Equívoco do solipsismo

(RMAP:217-221)

A empatia é um ato que capta um indivíduo como um outro eu. Em resumo, “vemos” os outros como nossos semelhantes. É necessário refletir sobre o significado desse “como”. Ao fazê-lo, responderemos à outra questão que levantamos: após a questão da relação entre a percepção psicológica e a percepção sensorial, a questão da relação entre a percepção psicológica dos outros e a de si mesmo.

Se o caráter de ato “doador originário” da empatia é precisamente o que os fenomenólogos foram os primeiros a descobrir, como é que a fenomenologia da intersubjetividade pareceu vítima de “solipsismo” para muitos comentaristas?

No entanto, foi isso que esses comentadores pensaram. Por mais estranho que pareça, foi isso que toda uma tradição exegética, especialmente francófona, criticou na fenomenologia husserliana da intersubjetividade 1. Teria sido preferível [218] que os franceses se iniciassem na fenomenologia lendo a tese de Edith Stein, que data de 1917 e que, com razão, entusiasmou o mestre. Em vez disso, ela ainda não foi traduzida (janeiro de 1999). Além disso, mesmo na Alemanha, alguns pensadores ecléticos ou sincréticos, como Habermas e Apel, reproduziram com nuances hegelianas (“dialéticas”!) e transmitiram às gerações pós-heideggerianas o mito de uma filosofia neofichtiana da consciência e da subjetividade, sem mundo e sem comunicação…

Como o equívoco pôde surgir?

As questões históricas não importam: o que importa é que o equívoco está sempre à espreita e permanece um risco permanente. O equívoco pode surgir dessa palavra, “como”: ou seja, de um mal-entendido sobre esse advérbio comparativo por meio do qual o fenomenólogo expressa a convicção tácita de todos: vemos o outro como um outro eu. E é isso que entendemos quando falamos de um outro, simplesmente, ou de outrem. Não de uma outra coisa.

Dizíamos que a realidade das pessoas não é uma realidade imaginada, nem inferida, nem postulada. Mas (e este é um ponto ao qual retornaremos) ela também não é “projetada” a partir de nossa própria vivência. Esse “como” não deve, de forma alguma, ser entendido nesse sentido.

A propósito, havia uma teoria da empatia como “projeção”, antes dos fenomenólogos: a do grande psicólogo Theodor Lipps. E também podemos nos perguntar se o uso do termo “projeção” por Freud mais tarde — que conhecia bem a obra de Lipps — não está relacionado a essa teoria. Mas a refutação da teoria lippsiana da empatia como “projeção” da própria vida no corpo do outro ou em uma coisa inanimada era uma espécie de exercício diário, um aquecimento praticado pelos fenomenólogos mais experientes e imposto como tarefa aos iniciantes. É ainda mais surpreendente ver Husserl regularmente associado a esse absurdo (do ponto de vista fenomenológico). Mas como esse equívoco ocorre?

Primeiramente, é preciso notar que um outro me é imediatamente dado como um outro eu, mas não como um outro eu mesmo! Nesse ponto, a confusão ainda reina. A diferença que se perde de vista é aquela entre o token e o type. Encontro o outro como outro exemplar do type pessoa, o type do qual eu também sou um exemplar. Certamente não digo: sou eu, como se me olhasse no espelho. Digo, no máximo, se tolero o jargão dos filósofos: é um eu. É, aliás, por esse título que lhe devo, entre outras coisas, respeito (ou até mais, segundo as recentes retóricas do Rosto do Outro, etc.). Por outro lado, não encontro um outro como réplica de mim mesmo, exceto no caso de clonagem. Escusado será dizer que nenhum fenomenólogo jamais defendeu tal tolice.

Viver-se como um eu é tudo menos uma experiência solipsista, como o artigo indeterminado “um” precisa. Graças a Deus, não estou mais confinado “em minha consciência” quando experimento a mim mesmo do que quando experimento o mundo! Nada escapa ao princípio da transcendência, ou seja, ao princípio fenomenológico da realidade, segundo o qual o que é dado como real sempre transcende seus aspectos dados. Minha pessoa, particularmente, transcende o aspecto de mim mesmo do qual estou atualmente consciente.

Eu sou uma pessoa, ou seja, um indivíduo: nada escapa também à relação essencial entre o individual e o eidético, segundo a qual o individual sempre exemplifica seu type, o eidético.

Qual é, então, a ligação entre a experiência que tenho de mim mesmo e a experiência que faço do outro? De que maneira a primeira é pela segunda? O que minha consciência de mim mesmo traz para a consciência que tomo do outro?

Não traz nada enquanto consciência do indivíduo particular que sou; é, por outro lado, indispensável enquanto consciência do tipo do qual sou um exemplar. Funciono como um paradigma do que é, em geral ou por essência, uma pessoa. Uma pessoa é um ser vivo que se vive, assim como eu me vivo. O fato de ser dado (pelo menos implicitamente) a si mesmo como a origem de seu horizonte espacial e temporal, o centro de um espaço de ação e percepção, a origem dos atos pelos quais responde, é constitutivo do que entendemos por “pessoa”. Mesmo que queiramos ampliar ou restringir a extensão desse conceito (o que se faz hoje nas discussões de bioética, por exemplo), devemos partir desse núcleo. “Tem a capacidade de sofrer?”, “Tem a faculdade de desejar?”, e assim por diante. Tais são as questões que devemos nos fazer. E se quisermos estender além do conjunto dos indivíduos que gozam desses atributos o conceito de pessoa (pois ninguém estabeleceu de uma vez por todas em quais limites podemos modificar o emprego das palavras!) 2, devemos entender “sofrer” e “desejar” como fazemos em português (ou em qualquer outra língua), onde “sofrer” não significa “manifestar comportamentos de dor”, mas sim “viver uma experiência dolorosa”. O ponto de vista da primeira pessoa, e nossa capacidade de acessá-lo em seu essencial, universal, é um dos pressupostos tácitos da compreensão correta do sentido de palavras como “sofrer”, “desfrutar”, “perceber”, “querer”, “pensar” e inúmeras outras.

Este aspecto da fenomenologia do evidente nos permite compreender melhor por que todos os filósofos que tentaram dar um lugar à subjetividade no mobiliário ontológico do mundo (incluindo os filósofos analíticos) se deparam com o mesmo fato: para dizer o que é a subjetividade enquanto tal, não se pode prescindir do ponto de vista da primeira pessoa. E, no entanto, nesse caso, fica bem claro que se trata de dizer o que é ser um eu (a self), e não o que é ser eu.

  1. E isso desde a recepção das Meditações Cartesianas, originalmente o título de duas conferências proferidas por Husserl na Sorbonne em 1929 e publicadas em francês em 1931 (cf. seção I da Bibliografia). É preciso também esclarecer que esse texto, que tornou Husserl famoso na Europa não germanófona, não é um dos mais felizes do mestre, inclusive do ponto de vista do estilo. Husserl se esforçou demais, e de forma incongruente, para se apropriar do espírito “cartesiano” de seus anfitriões… São representativas das leituras de Husserl nesse sentido as obras de Ricœur (1959), Levinas (1988) e Gadamer (1963).[↩]
  2. Aliás, a extensão do conceito de pessoa se ampliou consideravelmente ao longo dos séculos, e até agora empregamos o termo em seu uso corrente, mas recente, que contém, por exemplo, escravos, mulheres e crianças. E os loucos, naturalmente, mas não há muito tempo… Cf. seção II da Bibliografia, Scheler (1913).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress