Passemos à análise das quatro passagens da Metafísica, para então, numa aproximação destes textos, descobrirmos a paradoxal condição da filosofia como tarefa da finitude.
1. O que foi dito nos permite traduzir o texto de Aristóteles: “Assim, portanto, se foi para fugir à ignorância que os primeiros filósofos se entregaram à filosofia, é que eles, evidentemente, buscavam o saber em vista do conhecimento e não por causa de um fim utilitário. E o contexto dos fatos disso dá testemunho: pois apenas quando estavam presentes quase todas as coisas que aliviam as necessidades da vida (anankaia), que favorecem a tranquilidade (rastone) e que instauram o lugar em que a vida encontra sua morada estável (diagoge), começou-se a procurar um tal modo de compreender as coisas” (982b/19-24).
2. Aproximemos desta passagem uma outra, que a precede no contexto da Metafísica: “Se, portanto, foram descobertas diversas artes (technai), das quais umas aliviam as necessidade da vida (anankaia), outras ajudam a instauração do lugar para a morada estável da vida (diagoge), temos sempre por mais sábias estas que as primeiras, porque sua ciência não se dirige à utilidade. Somente depois de aperfeiçoadas todas essas artes (que visam utilidades), foram descobertas (123) aquelas nas quais se trata dos prazeres da vida e das necessidades — e isto precisamente nos lugares em que era possível uma ocupação no repouso (scholazein) (981 b/17-24).
Aristóteles compara a filosofia com as artes, porque, assim como estas, aquela tem um modo de proceder, um caminho. Mas, ela se separa das mesmas, porque seu procedimento dirige-se apenas ao conhecimento enquanto tal. Mostra depois como esse conhecimento-arte, que indaga por um lugar em que o homem possa conduzir sua vida, emerge ali onde a tranquilidade permite uma ocupação no repouso.
3. No Livro Doze da Metafísica deparamos com uma passagem que correntemente se deve ligar a 982b/17-24. Aristóteles, falando do motor imóvel, conclui que esse é princípio (arche), e continua: “Em tal princípio estão suspensos o céu e o que brota de si e perdura (physis). Esse é vida que se contém em tranquila constância (diagoge), da melhor espécie. Dessa vida nós podemos gozar por fugazes instantes (mikron chronon). Ele (arche) sempre se encontra nesse estado — o que para nós seria impossível” (1072b/14-16).
4. Se atentarmos para o fato de que essa vida que se contém em tranquilidade e da qual emerge a filosofia é posse perene do princípio no qual estão suspensos o Ouranos e a Physis, então torna-se compreensível a observação que Aristóteles faz logo após a descrição das circunstâncias em que nasce a filosofia: “Com boa razão está-se inclinado a ver, na posse dessa ciência, algo de sobrehumano. Pois a natureza humana, sob tantos aspectos, está escravizada, que talvez, (124) como diz Simonides, “só Deus poderia gozar desse privilégio”; mas seria indigno do homem não procurar por uma ciência que lhe convém. Se fosse verdade alguma coisa daquilo que dizem os poetas, e se a divindade fosse por natureza invejosa, isto se concretizaria particularmente aqui e todos os grandes nessa ciência (a filosofia) deveriam ser infelizes. Mas, de um lado, a divindade não pode ser invejosa, e — como diz o provérbio — “inventam muita coisa os poetas”, e, de outro lado, nenhuma ciência pode ser chamada mais digna do que essa. Pois a ciência mais divina é também a mais digna, e somente a sabedoria é isso, em duplo sentido: divina é, na verdade, de um lado, a ciência que o Deus poderia ter de preferência, e, de outro lado, aquela que é a ciência do divino. Ambas as características apenas convém à sabedoria. Pois, para todos os pensadores, o Deus parece ser uma das causas e um princípio, e o Deus deveria somente ou, ao menos, em primeiro lugar, possuir essa ciência. Mesmo que todas as outras ciências fossem mais necessárias, nenhuma delas, porém, a supera em dignidade” 9982b/27-38 — 983a/l-ll).
A conjugação dessas quatros passagens dá-nos a dimensão e o contexto em que Aristóteles coloca o problema da origem da filosofia. Em primeiro lugar, ela é uma ciência que brota de determinadas condições que preparam sua emergência: tranquilidade (rastone), o encontro do lugar em que a vida se possa conduzir (diagoge) e a ocupação no repouso (schole). Em segundo lugar, a filosofia se aproxima das outras ciências, enquanto é techne, um modo de se conduzir, um método; mas delas se separa porque se dirige apenas ao conhecimento que se dá no contexto da vida que encontrou seu lugar em que pode (125) residir (diagoge). Em terceiro lugar. Aristóteles mostra que o princípio que a tudo funda é essa vida que se conduz tranquilamente (diagoge) e que, no começo, afirmou ser condição do surgimento da filosofia. Mas, ele acrescenta que os filósofos apenas se encontram neste estado — mikron chronon — por breves momentos. Nesses prepara-se o nascimento da filosofia. O fato de o filósofo somente se encontrar, por instantes fugazes, na diagoge, já é uma prova de que Aristóteles não quer insistir nela como condição material simplesmente. Esse mikron chronon, em que a vida é senhora de si (diagoge) e do qual brota a filosofia, funda a necessidade da memória e da lembrança para o filósofo. (A análise posterior da conexão entre admiração e memória mostra-lo-á com mais clareza). Em quarto lugar. Aristóteles vincula sem referência explícita, as três passagens acima citadas e comentadas, e nos dá o argumento para as ligações que procuramos estabelecer. A filosofia que brota do estado em que a arche sempre se encontra e nós apenas por breves momentos, deveria ser, em si, privilégio de Deus. Mas Aristóteles diz que essa ciência, que parece sobre-humana, convém ao homem, e que a dignidade desse depende da busca da filosofia. Acentua-se o paradoxo de uma ciência que deveria ser divina, mas que realmente convém ao homem. É ele que a exerce como tarefa, no mikron chronon que, numa visão existencial, pode ser interpretado como temporalidade e finitude.