Eudoro de Sousa (HCSM:104-110) – Empédocles

60. Parmênides teria sido o primeiro pluralista, se o seu dualismo fosse o da realidade, e não o da aparência — da aparência, pura e simples, ou da aparência da realidade: o dualismo da Luz e da Noite é questão de nomos («convenção»), e não de physis («natureza»), Empédocles institui o pluralismo na realidade, na medida em que cada um dos seus quatro elementos se determina como idêntico a si mesmo e não idêntico a qualquer dos outros: é a definição parmenídea dos contrários, cada um deles, com uma determinação do Ser — a identidade (frg. 3, 54-59). Quer dizer, a unicidade do Ser é substituída pela pluralidade dos elementos, mas a unidade mantém-se, quanto à estrutura dos mesmos elementos. É clara e está perfeitamente esclarecida a intenção de Empédocles: desincompatibilizar a imobilidade (invariância) do Ser com a mobilidade (variância) da aparência; para além de Parmênides, o filósofo de Agrigento procura, no monismo «físico» dos filósofos de Mileto, o trânsito do princípio para o principado. O Esfero tem algo do Ser de Parmênides e do Ápeiron de Anaximandro: é perfeitamente indiferenciado: (pampan apeiron, frg. 28, 1). Mas aqui cessam todas as analogias. No Esfero, indiferenciada a mistura dos quatro elementos, tem início um processo de diferenciação, que resulta na diferenciada estrutura do mundo, tal como ele se nos apresenta. A força do Ódio, da mistura separando os elementos, cada um para seu lado, forma as quatro massas cósmicas (cosmogonia), enquanto a força do Amor, de novo mistura os elementos, para formar os seres vivos que habitam o mundo (zoogonia). Deixamos em aberto a questão de saber se o processo é cíclico e, portanto, se o fim se reúne ao princípio, restabelecendo-se o Esfero-Indiferenciado. O que mais importa acentuar é que Empédocles propõe uma Indiferença primordial, embora esta, agora (e só agora) seja a da mistura dos elementos, e sujeita a uma variância que não cabia nem no Ápeiron de Anaximandro, nem ao Ser de Parmênides. E se perguntássemos com que fim ele atribuiu a cada elemento uma das determinações do Ser — a identidade inalterável através de todo o processo cosmogónico e zoogónico — a resposta, mais uma vez, acena para o mesmo ponto de onde arranca o pensamento existencial de Parmênides: «Loucos! Longe não vão seus pensamentos, desses que crêem possa nascer algo que antes não era, ou que alguma coisa de todo possa destruir-se ou morrer!» (Emp., frg. 11.) A cifra cosmogónica e a cifra escatológica continuam emparelhadas, mesmo no poema «físico». Que se trata ainda de uma codificação do mistério do horizonte, é o que se verifica no poema «catártico».


Poemas

61. Durante a maior parte do longo tempo que já vem desde o início da pesquisa científica dos pré-socráticos, os dois poemas de Empédocles, o «físico» e o «catártico», foram olhados como incompatíveis, tanto quanto incompatíveis podem ser julgados um sistema puramente imanentista, no que respeita ao destino das almas inseparáveis do corpo, e um sistema transcendentalista que, manifestamente, traz para o mundo uma alma (daimon) que não parece destinada a viver em corpo que nele viva; tanto quanto incompatíveis se possa supor que sejam um sistema em que tudo se explica, ou se pretende explicar, pela diferenciação de um indiferenciado, abrangendo, de início, a totalidade de quanto vem a ser, no fim, e outro sistema que o contradiz frontalmente, tornando o todo em parte, na medida em que ele mesmo repele de si o que em si não foi produzido; tanto quanto incompatíveis se pode entender que sejam uma visão inteiramente profana do universo, e outra que, sem dúvida, se propagara pelas colónias gregas da Itália e da Sicília, em tempos talvez não muito afastados daquele em que viveu Empédocles. Mas, em primeiro lugar, será certo que os dois poemas se opõem pelo facto de só um se poder apelidar de «religioso»? Não será religioso, também o poema «físico» e, portanto, não teremos de abandonar a ideia de que, por mais claro exemplo, o frg. 3 não é um artifício literário, como vimos não o ser o «Proémio» de Parmênides? Eis o que ele nos diz: «Vós, ó deuses, para longe de minha boca afastai a insânia dessa gente, e de meus lábios santificados deixai que brote uma fonte pura. E a ti, ó Musa, virgem dos cândidos braços, eu te suplico, traze, guiando-o até mim, da Piedade, o carro dócil (da canção) e dele me concede ouvir o que é justo que o ouçam os efémeros mortais! Nem cobiça das flores da ínclita fama, entre os homens colhidas, te hão-de forçar a dizer mais do que a Piedade consente, para então subir ao trono da suprema sabedoria.» Contando mesmo com a invocação à Musa, ou às Musas, tradicional na epopeia, não podemos deixar de reconhecer que estes versos exorbitam, no sentido de se aproximar de um proémio, tal como os que encontramos em Hesíodo e Parmênides. A religião do poema «físico» está presente até pela palavra que, em grego, mais legitimamente a significa: Eusebele («Piedade»). Por outro lado, é claro que o Esfero, além das reminiscências que desperta, de Anaximandro e Parmênides (cf. § precedente), também nos traz à memória o Deus de Xenófanes: (frg. 27) «Lá, nem se distinguem os rápidos membros do sol, nem da terra a hirsuta força, nem se vê o mar; firme reside o rotundo Esfero nas densas moradas da Harmonia, gozoso de sua envolvente solidão (ou ‘quietude’)»; (frg. 27 a) «nem discórdia, nem a infausta querela, nos seus membros»; (frg. 28) «por todos os lados igual, por toda a parte infinito, o rotundo Esfero, gozoso de sua envolvente solidão»; (frg. 29) «que no dorso não lhe nascem dois ramos, nem pés, nem joelhos rápidos, nem membros genitais. Esférico é ele, e de todos os lados igual a si mesmo». Resta a ambiguidade mítica dos dois Entes, que ora nos aparecem como elementos, ao lado e ao mesmo nível dos outros quatro, ora como «causas eficientes» da diferenciação cosmogónica e zoogónica: o Amor e o Ódio. Desta ambiguidade testemunha, por exemplo, o frg. 17 (vv. 16 e segs.): «dois (discursos) enunciarei: como, de uma vez, vem um a ser, de muitos que eram, e, de outra vez de um que era, muitos vêm a ser — fogo e água e terra, e do ar a imensa altura, e à parte o Ódio (Neikos) funesto, em torno deles equilibrado, e no meio o Amor (Philotes), igual em comprimento e largura. Contempla-o com o espírito (nooi) e não fiques aí sentado, de olhos escancarados de espanto, pois também creem os mortais que implantado está (o Amor) em todos os seus membros, que por ele amigas coisas se pensam e obras de amizade se cumprem, e como quer que o chamem, pelo nome de Alegria ou de Afrodite. Mas se bem que em círculo se mova com eles, nenhum mortal o conhece ainda (…). São estes (os quatro elementos e as duas potências) todos iguais, e igualmente ancestrais.» Houve quem suspeitasse, aqui, de um maniqueísmo avant la lettre. Mas, reflectindo que é o Esfero obra do Amor, e que mais ou menos aproximadas imitações dele são os seres vivos (e até as massas cósmicas, pois se o Ódio separou os elementos do Indiferenciado, o Amor os uniu, cada um à parte, para constituir o Mar, do que era água, o Céu, do que era fogo, e assim por diante), numa gradação ascendente, que começa na planta e termina no homem, e em particular, no sangue que circula em suas veias — a mais perfeita mistura dos elementos e, por conseguinte, a sede do pensamento (frg. 105) — então é que, apesar dos testemunhos directos e indirectos, o Amor prevalece sobre o Ódio.

Amor

62. Uma hipótese recentemente ensaiada (Kahn, 1958, 1971) constitui o Amor no único traço de união entre o poema «físico» e o poema «catártico», com sentido intencionalmente posto em resolver a contradição entre a alma que, no primeiro, perece com o corpo, e a alma que, no segundo, e em conformidade com as doutrinas orfeo-pitagóricas, ou do chamado círculo xamanístico (cf. § 47), não depende das vicissitudes de que falam, por exemplo, o frgs. 8 e 9: (8) «em outra coisa te direi: nascimento não há de um único entre os seres mortais, nem fim pela morte infausta; mas só mistura e permuta (dos elementos) misturados — eis o que os homens denominam nascimento»; (9) «Quando, misturados (os elementos), vêm à luz etérea, sob o aspecto de homem ou de besta-fera, ou de planta ou de ave, dizem que isso é nascer; mas quando, depois, uns dos outros se apartam, falam, então, de infausta morte. Não dizem como justo seria dizer: mas, obedecendo ao costume, assim o direi também.» No poema «catártico», o final do frg. 115 aponta, por contraste com a funesta obra da Discórdia (Ódio), para o que seria uma alma (daimon), criatura do Amor, eternamente viva no reino do Amor. Vale a pena citá-lo por inteiro: «Oráculo do Destino, dos deuses remoto decreto, sempiterno, e por amplos juramentos selados: se algum, seus membros maculou de sangue homicida ou, perjuro, o Ódio seguiu — algum dos a quem longa vida em sorte coube, três vezes dez mil gerações andará errante, dos beatos apartado; e renascerá pelo tempo em fora sob todas as espécies de formas mortais, uma por outra trocando as tormentosas sendas da vida. Que o Éter potente no Mar o precipita, e o Mar o lança na Terra árida, e a Terra para o Sol esplendente, que de novo o arremessa para os turbilhões do Éter. Cada um de outro o recebe, mas todos o repelem. Um desses eu sou também, por Deus banido, e errante: que confiado fui no Ódio insano.» Em primeiro lugar, o que este fragmento nos diz é que o daimon imortal cai num mundo que não é o seu. Mas esse é o mundo tão laboriosamente descrito pelo autor, no poema «físico». Afirmar que, no nascimento, as almas «revestem alheias túnicas de carne» (frg. 126), reduz-se ao mesmo; e a naturalíssima ilação é que «este espírito exilado, veio de um mundo diferente, incorpóreo, do qual o poema físico não mostra qualquer vestígio» (Kahn, op. cit., 14) e, por conseguinte, ainda não se vê como os dois poemas se podem conciliar. A tese de Kahn propõe que a única relação entre o poema físico e o poema catártico esteja «no paralelo entre os papéis que o Amor e o Ódio desempenham em ambos», e que esse paralelo é «o princípio fundamental da unidade, no pensamento de Empédocles» (p. 16). O filósofo de Agrigento «parece insistir em que as mesmas potências prevalecem no destino do universo e no do homem. E tal como o Esfero físico surge a harmonia sobrenatural, assim o elemento do Amor, nos compostos mortais, parece como que um representante físico do daimon exilado» (ibid.). Decerto, nos fragmentos que subsistem, Amor e Ódio são os únicos elementos que comparecem nos dois poemas, pois a única menção dos outros quatro, no citado frg. 115 do poema catártico, não serve senão para relevar o papel do Ódio, na rejeição do daimon imigrante. Todavia, se bem compreendemos a intenção da tese, bastante frágil se nos afigura a ponte que transpõe o suposto abismo que separa os dois poemas. Preferiríamos ainda resignarmo-nos a pensar que «a hipótese de um irredutível dualismo entre ‘natureza’ e ‘espírito’, no pensamento de Empédocles, pode salvá-lo da contradição» e que esta o não «priva, ao mesmo tempo, de qualquer real reivindicação de inteligibilidade» (p. 14). Pode haver certa incoerência da nossa parte, em exigir que um pensador seja coerente a todo o custo, sobretudo, a modo como desejaríamos que o fosse, e, em particular, neste caso, que era o do momento em que, na Grécia, as novas ideias acerca da imortalidade da alma ainda esperavam acomodar-se com as antigas crenças na sobrevivência do que não era corpo nem alma, naquela codificação filosófica, em que a cifra cosmogónica e a cifra escatológica andavam a par. Entretanto, a cita de Empédocles, por Porfírio, no frg. 200 — «(no poema de Empédocles, as potências divinas que conduzem as almas, dizem assim:) aqui chegamos, em baixo, neste antro» —, traz-nos a primeira informação de que, para a alma, cuja athanasia («imortalidade») equivale a uma homoiosis theoi («transformação à semelhança da divindade»), o mundo é uma caverna. Na codificação do mistério do horizonte, a «caverna» é uma nova cifra.

