Ernildo Stein (2015:130-133) – deinon (estranho, terrível)

Encontramos em Heidegger uma estratégia de falar do homem como aquele que compreende o ser. Ainda que com tal afirmação não se limite ao elemento primeiro descritivo de antropologia, ela, contudo, é o começo para um jogo de enunciados polares sobre o que é o ser humano. As oposições que irão aparecer apoiam-se em conceitos que descrevem os aspectos paradoxais do ser humano. Tem-se mesmo a impressão de que as duas determinantes fundamentais dos enunciados, o ser verdadeiro e o ser falso, estão como que no comando das descrições do homem. Temos, no texto de interpretação do poema de Hölderlin, Der Ister, que Heidegger apresentou em aula no ano de 1942, um exemplo único desse processo de polarização.

(131) Vamos seguir alguns passos desse jogo de oposições com que o filósofo prepara as suas análises do homem. A metáfora básica é tirada do próprio Rio Danúbio enquanto torrente de água. Trata-se do movimento e do lugar. Ao mesmo tempo que as águas se afastam, elas fundam lugares, e somente podem fundar lugares porque se afastam. Permanecer é ao mesmo tempo aquilo que se reporta ao ir embora. Assim, a permanência é o familiar, e o ir embora é o estranho. Entre o familiar e o estranho pode então desenvolver-se a aventura. É ela que pressupõe o familiar e a atração para enfrentar o estranho. Familiar e estranho são apresentados como “a plenitude do ser”.

Mais complexa, entretanto, torna-se a situação, quando do familiar, que é a presença, se origina a ausência, quando a experiência do perigo está justamente nesse saber e não saber, entre permanência e mudança. E por isso que o ser humano, ao mesmo tempo, está parado e está a caminho, o que significa a ambivalência que pode ser expressa pela afirmação de que o homem está sempre no descaminho. Aberto para todos os caminhos significa não estar em nenhum caminho, portanto estar perdido. O familiar e o estranho confundem o modo de ser fundamental do ser humano. Ao mesmo tempo que está “em todos os becos dos entes em casa”, ele, contudo, deve chegar a algo. Nisso se fundamenta o seu caráter de pobreza quando está parado, e de riqueza quando alcança algo.

Heidegger toma de Sófocles a palavra deinòn (estranho, terrível), mostrando que se pode concordar com o poeta quando traduz o verso de Antigona como “muitas são as coisas estranhas, mas o mais estranho é o homem”. O mais estranho do homem lhe vem do próprio estado de impermanência: “Somente o homem está posto em meio ao ente, de modo que se relaciona com o ente como tal. E é somente por isso que esse ente, o homem, pode, na sua relação com o ente, esquecer o ser”(Heidegger, 1984). Essas frases parecem descrever algo que já nos é conhecido, no entanto com elas se descreve o estranho, o perigoso, o terrível: a possibilidade de ele ser “fora do ser”, quando propriamente todo o ente torna-se ente. Parece que no deinòn falta ao homem aquilo que justamente, por ele, é trazido ao manifestar-se. É por isso que o homem é, ao mesmo tempo, o que está a caminho e o que (132) não tem caminho, quando exatamente o fundamental seria habitar, isto é, estar no familiar, e não no estar atraído sempre pelo não familiar. Justamente quem compreende o ser esquece o ser.

Maior do que qualquer catástrofe na natureza ou no cosmos é o fato de o estranho se apoderar do homem pelo esquecimento do ser, pois assim o familiar se torna uma errância vazia que ele preenche com um rodar sem sentido. “O estranho do não familiar consiste aqui no fato de o homem, na sua essência mesma, ser uma Katastrophée, isto é, uma inversão que o afasta de seu próprio modo de ser. O homem é, em meio ao ente, a única catástrofe” (Heidegger, 1984).

Com esse conjunto de metáforas apresentadas por enunciados polares enigmáticos, Heidegger atinge aquilo que ele quer propriamente afirmar do ser humano: posto além de qualquer lugar, ele é o perdedor do lugar. O filósofo afirma que a polis é o lugar e que, portanto, ele está posto além da polis e é perdedor da polis. Tanto o ente que está além do lugar quanto aquele que perde o lugar, todos estão fora do caminho. Provavelmente, com essa ambivalência e polaridade, o filósofo quer introduzir o quanto o ser humano enfrenta o perigo com a polis, ou o estranho, o ameaçador, na medida em que nesse lugar que é a polis ele deveria encontrar a única instância como estância, onde tudo se decide. Num primeiro momento poder-se-ia pensar que somos le ados pela realidade de que “tudo” é “político”. E é bem assim que pensamos que o que é polis é determinado a partir do “político”. Estão, portanto, em relação estreita o “político” e a polis. A questão é a de qual o modo pelo qual temos de pensar em primeiro lugar essa ligação entre os dois conceitos. Certamente o “político” é aquilo que faz parte da polis e, portanto, somente pode ser determinado por ela.

É problemático, no entanto, o que é primeiro na determinação dos dois conceitos e, portanto, qual deles vem do outro, é derivado. Estaríamos fazendo a mesma coisa que quando dizemos que o “lógico” vem da essência do logos, e que o “ético” vem da essência do eethos. Ou deveríamos inverter tudo? Heidegger afirma que polis não se deixa determinar ‘politicamente’. A polis, e justamente ela, não é, então, um conceito ‘político’.” O filósofo (133) se pergunta o que é a polis dos gregos: “Quem é capaz de nos dizer que os gregos, apenas pelo fato de ‘viverem’ na polis, tenham também tido clareza sobre o acontecer essencial da polis? Talvez seja o nome polis justamente a palavra para o âmbito que constantemente se tornou problemático e digno de ser questionado e, por isso, tornava necessárias decisões e fazia os gregos estarem na contingência de deslocar a verdade da polis sempre para o sem fundamento e o inacessível” (Heidegger, 1984).