele se opõe (Hesíodo: frgs. 40, 57,106; Pitágoras: frgs. 40 e 81; Xenófanes: frg. 40; Hecateu: frg. 40; Homero e Arquíloco: frg. 41). Mas, a não ser por amor a uma continuidade histórica, que, a bem dizer, não exige que o mesmo problema passe de pensador a pensador, como que em corrida de estafetas, escusamos de insistir sobre a questão de precedências e influências. Heráclito pode estar muito mais próximo de Parmênides do que vulgarmente se julga, sem que, por isso, haja a necessidade de admitir que um tivesse lido a obra do outro. A aproximação, que tão naturalmente se insinua por meio daquela ideia de que o Ser, na «Via da Verdade», é a unidade das contrárias potências cosmogónicas (Luz e Noite), que intervêm na «Opinião dos Mortais», reencontramo-la, sem que houvesse o propósito de achá-la, num dos mais interessentes momentos de um seminário sobre Heráclito, dirigido por Eugen Fink, com a participação de Heidegger (Fink, 1973). Vale a pena, ou antes vale o prazer, reproduzir o que se disse, nesse seminário, a propósito do frg. 57 (pp. 64 e segs.): «(Fink:) Do frg. 6, passamos ao frg. 57 (…). A tradução de Diels diz: ‘Mas mestre do maior número é Hesíodo. Julgam que foi o mais sábio dos homens — eles que, no entanto, não conheciam a noite nem o dia. Pois são uma e a mesma coisa!’ Em que consiste este saber que se atribui a Hesíodo? Em que sentido não reconheceu ele o dia e a noite, ele, que escreveu sobre os trabalhos e os dias? Dia e noite são estados alternantes do país do sol, em que se faz claro e escuro, numa mutação rítmica. (…) A locução mais difícil (no fragmento) é: ésti gàr hén (‘pois é um’). Se o dia e a noite devem perfazer um, não deveria estar no lugar do singular ésti (‘é’) o plural eisí (‘são’)? O sentido visado aqui é a in-diferença do dia e da noite, ou algo completamente diverso, que de modo algum aparece ao primeiro relance? Perguntamos: será que o frg. 57, entendido a partir do hén (‘um’), contém um enunciado sobre o dia e a noite? Estão, o dia e a noite, no hén, ou são eles o hén ? Hesíodo é manifestamente aquele que melhor compreendeu o dia e a noite, e, no entanto, Heráclito o censura, por considerar dia e noite como duas coisas. Em sua Teogonia, a oposição do dia e da noite significa algo diverso da simples oposição de dois estados do espaço transparente, no qual a luz pode estar presente ou ausente (…). Aqui desenha-se um plano que atravessa o todo como conjunto e que se fecha, para Heráclito, na harmonia, mesmo se esta é mais invisível do que manifesta. Neste sentido é que se poder ler o ésti gàr hén. O dia e a noite não constituem uma diferença qualquer, mas a forma originária da diferença. Em Parmênides, também a oposição do dia e da noite desempenham um papel (‘pois convieram em dar nome a duas formas’), pelo menos, na opinião dos mortais. Compreendo o estí gàr hén no sentido de que o dia e a noite perfazem um, no hén, não devia estar eisí (‘são’) no lugar de ésti (‘é’)? Será que do ponto de vista da linguagem, só um plural é possível aqui? Para mim, a questão é a de saber se não se deve, em lugar de o dia e a noite são um hén, ou antes, estão no hén, ler: há o hén. Neste caso, a coincidência do diferente receberia outro significado. Hesíodo sabia tudo; mas não sabia, do hén, que ele é. Pois há o hén. Lido deste modo, o hén não é predicativo, mas o sujeito da frase. (Heidegger:) Logo, o estí gàr hén tem de ser considerado absolutamente; considerá-lo de outra maneira e entender que Hesíodo não reconheceu o dia e a noite seria uma impertinência. (Fink:) Quando Heráclito diz que Hesíodo não reconheceu o dia e a noite trata-se de uma frase intencionalmente provocadora.»

Os Opostos

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Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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