Separação

63. Grave injúria cometeríamos contra o leitor supondo que nesta altura, ainda não lhe tenha ocorrido que Platão, em termos de uma lógica imediadora entre aspectos que se nos oferecem na ambiguidade de um mito, muito bem se entende, post factum, como o término de um desenvolvimento de ideias germinalmente esparsas pelos escritos de seus antecessores. O khorismos («separação») do mundo sensível e do mundo inteligível, já em ténues traços se desenha em Anaximandro pela distinção da perceptibilidade das diferenças num mundo de coisas limitadas, e a imperceptibilidade do Indiferenciado. Daí, que se possa suspeitar de um dualismo disfarçado, no monismo dos Milésios. O Ser de Parmênides é indiferenciado e invariante; do lado dele está a verdade. O mundo sensível é questão de doxa («opinião»), mas esta pode vir a ser mais verosímil, se a considerarmos como imitação do Ser, e este, como modelo ou paradigma do mundo. Em todo caso, Ser inteligível, correlato de um pensar, na medida em que pensar é pensar o Mesmo e Ser é ser o Mesmo, afasta-se do mundo sensível, correlato da opinião, na medida em que sentir é sentir a diferença entre o mesmo e o outro, e o opinar supõe que não se saiba que o mesmo e o outro são complementares, do ponto de vista da imperceptível unidade do Ser. Empédocles introduz, talvez ainda inabilmente, uma alma que, em Platão, terá olhos para ver o que jamais viram os olhos do corpo: o que é, em sua indiferenciada e invariante identidade. O dualismo psico-físico, do orfeo-pitagorismo ou do «xamanismo» intruso, é o correlato subjectivo do dualismo objectivo de um mundo dividido pela linha que separa o sensível do inteligível. E esta linha é a do horizonte, na sua codificação filosófica. Platão refere o khorismos, tão característico de seu sistema, a seu mais próximo antecedente: Anaxágoras (Phaed., 97 b e segs.). A citação do frg. 12 é pertinente e oportuna: «Tudo o mais participa de tudo; mas o Noûs é infinito e autónomo, e a nada se mistura. Só ele existe à parte, por si mesmo. Se não existisse por si, e com outra coisa se misturasse, de todas participaria; pois em tudo há uma parte de tudo, como antes disse. E o quer que se misturasse ao Noûs, impedi-lo-ia de governar as coisas que efectivamente governa, existindo, como existe, por si. Pois ele é, de todos os entes, o mais subtil e o mais puro; completo conhecimento de todas as coisas possui, e o maior poder. Tudo o que tem alma, grande ou pequeno que seja, está sob o poder do Noûs. Foi ele também que ordenou a rotação do todo, e lhe comunicou o inicial impulso. De princípio, este impulso, só o exerceu sobre uma parte menor, mas a rotação propaga-se e mais se há-de propagar ainda. Misturadas, separadas ou distintas, todas as coisas o Noûs conheceu. Da maneira como devia ser, da maneira como foi e já não é, e da maneira como é e será, tudo o Noûs ordenou. Dispôs ele também esta revolução dos astros, do Sol e da Lua, do ar e do éter, em via de separarem-se. E separaram-se do subtil o denso, do frio o quente, do obscuro o luminoso e do húmido o seco. Muitas partes existem de muitas coisas. Nada, porém, completamente se separa e inteiramente se distingue, a não ser o Noûs. O Noûs todo ele é idêntico, o maior e o menor. Aliás, das restantes coisas, nenhuma existe que a outra se assemelhe; e cada uma é e foi, do modo mais claramente manifesto, aquilo mesmo que mais contém.» Para final deste parágrafo, reservamos a observação de que, certamente, não está fora do sistema platónico, pelo menos o sugerir aquilo que Parmênides e Empédocles expressamente denunciaram: revelação, ou inspiração, desfecha o processo lógico da demonstração racional.